domingo, 30 de setembro de 2007

A teimosia do dialeto caipira

Antes da descoberta do Brasil se falavam por aqui aproximadamente mil línguas diferentes, resultado da diversidade indígena existente na época. Depois do descobrimento, porém, foi estabelecido (de meados do século 16 ao 17) que a língua geral ou nheengatu [1] seria usada para facilitar a comunicação entre índios e brancos. Foi do nheengatu, com inclusão de palavras africanas, espanholas e portuguesas (devido à unificação das coroas portuguesa e espanhola, de 1580 a 1640) que nasce o dialeto caipira.

Com a passar do tempo, a língua geral torna-se a única forma de comunicação entre índios, mamelucos, brancos e negros. Mais tarde, são os jesuítas e os bandeirantes [2] que a espalharam por quase todo o território brasileiro, o que levou a Coroa Portuguesa legalizá-la, em 1689, tornando-a língua oficial. É justamente essa expansão que será o motivo principal da sua proibição, em 1758, quando Marquês de Pombal decretou o fim de qualquer outra forma de comunicação no Brasil que não fosse a língua portuguesa, pois o português é naquela altura apenas usado como língua do governo em situações administrativas e falada por um pequeno número de pessoas

Tarde demais, pois apesar de combatido no litoral e nas cidades próximas a ele, o dialeto caipira se alastra por quase todo interior paulista e outras regiões brasileiras, e viria a se constituir na expressão mais evidente do profundo processo de mudança que afetou a língua portuguesa do Brasil: "(...) A instrução e a educação, hoje muito mais difundidas e exigentes, vão combatendo com êxito o velho caipirismo, e nãonada tão comum como se verem rapazes e crianças cuja linguagem divirja profundamente da dos pais analfabetos", disse Amadeu Amaral (1920: 12-3).

Além desse fenômeno observado por Amaral, a discriminação urbana ao “caipirismo” foi inegavelmente uma grande arma contra o avanço do dialeto, mas não tão poderosa a ponto de destruir completamente a sua influência, que resiste até hoje em alguns lugares de São Paulo e Minas Gerais. Outra interferência marcante na língua coloquial falada no Brasil foi a dos imigrantes. Após a independência brasileira e posterior abolição da escravatura, a mão-de-obra escrava na lavoura foi substituída pela do imigrante, principalmente a italiana, que também deixou a sua marca em muitas regiões brasileiras.

Assim, o considerado “falar errado” de muitos brasileiros não é a rigor errado. Trata-se, porém, de uma outra língua, fruto de seu contexto histórico que desencadeou todo o processo de miscigenação, fenômeno que leva muitos filólogos estrangeiros a considerarem o Brasil um país bilíngue ou até plurilinguístico. Ou seja, apesar de supostamente soterrado, o dialeto caipira teima em fazer parte do dia-a-dia das pessoas de baixa escolaridade como herança de todo o processo histórico brasileiro.

PS: Entre as muitas diferenças do dialeto caipira e a língua portuguesa falada no Brasil, destaco aqui as mais corriqueiras e que sobrevivem até os dias de hoje. Como os índios tinham dificuldade em pronunciar determinadas palavras, principalmente as formadas por “lh” e as terminadas em “l” e “r” , cometiam os seguinteserros”: (lh) mulher = muié, colher = cuié, filho = fiio; (l) animal = animá, quintal = quintá; (r) – neste caso, consideram-se os verbos no infinitivocomer = comê, beber = bebê, dormir = dormi, falar = falá. as terminadas em om, em muitos casos o som muda para “ão”, como é o caso de bom = bão, som = são. Veja aqui estudo completo de Amadeu Amaral. E vai também uma pérola de Oswald de Andrade, retirada de seu livro de poesia Pau-Brasil (1925):

Relicário

No baile da Corte
Foi o Conde d'Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí

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[1] Língua que se originou de uma língua do tronco tupi falada no litoral brasileiro por vários povos indígenas. Ao contrário do que se imagina, ela não foi criada pelos jesuítas. Coube a eles somente regulá-la pela gramática da língua portuguesa.

[2] Homens (paulistas) que se introduziram no sertão do Brasil, movidos pelo desejo de encontrar jazidas de metais preciosos e outras riquezas. Foram responsáveis pela expansão do território brasileiro, conquistando terras que pertenciam a Espanha, como Goiás, Mato Grosso, grande parte de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Eram também responsáveis pela captura de índios que seriam vendidos como escravos aos colonizadores portugueses.

Nb: Na imagem, um caipira caracterizado.

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