sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Cuidado com as citações (I)

Em pleno Verão, João Miranda publicou esta interessante crónica, a terceira na série "Sexo em Democracia". Talvez por ter saido durante o período de férias não tenha tido a devida atenção. Na minha humilde opinião foi pouco comentada na blogosfera, falou-se mas falou-se pouco. A dita crónica bem merece uma polémica. Segundo João Miranda o trabalho do economista escocês (e não americano) Gregory Clark, professor na Universidade da Califórnia em Davis, mostra que na Inglaterra anterior à Revolução Industrial os mais ricos deixaram mais descendentes. Esse fenómeno terá levado a que por volta de 1800 toda a população inglesa fosse descendente dos mais ricos. A população inglesa teria herdado as qualidades dos mais bem sucedidos o que terá sido o motor da própria Revolução Industrial. Ou seja, terá ocorrido um processo de selecção, nesse processo os descendentes dos mais ricos teriam passado as suas características à descendência, e a prevalência dessas qualidades na população levou à Revolução Industrial.

Felizmente que Gregory Clark tem uma grande parte do seu trabalho disponível on-line, para quem quiser poder lê-lo, e comparar as suas conclusões com as de João Miranda. Eu cheguei a conclusões muito diferentes, e parece-me que no mínimo João Miranda está a sobre-interpretar o trabalho de Clark. O trabalho em questão presumo seja o artigo "Survival of the Richest: The Malthusian Mechanism in Pre-Industrial England", publicado em conjuto com Gillian Hamiltan, e disponível em formato PDF no site do próprio Gregory Clark. Trata-se do estudo empírico sobre a questão da fecundidade e da riqueza na Inglaterra pré-Industrial. Trata-se portanto a fonte primária de Clark, a cujos dados depois se reporta em pelo menos mais dois artigos onde expõe as suas ideias (este e este, também em PDF).

Clark conclui que os mais ricos conseguem deixar mais descendência do que os mais pobres. Não quer dizer necessariamente que tenham mais filhos, mas que mais filhos sobrevivem até à idade adulta e conseguindo eles próprios deixar descendentes. Como qualquer trabalho científico, o artigo de Clark tem algumas limitações. Como é fácil de imaginar não há propriamente dados exaustivos sobre a riqueza, o número de filhos, os óbitos, etc..., da Inglaterra da Idade Média ou pré-Industrial. Clark baseia-se numa amostra de testamentos deixados por homens da época nalgumas paróquias inglesas, e partir dai infere os seus dados. É portanto um processo de amostragem e inferência. A informação que se retira dos testamentos não é propriamente a mesma que se encontra num Censo. Ainda assim pode inferir-se as posses, e o número de herdeiros e informações relativamente ao óbito. A primeira questão será a de saber se os testamentos permitem uma amostragem representativa da população. O próprio Clark afirma "Wills were also not made by a random sample of the population, but instead made by those who had property to bequeath" (p.6) e algumas linhas mais à frente "higher income individuals were undoubtedtly more likely to make wills". Ou seja a amostra não é representativa, só deixa testamentos quem tem bens para legar, os mais ricos ou talvez os remediados. Se os mais pobres dos mais pobres, que não deixam testamentos por não terem bens para legar, deixaram mais descendentes do que os ricos, as conclusões do estudo são erradas. O erro é tanto maior quanto maior for a proporção da população que era demasiado pobre para deixar testamento. Não é possível estimar essa proporção, mas supõe-se que não fosse pequena. Outro aspecto é a questão de herdeiros vs descendentes, não é bem a mesma coisa. O próprio Clark novamente refere que ocorria nas famílias com menos riqueza filhos serem omitidos do testamento porque não havendo muitos bens a legar, esses bens eram herdados apenas por um ou alguns dos filhos, preferencialmente homens (p.8-10). Não é possível estimar rigorosamente quantos filhos são omitidos nos testamentos, mas o que se conclui é que seguramente o cálculo da fertilidade dos mais pobres baseada nos testamentos é feito por defeito. Mais uma vez se os mais pobres têm uma taxa de fertilidade superior à calculada os resultados do estudo estão errados. Finalmente, foram efectuados outros estudos sobre o mesmo assunto e a mesma época, versando outros países da Europa e o Japão, e nunca foi encontrada relação alguma entre a fertilidade e o nível de riqueza (p.2). Não deixa de ser curioso que este fenómeno se passa apenas em Inglaterra, quando durante a Idade Média outras sociedades europeias eram muito semelhantes à inglesa.

As conclusões deste trabalho devem portanto ser tomadas com muita precaução, já que a metodologia apresenta limitações muito importantes. Note-se contudo o rigor intelectual de Gregory Clark que nos enuncia ele próprio as fraquezas do seu estudo.

Já o rigor de João Miranda deixa muito a desejar, mas isso fica para o próximo post, que este já vai longo.

Continua portanto...

2 comments:

JSA disse...

Excelente desmontagem, como sempre, caro Zèd.

Deixo ainda outros pontos para discussão: na Idade Média, a maioria dos ricos seriam nobres, uma vez que a emergência de uma sociedade burguesa, enriquecida devido ao comércio, só chegou mais tarde. Como tal, há dois tipos de sociedades, bem diferentes entre si, nestas questões. Isso é importante porque os nobres legavam, habitualmente, os seus bens ao primogénito, o que fazia com que os restantes descendentes não fossem assim tão ricos quanto isso (embora "rico", na altura, fosse uma definição diferente). Por outro lado, nas sociedades feudais de então, os pobres entravam realmente na condição de que falas, de tão pobres não tinham nada para deixar.

Teos ainda o desfasamento entre as conclusões em Inglaterra e no resto da Europa. Aí há a questão das cruzadas a considerar. Houve uma enorme quantidade de nobres (ricos, portanto) que enviavam os seus filhos (não primogénitos) para as cruzadas, uma vez que conquistar territórios era a melhor forma de conseguir obter terras. Isso não só mudou a demografia da Europa como matou muitos filhos nobres.

Acho ainda que ficas pouco na questão da mortalidade infantil, a qual era quase certamente muitíssimo superior entre os pobres que entre os ricos. Fosse pelo acesso a cuidados de saúde (maus, mas sempre melhores entre os ricos que entre a populaça), fosse pela alimentação, fosse pelo volume de trabalho. Este pormenor conseguiu, muito provavelmente, distorcer muito mais os dados de natalidade que qualquer outro detalhe.

Para variar, o João Miranda pega no abstract (ou só no título) e retira dali o que lhe apetece. Não é a primeira vez nem será a última.

Anónimo disse...

Qualquer organismo vivo em condições de stress - seja elas de que natureza forem - responde aumentando a fertilidade. As mulheres com insuficiências nutricionais engravidam com maior facilidade do que mulheres com excessos alimentares. Por este motivo, o número de mulheres inférteis no mundo desenvolvido tem vindo a aumentar de forma significativa enquanto que este fenómeno não é descrito em países sub- e em vias de desenvolvimento. Claro que há outros factores como a poluição que podem também participar, mas uma flor em regime de secura produz maior número de sementes do que uma flor regada. As sementes são mais pequenas e morre uma maior percentagem, mas sobrevive no entanto um maior número.

Bom post - já agora.