sábado, 8 de setembro de 2007

O espólio tropicalista*

Foi na paralisia da bossa nova e a alienação da jovem guarda [1] que surge em São Paulo a Tropicália (1967 - 69), movimento que agregava não só a música, mas também as artes plásticas de Hélio Oiticica, o cinema de Glauber Rocha e o teatro, com montagens dirigidas por Zé Celso Martinez. Tendo como protagonistas a musicalidade de Gilberto Gil e Caetano Veloso (mais a irreverência de Tom Zé e Os Mutantes), a poesia de Torquato Neto e José Carlos Capenam e a genialidade do maestro Rogério Duprat nos arranjos , os tropicalistas se opõem frontalmente à proposta de MPB da época, que já nascia caduca, sem imaginação e com um blablablá puramente nacionalista, que infelizmente monopolizava os discursos de cantores, compositores e outros produtores culturais.

Com uma linguagem poética alegórica e uma música que não tinha pudores em misturar o erudito, o popular brasileiro e o pop rock, o tropicalismo tenta trazer à luz as contradições próprias da sociedade brasileira, mostrando o moderno e o arcaico, o nacional e o estrangeiro, o urbano e o rural, o progresso e o atraso de um Brasil que era sufocado por uma ditadura militar e uma classe média ainda enfeitiçada pela american way of life. Por isso, pagou um preço alto: foi recusado pela esquerda, desterrado pela direita e esquecido por todos os brasileiros.

Passados quase 40 anos, a crítica européia e norte-americana parecem ter descoberto na Tropícalia uma sedutora escola de vanguarda da world music (expressão criada por coincidência com o lançamento, em 1989, de Beleza Tropical, uma coletânea de MPB produzida pela gravadora de David Byrne, ex-líder do Talking Heads). Assim, músicos como Tom Zé e Os Mutantes ganham das platéias estrangeiras o reconhecimento que nunca tiveram no Brasil, um país hoje entorpecido pelo lixo musical da axé-music, do pagode meloso e nojento e do sertanejo travestido de caubói terceiro-mundista. Em suma: a jovem guarda tupiniquim não morreu e o samba sepultou a bossa. E a Tropicália? Bem, essa foi enterrada viva sem qualquer ressentimento e seu espólio é agora disputado por alguns produtores musicais europeus e norte-americanos. E Pindorama [2] acha tudo “Divino Maravilhoso” [3].
Nb: Capa do disco, gravado em 1967. Na foto aparecem em cima: Mutantes ( com o Caetano do lado da Rita Lee) e Tom Zé( à direita). Em baixo: Rogerio Duprat (segurando o penico) , Gal Costa e Capenan. Em primeiro plano, Gil, com uma foto de Torquato Neto.
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[1] A jovem guarda brasileira foi um movimento musical e comercial (mais comercial que artístico), liderado por Roberto Carlos, que surge em 1965 (portanto, logo depois do golpe militar), cujo maior objetivo não era a música propriamente dita, mas divulgar programas de televisão, revistas, filmes, bijuterias, vestuário, gírias produzidas nas agências de publicidade e todos os subprodutos correlatos. Musicalmente, o estilo "jovem guarda", também chamado de "iê-iê-iê" por influência do "yeah, yeah, yeah" dos Beatles, pode ser resumido como uma mistura de qualidade duvidosa do pop rock europeu, twist, bossa nova e até marchinha. Ou seja, não tem nada que se aproxime da frase de Vladimir Lênin, em seu discurso quando da tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia : "O futuro pertence à jovem guarda porque a velha está ultrapassada".

[2]Em tupi, também significa “Terras das Palmeiras” e era o nome dado ao Brasil pelos índios tupis.

[3]Música de Caetano Veloso e Gilberto Gil, com produção musical de Rogério Duprat, gravada pela Gal Costa, em 1969. “Atenção ao dobrar uma esquina/ Uma alegria, atenção menina/ Você vem, quantos anos você tem?/ Atenção, precisa ter olhos firmes/ Pra este sol, para esta escuridão/ Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte/ Atenção para a estrofe e pro refrão/ Pro palavrão, para a palavra de ordem/ Atenção para o samba exaltação/ Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte/ Atenção para as janelas no alto/ Atenção ao pisar o asfalto, o mangue/ Atenção para o sangue sobre o chão/ Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”.

*Manolo Piriz

2 comments:

Daniel Melo disse...

Confesso que, embora conhecendo várias músicas de vários destes músicos e sabendo das ressonâncias míticas do Tropicália, nunca tinha ouvido este disco (pelo menos que me lembre). Agora sim, ouvi e adorei!
Depois deste completo post, e do da Iolanda, veio-me à memória um, dois, vários músicos brasileiros de que gosto, para além do Caetano, Gil, Gal Costa e C.ª.
Recordei concertos a que assisti em Lisboa do Oto, Antônio Nobrega, Marisa Monte, Quarteto Jobim-Morelenbaum, Tom Zé, Chico Buarque, etc.. E os cd's que oiço, deles, mais o Milton do «Circo Marimbondo» e muitos outros.
Na altura, no contexto da Ditadura Militar era forte a pressão para o engajamento estético-musical por parte dos que resistiam, para a música de intervenção. Mas mesmo os Tropicália, com a sua ruptura estética, com a sua inovação, mescla e criatividade e, mesmo com a sua ousadia e comprometimento cívico, viriam a ser perseguidos pela Ditadura Militar e alguns deles tiveram que se exilar por uns tempos (julgo que Caetano e Gil, em Londres, salvo erro).
Por isso, concordo que o Tropicália foi um movimento cultural injustiçado e mal-compreendido, num contexto, porém, muito complexo e difícil para quem resistia à ditadura e ao conservadorismo.
Que diversidade incrível tem a música brasileira.
Recordo ainda um excelente documentário recente do Gilberto Gil sobre a música brasileira, em vários episódios.
Obrigado por estas lembranças cheias de vida!

Anónimo disse...

É isso aí, Daniel. Apesar de efêmera, a Tropicália (expressão que surgiu nas artes plásticas com Hélio Oiticica) deu uma nova roupagem pra MPB que veio depois. Apesar de apolíticos, os tropicalistas foram os primeiros artistas a serem banidos (Caetano, Gil e Os Mutantes foram pra Londres e Torquato Neto para Paris), pois não só ridicularizavam a Ditadura Militar como também toda a classe dominante brasileira.