terça-feira, 27 de novembro de 2007

Concurso de tiros no pé

O Renato nos dois posts anteriores, e no debate com o Zé Neves, desviou o debate sobre se o regime Chavista, na Venezuela, é uma democracia ou não, para outro, eventualmente mais interessante, sobre qual o rumo que a esquerda deve tomar. Aproveitando a ressaca de duas semanas de greve aqui em França, vou aproveitar a "deriva" do debate para dar outro exemplo de via que a esquerda NÃO deve seguir, o da esquerda francesa. Não se trata de idealizar a democracia (desculpa Renato), mas de fazer uma crítica muito concreta à prática de uma certa esquerda.

Começando pelo fim, depois de quase duas semanas de greves nos transportes, Sarkozy vem afirmar que não recua, e que as suas reformas são para levar até ao fim. É nesse momento que os sindicatos terminam com as greves e se sentam à mesa das negociações. Aqui há algo errado (digo eu...), normalmente quando o governo se mostra intransigente é altura de começar as greves, não de acabar. Ora acontece que nessa altura os sindicatos já tinham desbaratado qualquer capital de contestação que poderiam ter. A adesão à greve baixava de dia para dia e as reivindicações dos grevistas eram impopulares para a maioria da opinião pública. Naturalmente que neste braço de ferro, como se temia, é o governo quem leva a melhor. Isto insere-se num clima em que uma parte da esquerda parece querer ganhar na rua o que perdeu nas urnas. A contestação estudantil de que fala o André é um bom exemplo disso mesmo.

A contestação actual, tal como está a ser feita, é antes de mais um erro de estratégia. Tão pouco tempo depois de a direita ter ganho claramente as eleições presidenciais e legislativas, e quando uma parte destas reformas foram promessas eleitorais, Sarkozy e o seu governo têm uma forte legitimidade. E, mais importante ainda, qualquer contestação tem que ser em defesa de uma causa justa, e vista como justa pela opinião pública. A manutenção de regimes especiais de reformas para os maquinistas, que são objectivamente um privilégio de uma classe em particular, não são, obviamente, bem vistos (nem me parecem sutentável hoje em dia reformas aos 50/55 anos). Fazer a oposição da Sarkozy na rua, neste momento, e desta maneira, só descredibiliza a esquerda. Para além da questão de estratégia, também por uma questão de princípio tenho reservas. As formas extremas de protesto que não tenham um apoio da opinião pública, e que não tenham uma causa justa (e acredito que numa democracia as duas coisas tendem a andar juntas), pecam por falta de legitimidade. Estes protestos - Greves nos transportes, a que se juntam a função pública, com os estudantes a tentar ir à boleia - aparecem como uma amálgama de sentimentos difusos anti-Sarkozy que procuram apenas um qualquer pretexto para atacar o geverno, seja o pretexto qual for. Claro que o governo Fillon/Sarkozy agradece, e vai já tentar levar a reboque a reforma do contrato de trabalho, essa sim bem mais preocupante para a generalidade dos trabalhadores. Mas quando chegar a altura de protestar contra o que realmente interessa os cartuxos vão estar já todos queimados.

E nisto onde andam os partidos? Do PSF não se houve falar. Os pequenos partidos à esquerda do PS estão na rua, a tentar agitar as massas. Cada um por si a tentar ser o polo aglutinador da contestação, o que quer dizer na prática cada um a puxar para seu lado. Numa altura em que a direita vai estar no poder por cinco anos, com a presidência e a maioria absoluta, é uma boa altura para a esquerda francesa respirar e pensar. É uma boa altura para se lançar num debate ideológico entre esquerdas, para procurar convergências e estratégias de oposição comuns. Frentista se necessário. Nunca como agora foi uma boa altura para fazer uma união da esquerda, com causas e lutas comuns. O que é exactamente aquilo que a esquerda francesa não está a fazer.

3 comments:

Renato Carmo disse...

Identificar um tiro no pé é um excelente ponto de partida para começar a idealizar a (E)squerda e a (D)emocracia.

Um abraço, Renato

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

Zèd, concordo com tudo o que dizes, e adiciono uma história interessante sobre a questão dos regimes especiais. Hoje, muitos pensam que esta tentativa de acabar com eles é mais um exemplo de medida neoliberal - como se estes regimes fossem de 'esquerda' ou exemplos do 'modelo social francês'. Ora, infelizmente, são exemplos deste ultimo sim,mas não vejo o que é que a coisa tenha de esquerda. Estes regimes não tentam resistir ao suposto neo-liberalismo; eles resisitiram com sucesso em 1945, quando logo a seguir à guerra a esquerda francesa tentou construir um regime universal de segurança social, como os regimes social-democratas tinham na Escandinávia, ou o Labour em Inglaterra. O objectivo era unificar as caixas de segurança social que proliferavam às centenas (como continuam ainda hoje), universalizando as regras contributivas para todos, de forma a acabar com situações de excepção que tinham sido conseguidas ao longo do tempo por favores políticos para calar as vozes descontentes do grupo A ou B. Os regimes especiais, é preciso que seja dito, são fruto do efeito de "push and pull" de pequenos grupos de activistas profissionais que eram capazes de chantagear os governos para cederem aqui e ali. Não há aqui nenhum principio de solidariedade operária, nenhem principio de justiça social, nenhuma lógica universalista de partilha dos riscos. Há apenas egoismos grupais. A famosa proposta de Paul Laroque, em 1945, caiu por terra porque ninguém teve coragem de acabar com estes particularismos e respectivos privilégios. Até hoje a situação mantém-se. Era muito importante que a "esquerda" deixasse de defender aquilo que não tem nada de justo, universal ou solidário, e que, para mais - algo que é central no futuro hoje, mas nao era há 40 anos -, coloca em risco a sustentabilidade dos sistemas públicos de segurança social. Se for Sarkozy a conseguir acabar com estas algumas (ou todas) destas situações injustificáveis, que seja: tiro-lhe o chapeu. Dessa forma, estará a fazer um favor à esquerda, porque a divisão de grupos profissionais em multiplos regimes de regras que apenas a si dizem respeito leva à reprodução dos multiplos egoismos, e não ao seu fim. No dia em que os assalariados franceses se virem no mesmo barco que os outros - sejam do público ou do privado -, talvez isso aumente a propensão para olharem para fora das paredes do seu regime especial e preocuparem-se com os trabalhadores no geral e não apenas com os seus colegas de sector.
É por isso que o "modelo social frances" a que tanta gente se agarra não tem nada de esquerda. Que seja a direita acabar com os seus traços conservadores e napoleónicos é apenas mais uma ironia da história. E mais uma prova da fraqueza institucional e politica da esquerda francesa.

abraços
Hugo