quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Homossexualidade, Genética e Darwinismo

Andava a blogosfera lusa há uns meses a debater entusiasticamente o sexo anal - a estimada Patrícia Lança teve a cortesia de abrir as hostilidades (a propósito, o que é feito de Patrícia Lança?) - quando um anónimo deixou na caixa de comentários de um post do Womenage A Trois esta pérola:

Safo...... anda tudo muito anal
Estes amantes do sexo anal / homosexualidade até da a impressão que pretendem fazer crer que a homosexualidade é tão normal como a heterosexualidade. Tragédia.
Se fosse assim tão normal, 50% da população seria homossexual ou por outro lado a espécie comportava em si os genes da própria extinção.
As estatísticas desmentem esmagadoramente a perspectiva de normalidade.


(na realidade isto é apenas um pequeno excerto, há muito mais sumo na dita caixa de comentários)

Este tipo de argumento pseudo-científico ouve-se amiúde em conversas de Café, e vale a pena rebater. A pérola do Anónimo merece-me vários comentários:
- Ambas as palavras Homossexualidade e Heterossexualidade se escrevem com dois 'Ss'.
- Falar de Homossexualidade e sexo anal como se fossem a mesma coisa leva-me a pensar que o dito Anónimo não está muito familiarizado com a anatomia feminina. Caro Anónimo, se por mero acaso estiver a ler estas linhas aqui vai uma informação que lhe pode eventualmente ser útil: As mulheres também têm ânus, o que torna possível a prática do sexo anal heterossexual.
- Confesso que não percebi de onde saiem aqueles 50%. Quererá o anónimo dizer que tudo o que não existe em pelo menos 50% da população não é normal? Suponho que as estatísticas demonstram então que ser loiro de olhos azuis não é normal. Seguindo o raciocínio do anónimo "não venham cá dizer que ter olhos azuis e cabelos louros é tão normal como ser moreno de olhos castanhos, porque se fosse então 50% da população seria loura de olhos azuis".

Mas o mais interessante é a aquela parte "a espécie comportava em si os genes da própria extinção". Vamos por partes.
Primeiro: Qual é o problema, do ponto de vista moral, de comportar o genes da sua própria extinção? Estamos obrigados moralmente por uma razão qualquer a contribuir para o sucesso evolutivo da espécie humana? Seremos todos obrigados a ter filhos quer queriamos quer não? Se é esse o caso, então não são só os homossexuais que estão em falta, mas todos quantos decidem não se procriar, padres e freiras incluidos. Mesmo se fosse verdade que genes causadores da homossexualidade conduziriam a espécie para a extinção (já lá vou), isso não faz da homossexualidade nem mais nem menos condenável do ponto de vista moral. Uma coisa nada tem a ver com a outra.
Segundo: Apesar de não acrescentar nada, nem a favor nem contra a aceitação da homossexualidade, mas só para chatear quem usa este tipo de argumentos devo dizer que a frase "a espécie comportava em si os genes da própria extinção" do ponto de vista Darwiniano está errada. Claro que numa abordagem simplista e superficial pode parecer óbvio que genes causadores da homossexualidade deveriam ser eliminados pela selecção natural, mas aí o problema é da abordagem simplista e superficial. Ele há pessoas que se dedicam a estudar estas coisas mais aprofundadamente e chegaram à conclusão que há várias explicações possíveis para uma componente genética da homossexualidade compatíveis com a teoria darwiniana da evolução. (Pequeno à parte - Nunca é demais dizê-lo: seguramente que a homossexualidade não é determinada estritamente por factores genéticos, mas tem uma componente genética. Há indicações de que factores hereditários predispõem para a homossexualidade, tal como há evidências que factores ambientais/sociais contribuem para a homossexualidade. O mais plausível é que seja o resultado de uma conjugação dos genes e do ambiente).

E o resto do post é mesmo só para quem gosta dos detalhes técnicos. Aqui vão algumas explicações possíveis para a existência de genes da homossexualidade, compatíveis com o darwinismo:
1) Os mesmos genes que predispõe homens para a homossexualidade fazem com que as mulheres sejam mais férteis. Assim esses genes embora reduzam a fertilidade dos homens mantém-se na população porque aumentam a fertilidade das mulheres, e assim não são eliminados pela selecção natural. Este artigo apresenta evidências neste sentido. O recíproco também é válido para a homossexualidade feminina.
2) O altruísmo familiar. Se os homossexuais fizerem com que os familiares próximos, particularmente irmãos, tenham mais filhos, indirectamente favorecem a selecção dos seus próprios genes, uma vez que partilham uma grande parte dos seus genes com os familiares próximos.
3) Uma variante de um gene pode predispor para a homossexualidade quando o indivíduo é homozigótico mas aumentar a fertilidade ou sobrevivência quando é heterozigótico (homozigótico é quando um indivíduo herda duas cópias iguais do gene, uma do pai e outra da mãe, e heterozigótico quando herda dos pais variantes diferentes do mesmo gene). O exemplo clássico deste caso é o da Anemia Falciforme: os homozigóticos para o gene mutado da hemoglobina são anémicos, mas os heterozigóticos são resitentes à malária, mais do que os individuos portadores apenas da hemoglobina comum. Em regiões com forte incidência de malária os gene mutante é favorecido mesmo que seja fatal para os homozigóticos.

Para mais sobre o assunto ler este e este artigos (infelizmente o texto completo é só para assinantes).

5 comments:

Anónimo disse...

Excelente post!!!

Vale sempre a pena "perder" tempo a desmontar as mensagens extremistas. Ignorá-las é deixar que se instalem e ganhem força. Os indivíduos com ideias semelhantes, mesmo quando, pelo vistos, tenham as mais basilares dificuldades gramaticais, não podem nem devem ser ignorados

vallera disse...

Grande post! Zéd no seu melhor!

Zèd disse...

Achas que foi grande? Devia ter encurtado um bocadinho, não? ;-)

Ana Matos Pires disse...

Boa, Zèd. Há que acreditar nos efeitos benéficos da pedagogia eheh

Miguel Costa disse...

Excelente. Uma verdadeira bazucada num argumento primário (ia chamar "idiota", mas o outro qualificativo assentaria melhor a Anónimo da Silva).