segunda-feira, 2 de julho de 2007

O sexo anal e os riscos para a saúde: uma perspectiva técnica (à atenção de Patrícia Lança)

Patrícia Lança escreve este post a alertar para os riscos que a prática da sodomia representa para a saúde. Trata-se de um excelente exemplo de como se pode distorcer a informação na tentativa de justificar "cientificamente" uma posição cuja única justificação é moralista. Um verdadeito "caso-estudo" que se poderia aproveitar para os manuais, e aulas de faculdade. Este post vai ser longo, mas vale a pena desmontar a argumentação pseudo-científica de Patrícia Lança.

Comecemos pelas fontes. Para procurar fontes científicas imparciais e objectivas eu pessoalmente uso a Pubmed, eu qualquer investigador em Biologia ou Medicina. Será necessário explicar o porquê da necessidade fazer uma pesquisa objectiva e sem enviezamento? A Pubmed trata-se da maior base de dados mundial para artigos publicados em Ciências Biomédicas, e dá acesso aos resumos dos artigos referenciados. É uma espécie de Google da bibliografia nesta área (gentileza do National Institutes of Health - NIH - americano). Aconselho vivamente todos os leitores interessados nestas coisas a perder algum tempo a fazer pesquisas na Pubmed. O que não está publicado em revistas referenciadas não aparece na base de dados por uma simples razão: para ser publicado um artigo passa pelo crivo da crítica de outros especialistas na mesma área, saber que passou por esse crivo é uma garantia de credibilidade, sem essa chancela um trabalho não é referenciado. Patrícia Lança usa critérios diferentes, vai buscar as suas fontes à Family Policy Network, onde seguramente tem muito mais probablidade de encontrar o que procura, mas em termos de isenção e objectividade estamos conversados.

Outro aspecto importante é a confirmação pela comunidade científica dos resultados publicados. Quando a mesma afirmação é consistentemente encontrada em estudos independentes é obviamente muito mais credível, convém levar isto em conta quando se faz pesquisas bibliográficas. Como é também uma boa ideia levar em conta o prestígio da revista em que o estudo é publicado e a instituição onde o trabalho é feito. Se não se levar nada disto em conta, e se se procurar bem, encontra-se sempre uma referência para justificar aquilo quisermos, e o seu contrário. Tentando levar estes critérios em conta encontrei, por exemplo, este artigo, dum tal Chris Beyrer (que não conheço), mas que trablha no Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health. Johns Hopkins é uma das mais reputadas instituições americanas e mundiais em Biologia e Medicina. Mais, este artigo é um comentário resultante de uma reunião internacional em HIV, não é tanto a opinião do seu autor como é o resultado de um consenso entre os especialistas presentes nessa reunião. Pode ler-se logo no resumo:

An emerging epidemic of HIV infection among men who have sex with men in developing countries is primarily spread through unprotected anal intercourse but is also driven by limited HIV infection prevention services, social stigma, and the lack of human rights protection.
(destaque meu) Digamos que é um ponto de vista completamente diferente do que nos apresenta Patrícia Lança. Eu diria até que a senhora se inclui no "lack of human rights protection".

E agora rebatendo alguns pontos dos específicos apresentados por Patrícia Lança:

- A 1997 study in British Columbia found the life expectancy of men who engage in sodomy to be comparable to that of the average Canadian man in 1871

O tal estudo (resumo aqui) não só é de 1997, já de si não muito actual, como se reporta a resultados obtidos entre 1987 e 1992. Nessa altura a realidade tanto em termos de terapia da SIDA como de prevenção era outra completamente diferente. Recomenda-se a utilização de fontes mais actualizadas. Mas não é só isso...

- Ninety-five percent or more of the AIDS infections among gay men result from receptive anal intercourse

Obviamente que se a SIDA é transmitida sexualmente, e se os gay men são os homens que têm relações sexuais com outros homens, como quereriam então que a SIDA fosse transmitida? Por telepatia? E aqui a má fé de que faz prova é gritante. Tal como no ponto anterior, Patrícia Lança, ou o autor do estudo, omitem um pormenor muito importante referido em toda a bibliografia que consultei, a palavra "unprotected" (como se pode ver por exemplo na citação que coloquei mais acima). Deveria estar escrito "unprotected receptive anal intercourse", porque o problema não é a sodomia per se mas sim o facto de o sexo, anal ou não, ser desprotegido. O uso do preservativo, como é sabido, reduz enormemente o risco (e aliás o mesmo se aplica ao coito vaginal entre homem e mulher, e gostaria de saber se Patrícia Lança é coerente nas ilacções que daí retira, mas já lá vamos...).

Outro aspecto referido no tal post é risco de Câncro Anal. É verdade que a sodomia comporta um risco de contrair este tipo de Câncro (pode ler-se este artigo de revisão sobre o assunto). Mas vale a pena olhar para a questão mais de perto. A principal causa de Cancro Anal é a transmissão de um Vírus, o Papilomavírus Humano. Os factores de risco são o tabaco, como em qualquer tipo de cancro, o HIV, que diminuindo as defesas imunitárias diminui a resitência a este como a qualquer outro tipo de vírus (nada de novo), e a transmissão do Papilomavírus por via sexual. Sim, o Papilomavírus é transmitido sexualmente, tal como o HIV. A protecção é a mesma, o preservativo. Mais uma vez não é a sodomia em si que é o problema, é o sexo sem protecção que expõe o indivíduo ao risco.

Entretanto nas minhas pesquisas sobre o assunto encontrei um artigo muito interessantes sobre o risco do Papilomavírus Humano para as mulheres (resumo aqui). Ora sucede que o Papilomavírus, que pode provocar Cancro Anal a quem pratique a sodomia, pode também provocar Câncro do Colo de Útero a mulheres que pratiquem cópula vaginal sem protecção. Mas não e só, a gravidez aumenta o risco para a variante invasiva do Câncro do Colo do Útero, na proporção do número de gravidezes. A cópula vaginal entre homem e mulher comporta os mesmos riscos (ou mais no caso de haver gravidez) do que comporta a prática da sodomia.

Fica portanto aqui a questão: Se os riscos para a saúde provocados pela sodomia são razão suficiente para rejeitá-la, então, uma vez que os mesmos riscos se verificam no coito vaginal, devemos também em coerência rejeitar esta prática? O que nos leva a uma outra questão: quais são então as práticas que permanecem aceitáveis neste quadro? O sexo oral, a masturbação ou a abstinência? Gostaria de saber o que pensa Patrícia Lança do assunto.

14 comments:

MPR disse...

Creio que a masturbação será a única práctica sexual segura para evitar qualquer tipo de contágio... Mas pelo sim pelo não, o melhor é deixarmo-nos de vês desses contactos e prácticas nojentas e vivermos uma vida feliz e pura a comer chocolate...

Shyznogud disse...

ou, como escreveu algures a minha parceira de blog, damos todos as mãos e olhamos candidamente uns para os outros.

MPR disse...

Eu escrevi "de vês"... bem... obvio que devia ter escrito "de vez"...

Zèd disse...

Estou a ver que concordais todos com a Patrícia Lança. Vamos dar-nos às práticas platónicas e à abstinência.

Aí sim, o futuro da espécie humana estará em risco, literalmente. A não ser que nos valha o Espírito Santo...

vallera disse...

Que linda seria a vida na pradaria..
Boa desmontagem Zèd.
aqui fica outro link da senhora:
http://www.oinsurgente.org/2007/05/27/feminismo-e-a-familia/

onde , com muita paciência, lês, entre outras, "pérolas" como esta:

"Slavery, though not morally defensible, was regarded as a necessary evil without which the civilized life of cities such as Athens was not possible. A person'sex did not fall into the same category. It was simply a fact of nature from which a number of ineluctable consequences flowed. It was when slavery no longer appeared necessary that it became possible to apply a moral standpoint and support its abolition. Only third worldists attempt to make part of humanity feel guilty about the role some of their ancestors may have played in slavery. Anybody with a knowledge of human history is well aware that the enslavement of other human beings has been practised at one time or another by every nation and race."

L. Rodrigues disse...

Claro, Vallera,
Desde que economicamente faça sentido, a escravidão é perfeitamente legítima. Aliás, pelo caminho que isto leva é mesmo a melhor maneira de assegurar que todos os seres humanos vivem com condições minimas já que se formos propriedade de alguém, esse alguém tem interesse em manter-nos em boas condições para o nosso valor de mercado não cair. Faz tudo sentido, quando respeitamos as sagradas leis do mercado.

vallera disse...

certo, I.Rodrigues, uma perspectiva à la Matrix..

Anónimo disse...

Magnífico comentário, zéd...

FuckItAll disse...

Zèd, a Dra. Lança já preveniu que o sexo oral também não faz nenhum bem (e parece que é verdade, aumenta o risco de cancro), além de que - diz ela -, junto com a sodomia estão a impedir a reprodução da espécie. Copos de água, meu caro. E é se querem.

Anónimo disse...

"A pior maneira de se debater ideias é reduzir os argumentos a um maniqueísmo insuportavelmente dicotómico ". Devias ter isto em conta na tua argumentação, rapaz Zed. A tua argumentação,se vires bem, é um lídimo exemplo de maniqueísmo. Mas ao fim e ao cabo é o mesmo que toda a argumentação das Gay industries por esse mundo, nomeadamente nos EUA, a pátria das indústrias pós modernas em que as Gay se inserem, é só disso que se trata. Contra isto, até uma galinha reaccionária como a srª Lança tem alguma razão!

Zèd disse...

Caro anónimo,
Importa-se de ser um pouco mais específico? Onde é que está o maniqueísmo?

O meu argumento é muito simples: A dra. Lança usa argumentos "científicos" contra a prática da sodomia alegando que acarreta malefícios para a saúde, ora os mesmíssimos malefícios verificam-se também para a mulher na prática da cópula vaginal, logo seguindo a mesma lógica a cópula vaginal é tão errada como a sodomia. Apresentei suporte empírico para o meu argumento. Onde é que está o maniqueísmo? E mesmo que seja maniqueista onde é que está o erro de argumentação?

E já agora quais são essas "Gay Industries"? E o que é que eu tenho a ver com as "Gay Industries"? E porque razão usar os mesmos argumentos que as "Gay Industries" é por si só razão suficiente para estar errado?

JSA disse...

Caro Zèd, pelo que me toca, a escolha das referências basta para arrumar a questão no que toca à discussão com a Lança. Mas o teu post é um exemplo perfeito de como se deve apresentar uma conclusão com base em referências científicas. Como sempre, aliás.

Anónimo disse...

Mas alguem acredita que o nível de risco no coito anal é igual ao do coito vaginal?

Claro que as diversas infecções podem resultar de um e outro, mas o risco do sexo anal é muito maior!E não é preciso ser "cientifico", basta perceber que a vagina é um orgão criado para a função e o anus não.

òbviamente, que a prática de sexo com as suas mais ou menos arriscadas "posições", só diz respeito aos parceiros, e a mais ninguem.

Mas fazer "contorcionismo" mesmo no debate escrito, pode levar a hérnias discais!

Zèd disse...

Caro Luis Moreira,

Cada um é livre de acreditar no que quer. Cada um é até livre de não acreditar na realidade, é um risco mas é também um direito.

"E não é preciso ser "cientifico", basta perceber que a vagina é um orgão criado para a função e o anus não."
Isso não é uma observação empírica, é uma espectativa ('wishful thiking'), uma previsão por assim dizer. Mas as previsões nem sempre se verificam. Também se pode 'prever' usando a mesma lógica que o Papilomavirus està melhor adaptado à transmissão pelo coito vaginal, e que por isso este é mais sujeito à infecção. Eu pessoalmente até acho que é esse o caso, mas isso jà é especulação. O melhor mesmo é olhar para a realidade (é para isso que serve a Pubmed).

E jà agora, não subestime o problema do câncro do colo do ùtero para a saùde pùblica.