terça-feira, 9 de outubro de 2007

Trabalhos e paixões de Benito Prada

Ao Lanero, por estes dias em terras nordestinas

Li há uns dias atrás um romance de que gostei muito. Chama-se Trabalhos e paixões de Benito Prada, foi escrito por Fernando Assis Pacheco e relata as andanças dum galego raiano emigrado no Portugal republicano, que vai subindo a pulso na vida.
Para Benito Prada, o protagonista galego deste romance, a política é algo em que tenta não envolver-se publicamente, preferindo concentrar-se no negócio da venda de tecidos e vestuário. Em vão, pois a política neste tempo conturbado não deixa ninguém indiferente (acabará por assumir a sua inclinação para posições progressistas e democráticas, mesmo diante da polícia política salazarista).
A este propósito, Assis Pacheco relata o episódio verídico duma revolta militar contra o presidente Sidónio Pais, na Coimbra de 1918, que é aonde vive o nosso Benito na altura desta intentona ocorrida em várias cidades.
Ora, Benito, como qualquer ser humano, é curioso e, para mal dos seus pecados, também audaz. Vai daí resolve inteirar-se sobre aqueles tiros que "ecoavam ao longe, na cidade alta". No Café Montanha, da Baixa coimbrã, tem esta resposta audaciosa à interpelação dum amigo:
"«Vai ver a batalha?»
«Já agora porque não?», disse Benito. «Mais foguetes tem o San Bartolomé em Casdemundo [sua terra natal].»
O lente gabou-lhe a boa disposição, pensando para si que o que falta a este mundo maligno são os inocentes.
"
Nem o pobre homem sabia no que se metia. Seguem-se várias linhas de puro gozo literário. Aproveito para vos deixar um cheirinho bem gostoso:
"Viu, não viu, imaginou tão só, quando entrou na Alexandre Herculano uma rajada de metralhadora varreu a rua, ele esgueirou-se para a primeira porta, respirou fundo, ajeitou o chapéu, subiu três degraus encerados, era um colégio […]
Na meia hora que se seguiu a esta travessia da revolta de Outubro não houve tiros e Benito equivocou-se decidindo que algum dos lados ganhara, o que estava longe de suceder. […] Ao aproximar-se [dos Arcos do Jardim] um obus rebentou a empena de um prédio. Deitou de novo a fugir, rezando uma oração esquecida para que os estilhaços o poupassem e jurando que aquela era a última vez que se confundida com os assuntos da tropa. Na cerca do hospital estava montada uma posição de metralhadora. O sargento veio revistá-lo, e ao ouvir um senhor tão bem posto gaguejando em ourensano selvagem riu-se e abriu os braços:
«Um correspondente de guerra! Que mais há-de acontecer?»
Benito resolveu ficar com os soldados, que eram do Grupo de Subsistências. […] O sargento sondou-o:
«Está com quem, o cavalheiro?»
Benito podia ter respondido sinceramente que não estava com ninguém, que já lhe bastava o prodígio de galgar da Baixa à Alta sem um chumbo no cadáver, indubitavelmente salvo pelos anjos de gesso da igreja de Casdemundo. Mas o sargento puxava-o pela gravata, e ele disse num fio de voz:
«Estou com os homens de boa vontade.»
«Está com a malta!», rejubilou o sargento.
Ao cair da noite vieram ordens para a posição de metralhadora recuar.
[…]
«E você deu à sola.»
[pergunta dum amigo de Benito que ouve já o relato da sua aventura]
«Deixei-os lá a discutir, meti à Rua Larga e já não havia ninguém fardado, só civis. Perguntavam-me o Sidónio ganhou, a Artilharia ganhou? Eu, pela cara, respondia ganhou o Sidónio, ganhou a Artilharia, ganhámos todos.
"
Fernando Assis Pacheco
(Trabalhos e paixões de Benito Prada, 1.ª ed., Porto, Asa, 1993, p. 137-41)

1 comments:

Anónimo disse...

Olá,
Estou a ler este livro e é, de facto, maravilhoso.