segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Cuidado com as citações (II)

Continuando o post anterior sobre esta crónica de João Miranda no DN (a terceira na série "Sexo em Democracia"). Escrevia eu que o trabalho de Gregory Clark, em que se baseia a crónica, deve ser tomado com as maiores precauções. Já João Miranda pelo contrário cita-o sem quaisquer precauções, e leva as conclusões bem mais longe do que o autor do trabalho poderia imaginar. De facto é a forma - no mínimo pouco rigorosa - como João Miranda cita o trabalho de Clark que me merece os maiores reparos.

Começa logo na primeira frase: "Gregory Clark, professor de Economia americano, estudou a fecundidade dos ingleses entre 1250 e 1800." Esta afirmação está factualmente errada. Clark estudou a fecundidade em Inglaterra entre 1585 a 1638. Pode ler-se no artigo que referi no post anterior "Here we use a sample of more than 2,000 wills made by male testators in the years 1585 - 1638" (p.5). O que Clark faz, baseado na permissa que as condições não se alteraram significativamente, é estender as suas conclusões para o período até pelo menos 1250. Chama-se a isso uma extrapolação. Claro que dizer que foi estudado um período de 550 anos em vez de 53 anos dá mais credibilidade às suas conclusões, mas está errado. E, já agora, também não estudou a fecundidade dos ingleses, o que quereria dizer de todos os ingleses, estudou a fecundidade de alguns ingleses, aqueles - poucos - que foi possível estudar na sua amostra.

Mais adiante: "De acordo com Clark, em 1800, a sociedade inglesa era constituída pelos descendentes dos mais bem sucedidos nos séculos anteriores, os quais herdaram as características necessárias para atingir o sucesso.". A primeira parte da frase reporta-se de um cálculo que até é possível fazer com os dados disponíveis (não esquecendo as limitações do estudo, e consequentes margens de erro); toma-se as taxas de fertilidade de ricos e pobres, o intervalo de tempo em estudo, a idade média a que os ingleses tinham filhos, e calcula-se. No entanto do que li Clark esse cálculo nunca é feito, especula apenas que assim seria. Na segunda parte da frase a falta de rigor é ainda mais grave. Clark não estuda a herditeriedade de coisa nenhuma! Mal sabemos que características são essas que permitem atingir o sucesso (mas isso dá-se de barato), agora se foram ou não foram herdadas não é de todo objecto de estudo. Se Clark já tem dificuldades em saber pelos testamentos que analisou coisas tão simples como quantos filhos tinha cada homem, e quanto dinheiro lhes deixava, saber se lhes transmitia ou não as características do sucesso então nem se fala. Isso não impede Miranda de escrever uma frase bem acertiva, "a sociedade inglesa era constituída...".

Continuando "Clark defende que a História de Inglaterra desde a Idade Média à Revolução Industrial é dirigida pelos mecanismos impessoais da selecção biológica ou da selecção cultural." E aqui João Miranda ultrapassa todos os limites do rigor mínimo aceitável. A selecção cultural, de facto, ainda é algo que Clark refere vagamente (quando especula, mas pode especular-se desde que se o assuma enquanto tal). Mas Selecção Biológica? Eu gostava de saber onde o é que Gregory Clark se referiu à Selecção Biológica. Em tudo o que li a Selecção Biológica nunca é referida, nunca é abordada, nunca é mencionada, nem sequer enquanto especulação. Nada! Clark fala tanto de Selecção Biológica quanto fala de futebol (que, como é sabido, não existia na Inglaterra pré-Industrial). Não é Clark quem mete a Selecção Biológica ao barulho. É João Miranda quem, intencionalmente ou não (pouco importa), tenta fazer parecer que a sua especulação - para a qual não tem qualquer suporte científico, qualquer base empírica - é o resultado da investigação de um reputado professor de economia.

E continua logo na frase seguinte "As características das pessoas economicamente bem sucedidas foram passadas aos seus filhos através da educação ou através dos genes." A frase é uma afirmação peremptória, repare-se "foram passadas", não há lugar à duvida. Mas como já referi, se determinadas características foram ou não passadas aos descendentes é algo que não foi sequer estudado. No entanto em cima de uma especulação elabora outra especulação: as características do sucesso foram transmitidas, e foram-no pelos genes ou pela cultura. E mais uma vez a ambiguidade, não nos diz se exprime as suas ideias especulativas ou os resultados de Clark. Note-se que pouco nos é dito sobre que características possam ser essas, e evidências que elas possam ser transmitidas pelos genes então nada de nada é mencionado.

E para finalizar João Miranda insiste: "O trabalho de Clark demonstra a importância dos processos de selecção biológica e cultural." como se a repetição da ideia a tornasse mais válida. Mas onde o cronista quer chegar é à conclusão que "(...) pessoas com determinadas características são mais bem sucedidas que as outras.", e que isso é sujeito à selecção natural.

Resumindo o argumento de João Miranda é que os mais ricos são os mais bem sucedidos, e têm mais filhos do que os menos bem sucedidos. Isso faz com que a prazo os membros de uma sociedade sejam descendentes dos mais bem sucedidos, e uma vez que herdadaram as características que permitem o sucesso conduzem essa sociedade ao progresso. Terá sido o caso da revolução industrial em Inglaterra. Uma vez que isto é um processo natural (os tais mecanismos impessoais) não se deve intervir, particularmente o estado - esse grande vilão. A natureza através da selecção faz o seu trabalho, portanto não se deve intervir com políticas de natalidade e alterar o normal curso da natureza (há aqui uma crença quase mística no trabalho da natureza). Gostaria de saber se numa situação em que os pobres, i.e. os menos bem sucedidos, tenham uma maior fertilidade do que os ricos, João Miranda mantém a mesma opinião. Seguindo a sua lógica, se os pobres tiverem uma maior taxa de fertilidade então vão transmitir as características do insucesso à descendência. A prazo a sociedade será composta apenas de descendentes de pobres, e será a decadência dessa mesma sociedade (actualmente em todo o mundo ocidental são os mais pobres quem tem as taxas de fertilidade mais altas). Trata-se, no entanto, de uma questão antiga. Utilizando essa mesma lógica David Heron dizia em 1906 a propósito dos pobres "(...)higher fertility rate is shewn...to be very markedly correlated with the most undesirable social factors". David Heron era um notório eugenista, e membro fundador da British Eugenics Education Society. Sociedade essa que advogava entre outras coisas campanhas de esterilização dos mais pobres para eliminar os indesejáveis da sociedade. Na época as classes mais baixas tinham já taxas de fertilidade bastante mais elevadas que as classes altas.

Não é inocente que João Miranda meta a selecção biológica ao barulho e a misture com selecção cultural, porque é à selecção biológica que quer chegar (e o chato do Clark que só fala da selecção cultural...). Na realidade argumento de João Miranda só faz sentido se o processo de selecção for biológico. Se as tais características do sucesso que permitem a alguns serem mais bem sucedidos forem transmitidas pelos genes. Porque se não o forem nada obriga a que sejam transmitidas apenas à descendência. Se o processo de selecção for cultural, nada impede que as tais características do sucesso sejam transmitidas de um qualquer ser humano a qualquer outro ser humano (por exemplo através do sistema de ensino, e com a ajuda do estado). E nesse caso o argumento de João Miranda simplesmente não faz sentido. Curiosamente João Miranda não se apercebe, ou prefere ignorar, a diferença entre Selecção Cultural e Biológica, e trata-as como se fossem equivalentes. Parte de um estudo que sugere vagamente a importância da selecção cultural, e que não aborda de todo a selecção biológica, para construir um argumento que só faz sentido para a selecção biológica e que é inconsistente com a selecção cultural.

Resumindo, para o argumento de João Miranda fazer sentido só falta demonstrar que a selecção existe, que é biológica, que há "características do sucesso", que estas são transmitidas pelos genes, que permitem aumentar a taxa de sobrevivência e/ou fertilidade, que o processo de selecção é o motor do progresso social, e que a acção do estado lhe seria prejudicial. Enfim, falta demonstrar tudo.

Ainda assim, com todas estas reservas consideradas, ainda ficam algumas questões para discussão futura (se for caso disso)...

2 comments:

Samir Machel disse...

mas o tipo é biólogo...

A proposta seguinte é que os pobres devem ser rpoibidos de procriar, a única medida para acelerar o desenvolvimento de um país...

Zèd disse...

Ele de facto assina as crónicas como investigador em biotecnologia, mas pela falta de rigor que mostra não deve ser muito bom investigador...

Essa proposta por acaso até já foi feita (como até deves saber) pelos eugenistas de há 100 anos e, surpresa das surpresas, foi abandonada por falta de evidências científicas. O mais curioso (e assustador) é que o eugenismo do ponto de vista científico foi desacreditado relativamente cedo, no princípio dos anos 30, mas as práticas eugénicas em vários países, EUA e países escandinavos mantiveram-se até ao fim dos anos 60.