sexta-feira, 23 de novembro de 2007

2 tiros no pé seguidos de 1 coisa trágica

Por sugestão do meu amigo Daniel, cá vai um texto mais longo sobre a actual contestação nas universidades francesas.

A actual contestação estudantil em França tem, como em anos anteriores, uma causa próxima e depois, por trás, um sentimento difuso de angústia e de apreensão em relação ao futuro. O descontentamento vem, assim, em vagas cíclicas, e por razões mais do que compreensíveis: as universidades francesas são a face massificada e degradada de um sistema de ensino superior que, como noutros planos da gestão da coisa pública neste país, é suposto produzir igualdade e acaba por produzir desigualdade. Os estudantes são os primeiros a senti-lo e, de tempos a tempos, explodem de indignação.

A causa próxima da contestação actual é uma nova lei sobre a gestão das universidades, à qual se tem chamado, talvez impropriamente, lei da autonomia universitária. Em boa medida, a autonomia agora aprovada consiste, em termos de gestão, num reforço dos poderes do presidente da universidade; em termos de financiamento, a universidade dependerá de contratos-programa assinados com o Estado e necessitará cada vez mais de recorrer a receitas próprias. Uma lei tão importante foi aprovada — à boa maneira Sarkozysta — em plenas férias de Verão. Houve umas negociações a correr com os reitores e com os sindicatos estudantis, umas cedências aqui e ali — e ala com a lei.

Dito isto, a primeira coisa que me chateia no movimento universitário actual é os estudantes serem contra a nova lei sem dizerem que o que é preciso é mais autonomia universitária ou um outro tipo de autonomia diferente desta. E que o que é preciso são garantias claras de que o Estado não vai deixar afundar, ao abrir o leque dos financiamentos universitários, os cursos de letras e de ciências sociais, como está a acontecer, e não só em França, mas em todo o espaço europeu.

(Dito isto, devo acrescentar que os professores universitários — nos quais me incluo — deviam estar na primeira linha deste combate que aqui reivindico. E não estão. Embora, neste preciso momento, tal luta se tenha tornado impossível)

A segunda coisa que me chateia é que a luta se faz essencialmente, tal como já tinha acontecido na grande contestação anti-CPE de 2006, através de bloqueios da universidade. Os alunos, que já têm enormes carências de base e semestres incrivelmente curtos, ficam várias semanas sem aulas. A actividade académica — colóquios, seminários — fica muito perturbada ou totalmente paralisada. E um lugar que é, ou deve ser, um lugar de vida e de inteligência fica fechado, bloqueado, abandonado. Os que fazem e defendem o bloqueio dizem-me que esta é a única maneira eficaz de luta, como se viu pela de 2006. Eu tenho as minhas dúvidas. Mas, de qualquer modo, não concordo com o método e nunca aderiria a uma luta que se medisse só pela eficácia.

A terceira, e principal coisa — e fundamental, e trágica — é a seguinte: os métodos da contestação actual são, demasiadas vezes, anti-democráticos e mesmo violentos. Para me referir ao caso da universidade onde ensino — a universidade de Ciências Humanas de Rennes —, uma clara maioria dos estudantes manifestou, por via de um referendo legítimo, a sua oposição ao bloqueio. Durante dois dias ele foi levantado, para recomeçar, imposto pela força de uma minoria, na segunda-feira seguinte. Os elementos mais activos do movimento de bloqueio da universidade de Rennes — uma parte dos quais não são estudantes — deram, além desta, várias provas de desrespeito pela vontade da maioria. No seu discurso, como tentei dizer aqui, aflora de forma explícita e muito inquietante o repúdio pela democracia — a mesma que, numa amálgama terrível, acusam de ter eleito Sarkozy.

(suspeito que uma das consequências da eleição de Maio passado tenha sido fazer passar uma franja da extrema esquerda para o horizonte da acção directa. Dizem lutar contra o sistema, mas a única coisa que estão a conquistar, neste momento, são umas instalações destinadas ao ensino de matérias tão relevantes para o Capitalismo mundial como História, Literatura e Línguas Estrangeiras)

Em Rennes, os bloqueadores ocuparam um dos edifícios da universidade e usam de intimidação em relação aos funcionários que lá trabalham. A presidência está a tentar, com dificuldade extrema e sem garantias de sucesso, levantar o bloqueio sem intervenção policial (que já ocorreu uma vez, na semana passada). Assim, a universidade, que já tinha sido alvo do mais longo bloqueio da contestação anti-CPE em França, vive talvez a maior crise da sua história. Por efeito da escassez de recursos e da concorrência real que existe entre as universidades de Letras pelo financiamento estatal, esta paralisação da actividade da instituição reflecte-se, para os anos seguintes, em perda de alunos, de lugares para professores e de receitas. Rennes é talvez um caso extremo, mas não é caso único.

É de uma ironia trágica que um movimento que se diz contra a precarização do ensino e das relações laborais contribua objectivamente, pela sua própria acção, para a precarização do ensino e das condições de trabalho.

P.S. No meio disto, a maioria dos alunos da universidade mantém uma assinalável lucidez. São pragmáticos e, apesar de desorganizados, não gostam de ser manipulados nem tomados por parvos. Mas sentem-se, compreensivelmente, abandonados. Hoje, os estudantes votam mais uma vez por via electrónica. Na segunda-feira, vamos tentar voltar a levantar o bloqueio, e há alguma esperança de recomeço de normalização. A ver vamos.

12 comments:

Anónimo disse...

"Suspeito que uma das consequências da eleição de Maio passado tenha sido fazer passar uma franja da extrema esquerda para o horizonte da acção directa."

A acção directa não é um posicionamento político-ideológico. É um comportamento, uma forma de actuar, que não se opõe, como resulta do seu texto, a um ideal democrático (ou a qualquer outro ideal de cariz político). Se assim não fosse, a acção directa não estaria prevista na lei de quase todos (para não dizer todos) os países designados democráticos.

Com um Estado que por toda a Europa vai assumindo cada vez mais traços repressivos e autoritários, a acção directa - tal como a legítima defesa - torna-se um dos principais instrumentos de combate ao sistema. Quer ela se desenvolva dentro da legalidade, quer, como no caso em França, à margem daquela. E como legalidade não é sinónimo de democracia, mesmo a acção directa ilegal não será sempre necessariamente antidemocrática.

Hugo Mendes disse...

Caro anónimo, se minorias activas quebrarem sistematicamente a lei contra o interesse da maioria desorganizada a quem nunca foi perguntado nada - alguém votou alguma coisa a favor dos bloqueios e ocupações? não, obviamente que não, porque se votassem a minoria perdia -, é óbvio que estamos perante acções anti-democráticas. Pode não querer definir democracia como primado da lei - o que já é discutivel, mas há seguramente excepçoes admissiveis; o problema é que esta não é uma delas, dado que a maioria dos estudantes está -e já se expirimiu vezes suficientes - amplamente contra as acções que prejudicam milhares de estudantes. Se houver dúvidas, então os estudantes - todos os estudantes - que votem sobre a continuação ou nao dos bloqueios. Se se fala de democracia, entao que se aja em conformidade, em vez de em nome daquela bandos de extremistas, que provavelmente não representam ninguém para além deles próprios, se imporem pela acção exclusiva da intimação e da força - elementos que nada têm de democráticos.

Anónimo disse...

Caro Hugo Mendes, existe um só interesse na maioria desorganizada? Parece-me "óbvio" que não. A democracia é o primado da lei? Basta pensar nos regimes autoritários e nas puras ditaduras que invocavam a lei para reprimir ou forçar quem se lhes opusesse. Nunca ninguém por essa razão achou que esses regimes eram menos autoritários. E acrescento que a democracia também não se resume à vontade da maioria. Tudo isto me parece bastante claro.

P. S. Não será democrática a luta conduzida por aqueles que consideram que a Universidade deve ser uma coisa diferente da que é proposta pela nova lei do Sarkozy, que, na sua (deles) opinião, estabelece um regime de autonomia democraticamente deficitário?

Zèd disse...

Caro anónimo, há outras maneiras de contestar a lei da autonomia universitária de Sarkozy, que não passam pelo bloqueio nem por outras formas de acção directa.

Para além do que já disse o André, e o Hugo, na questão da legitimidade destas acções, e de quem são os reais prejudicados, deve acrescentar-se que estas acções são uma prenda a Sarkozy. Se todos os outros argumentos não chegarem então lembre-se que Sarkozy está onde está porque sempre soube e sabe capitalizar politicamente com este tipo de tiros no pé. Este tipo de acções se vizam ser oposião a Sarkozy são COMPLETAMENTE CONTRAPRODUCENTES.

Anónimo disse...

Caro Zèd, não lhe parece que esse discurso está a ficar gasto? Não se deve adoptar formas de contestação ilegais ou do tipo da acção directa porque isso só vai ajudar quem está no poder. São prendas, para usar a sua expressão.

Sinceramente, com ese discurso é que não se vai a lado nenhum. Fizessem todas as Universidades o bloqueio e cá estaríamos para ver o resultado. E se esse modo de contestação se estendesse a outros sectores, queria ver se o Sarkozy continuaria a ver tudo isso como prendas.

Hugo Mendes disse...

Caro Anónimo,

"A democracia é o primado da lei? Basta pensar nos regimes autoritários e nas puras ditaduras que invocavam a lei para reprimir ou forçar quem se lhes opusesse. Nunca ninguém por essa razão achou que esses regimes eram menos autoritários. E acrescento que a democracia também não se resume à vontade da maioria. Tudo isto me parece bastante claro"

É verdadeiramente espantoso que Sarkozy - em que eu nunca votaria -, que foi eleito democraticamente num pais civilizado com 85% de participação nas eleições presidenciais (para além de que a lei de autonomia universitaria estava, que me lembre, no seu programa, por isso foi a proposta foi explicitamente sujeita a sufrágio universal) é acusado de "autoritário" (e se calhar é noutras coisas, mas neste caso em concreto não vejo o autoritarismo) e outras coisas do género, enquanto que um bando de extremistas que bloqueiam instituições e em quem ninguem votou para coisa nenhuma é que sao os representantes da "democracia"! Esta inversão é, devo dizer, verdadeiramente espantosa.

«Não será democrática a luta conduzida por aqueles que consideram que a Universidade deve ser uma coisa diferente da que é proposta pela nova lei do Sarkozy, que, na sua (deles) opinião, estabelece um regime de autonomia democraticamente deficitário»

A resposta é obvia: não. Está a confundir o conteudo das propostas com a questao que é central nisto tudo, que é a procedimental.
Para mais, repito: porque esses luminosos democratas de cadeado na mão não se dão ao trabalho de perguntar aos estudantes o que eles acham? A resposta é de novo óbvia: porque perdiam toda a qualquer legitimidade que pensam ter. Ou o voto não é democrático para si? Para mim, é o unico dispositivo que permite evitar o que se passa agora, que é o reino da intimidação. Sobre "cultura democrática" estamos conversados.

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

"Fizessem todas as Universidades o bloqueio e cá estaríamos para ver o resultado. E se esse modo de contestação se estendesse a outros sectores, queria ver se o Sarkozy continuaria a ver tudo isso como prendas".

Ele agradecia de bom grado; era como se uma espécie de releição antecipada para o segundo mandato. Ainda há quem pense que o estilo de vida dos "democratas de cadeado na mão" é mesma que a vida do resto das pessoas, e que representam os seus interesses e as suas preocupações; e que as pessoas, ao fim de algum tempo, não perdem a paciencia com esta manias de brincar à política. Enfim.
Como diz uma pessoa minha conhecida: «é por causa desta "esquerda" que um dia acabo de direita».

Anónimo disse...

Caro Hugo Mendes, podiámos ficar até amanhã nisto que duvido que chegássemos a um entendimento. São posições demasiado distantes para nos entendermos. Será o último comentário que farei sobre este assunto. Agradeço-lhe a discussão.

Continuo a pensar que o combate por uma sociedade mais justa (ignore a frase feita; é para poupar tempo) dificilmente será efectivo se a "pax neo-liberal" em que vivemos não for posta em causa.

A avaliação da democraticidade de determinada forma de contestação não se pode fazer à luz da lei nem à luz dos interesses de uma elite estudantil mais preocupada com o seu emprego futuro do que com as condições de ensino e de vida das universidades.

O que diz dos jovens que bloquearam as universidades não será muito diferente do que foi dito por altura do Maio de 68. À acção responde a reacção!

Cumprimentos a todos.

Hugo Mendes disse...

Tem razao, podíamos ficar aqui até o próximo ano. Deixo apenas duas notas:

«(...) nem à luz dos interesses de uma elite estudantil mais preocupada com o seu emprego futuro do que com as condições de ensino e de vida das universidades».

É engraçado: se esta "elite estudantil" (se for maioria dos estudantes que está contra os bloqueios, não percebo como pode ser a "elite"; para mais, as "elites" são, quase por definição, aquelas que não têm que se preocupar com o emprego, ao contrário do resto...) não se preocupar com o seu emprego, virão amanhã os do costume dizer que há excessivo desemprego dos licenciados; quais são as prioridades, entao? A minha hipótese é que elas estão definidas para maximizar os protestos, ampliando os problemas em vez de os tentar resolver. Hoje protesta-se sobre A, ignorando B; amanhã, protestaremos sobre B, que negligenciámos atrás. E por assim em diante.

"O que diz dos jovens que bloquearam as universidades não será muito diferente do que foi dito por altura do Maio de 68".

É engraçado relembrar Maio de 68, e a culpa por associação não preocupa; Raymond Aron foi um observador lúcido do que se passou, e diria do que se passa hoje coisas relevantes sobre a "legitimidade revolucionária" dos democratas de hoje e da eficácia dos eventos (mas já sei: para uma esquerda Aron era mais um "reaccionário"). Por falar em "eficácia": no acto eleitorial imediatamente a seguir a Maio de 68 quem ganhou? De Gaulle. Pois é.

Zèd disse...

caro anónimo,

"Caro Zèd, não lhe parece que esse discurso está a ficar gasto?"

O que está a ficar gasto é a direita ganhar sistematicamente as eleições em França, e a esquerda não mudar de discurso. Em vez de viver nesse seu mundo de ideiais olhe para a realidade. O Sarkozy ganhou as eleições com propostas para diminuir o direito de greves, foi um dos temas fortes da sua campanha, e deu-lhe votos. As greves da semana passada foram um fracasso, com a participação a descer de dia para dia, com a popularidade das revindicações dos grevistas abaixo de zero, e com os trabalhadores a voltarem ao trabalho de mãos a abanar. Foi uma vitória para Srakozy em toda a linha. A credibilidade da esquerda desce de dia para dia, e a direita pode cada vez mais estar segura que vai ganhar quantas eleições houver nos próximos anos. A não ser que o resultado de eleições demotráticas lhe interesse pouco, e pense que a esquerda vai chegar ao poder por meios "ilegais", o caro anónimo devia preocupar-se mais com a REALIDADE.

Zèd disse...

A ler:
http://www.lemonde.fr/web/article/0,1-0@2-3224,36-982310@51-972969,0.html