segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Idealizar a democracia? Vamos a isso!

A propósito deste debate que se iniciou com a discussão em torno do tipo de democracia vigente na Venezuela, o Zé Neves respondeu ao meu post anterior. Das suas afirmações retenho esta (que gostaria de responder de uma forma concisa e clara):

“Creio, no entanto, que a idealização da democracia deveria igualmente preocupar democratas como o próprio Renato. Não o digo apenas – ou tanto – pelo que essa idealização pode ter de afim aos projectos neoconservadores de exportação da democracia. Falo sim de algo que me parece anterior a isso: as análises tipológicas sobre a democracia correm muitas vezes o risco de só existirem “fora da história” e de só servirem num tal contexto”.

Devo confessar que não percebo muito bem o problema de “idealizar a democracia”. Aliás, entendo até que esse tem sido um dos grandes problemas da esquerda e do socialismo desde das concepções propostas a partir da segunda metade do século XIX (refiro-me particularmente a Marx e Proudhom). As vias ideológico-políticas propostas desde então foram na sua maior parte idealizadas fora de um contexto de democracia. Este sistema foi sempre associado aos interesses e ao domínio da burguesia. Penso que isso foi um dos grandes erros estratégicos do socialismo do séc. XX: deixou que um determinado modelo de democracia se impusesse pela mão dos partidos sociais-democratas e pelos conservadores.
Herdamos agora um modelo que está em grande crise e que assenta basicamente em dois pilares: a democracia representativa e a instituição do Estado Providência. Foi o que restou e infelizmente não temos muito mais em que nos agarrar. Contudo, isto não quer dizer que não tenhamos outra alternativa senão assumir um discurso e uma prática de resistência. Essa é a via da esquerda dita reformista cujo objectivo pragmático passa unicamente pela reforma do Estado Social (para que este permaneça com a maior parte das suas funções de solidariedade institucional).
Entendo que para além da resistência há mais campo de luta para a esquerda. E este deve jogar-se essencialmente dentro de um processo democrático e de democratização. Considero que a posição da esquerda socialista não deve ser, mais uma vez, a saída de cena apregoando aos quatro ventos a ineficácia do sistema e apresentar a revolução como a única saída possível. Muitas mudanças e rupturas podem efectivar-se por intermédio de um sistema mais vasto e pluridimensional de democracia. Talvez tenha chegado a hora da esquerda começar a idealizá-lo!

6 comments:

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

Renato,

Deixa-me introduzir mais uma variável para o debate (ou futuros debates) sobre a democracia, a esquerda, ou a luta desta contra os défices democráticos (e outros). Não é apenas por este debate (onde tenho estado como espectador porque acho que o Chavez é uma espécie de não-assunto, esta-se mesmo a ver como vai acabar; pessoalmente, quanto mais tempo a esquerda passar a discutir Chavez mais tempo passa sem decidir as coisas importantes e que funcionam) mas por outros que venham. E aqui, eu gostava que as coisas que funcionam e as que não funcionam - para usar a mesma expressao -, isto é, a questao da eficácia, em particular a relação da democracia com a eficácia economica fosse tematizada seriamente. É que discutir democracia do ponto de vista ideológico é uma coisa (pobre a meu ver); do ponto de vista normativo, da filosofia política, é outra (e não vi neste discussoes neste plano, a esquerda parece querer continuar a entregar a filosofia política à direita); do ponto de vista das ciencias sociais é outra também, nao apenas da ciência política que o José Neves tanto parece desprezar - pelo que depreendo do seu post -, mas da economia também. Se não metermos isto na discussão, ela será sempre razoavelmente vazia.
É que, para resumir isto de forma grosseira, o problema é este: mesmo que sejamos todos grandes democratas, democratas basistas, das discussões até às 3 da manha, há um ponto, mais ou menos óbvio, a partir do qual isto torna as coisas insuportavelmente ineficientes. Se quisermos exportar esta caricatura para o funcionamento de sistemas complexos como são as sociedades e as economias contemporâneas, estamos perante um problema sério. Dou um exemplo actual e que tem merecido atenção por parte de cientistas sociais de várias disciplinas: o facto de os conselhos da empresas alemãs terem uma presença, por vezes paritária, dos sindicatos, juntamente com gestores, accionistas, etc. Eu sei que para muito isto nao é particularmente excitante, nao é suficientemente basista, e não é estimulantemente democrático. Bom, mas, valorize-se isto ou nao, estamos perante uma situação de representaçao institucionalizada dos trabalhadores nas decisões das empresas, e nao há duvidas que os trabalhadores têm poder nas decisoes das firmas - o que representa uma "horrivel" violação dos direitos de propriedade, vejam só, como a direita libertária nao se cansa de apontar. A questao é que hoje esta organização das coisas a ser fortemente posta em causa, porque num contexto de forte mudança tecnológica e perante a necessidade das empresas se adaptarem, e adaptarem a sua força de trabalho (por vezes diminui-la) aos choques externos, os sindicatos não deixam os accionistas e os gestores tomar certas decisoes, bloqueando-as. Eu não estou a tomar partido de ninguém neste caso em particular, nem a dizer que uns são isto e os outros são aquilo; muitas das situações sao dramáticas para as empresas, como tambem são para os trabalhadores, e percebe-se que cada grupo defenda o interesse dos seus. Este exemplo serve apenas para mostrar que a por vezes tao desprezada democracia 'institucional', 'sistémica', etc., é, no nosso mundo economico, um pequeno luxo. Falemos do capitalismo, ou do socialismo, ou do que quiserem, em sistemas economicos a democracia tem de ser necessariamente "limitada" - se um pais quiser ser minimamente competitivo. Não vale a pena entrar num debate abstracto entre democracia vs. eficácia economica. Haverá modos e contextos e momentos onde um avanço numa representa um avanço noutra: foi isso que provavelmente aconteceu na Alemanha e noutros países europeus quando havia um modelo de crescimento estável e previsivel, alias mais estável e previsivel do que a força de trabalho se não estivesse enquadrada pelos sindicatos e se estes nao fizessem chegar algumas das suas reivindicações lá "acima". Mas a partir de um certo grau de imprevibilidade dos mercados e da evolução tecnologica e um certo grau de democracia - não vale defini-lo abstractamente, é preciso ver caso a caso -, ela é contraproducente do ponto de vista da eficácia, da eficiencia, e tem custos economicos. Claro, podemos querer arcar com eles; ter mais "política" e um bocadinho menos de riqueza. Eu acho isto optimo e basicamente é isto que divide a Europa da América: na verdade, é como se comprássemos instituições um pouco mais democráticas. Mas é preciso também saber que vivemos no mesmo mundo, que a nossa defesa da democracia tem - a partir de um dado limiar - custos, e que temos de saber se queremos pagar por eles.

E aqui esbarro sempre no mesmo problema das discussões com pessoas que vivem a sua existência numa bolha de idologia e política. Eu acho isto optimo e se há pessoas com quem se tem gosto em conversar, é com esses apaixonados. O problema é que estas pessoas sao - e a sociologia serve para alguma coisa, serão no futuro - uma minoria. Não vale a pena quantificar percentualmente; é residual. E é aqui que emerge o paradoxo que realmente atrapalha estas pessoas: é que, em democracia, estas pessoas contam muitíssimo pouco. A propria ideia de democracia, que dizem estar corrompida, ser uma farsa, ser pouco "democrática" - é preciso "democratizar a democracia", diz-se muito (mas quando o Giddens e o Boaventura usam o mesmo chavão, algo vai errado) -, etc., limita mortalmente a influencia destas pessoas no funcionamento do sistema (talvez por isso o ideal revolucionário nunca morra: esse seria o momento em que essas pessoas poderiam finalmente fazer a diferença). Claro, podem influenciar a opiniao publica, criar uma hegemonia ideologica qualquer, e esse trabalho existirá sempre - felizmente. Mas a propensão é sempre a de pregar aos convertidos; claro, pode haver picos de opiniao favorável, conjunturas que tornem a sua voz mais audível, etc., mas a influencia será sempre relativamente reduzida. Há quem diga que nunca passa do 15%, no máximo dos máximos (valor que aliás, coincide bastante com os votos que o BE e PC, e da "gauche de la gauche", em França, nos seus melhores dias); mas pode ser bastante menos. Com isto não quero dizer que não há influencia eleitoral; quero apenas dizer que as discussoes sobre-ideológicas completamente desligadas da realidade da vida das pessoas - ou, por ex., das consequencias no seu quotidiano que uma série de opções politicas tomadas a favor de um aprofundamento da democratização de certas insitituições - falham completamente num plano que é este: as pessoas são muito menos politizadas que os 3, 4, 5% da população (estimando isto por cima), que vive, que 'respira' política (à esquerda e à direita). É por isso que ao fim de alguns dias/semanas o Maio de 68 tem colapsar, e é por isso que as greves em França, se produtores de certos excessos, causam mal-estar e potencialmente um backlash anti-grevista - porque as pessoas não têm paciencia para viver no mesmo registo hiper-politizado e hiper-ideologico de uma pequena minoria.

Com todo o respeito, eu acho que a maioria das pessoas se está a borrifar - e provavelmente com razão - para a "democracia enquanto movimento constituinte", para utilizar a expressão do José Neves. Francamente, acho que isto é poluir o debate. Eu não sei o que é, nem sei em que é que possa ser útil, conceber a democracia como "movimento constituinte" (tirando momentos muito particulares, de existência breve, da vida das sociedades). Há definições com certeza - cada uma mais academica e abstracta do que outra (obrigado Negri). Mas isso não adianta nada: ela nao aborda as questões dificeis - algumas a que aludi acima. É precisamente, aliás, que existem tipologias (que o José Neves parece também nao gostar), para falarmos de forma clara e, sobretudo, para pensarmos clara. Pensar de forma clara significa, entre muitas outras coisas, perceber que as pessoas do mundo lá fora, pouco politizadas, mas que são cidadãos como nós, para além das pessoas que votam, não querem saber da democracia enquanto "movimento constituinte". No limite, isso são chavões, uma especie de "masturbação intelectual" SE não houver propostas concretas e exequíveis que traduzam esse discurso para políticas públicas específicas. Aqui, naturalmente, não só precisamos da ciencia política, da economia e da sociologia - porque são elas que nos ajudam a perceber o que funciona e não funciona, quais os custos da política X, etc. -, mas precisamos tambem de pensar pragmaticamente no que pode melhorar, progressivamente, a vida das pessoas - sabendo que elas, em maioria, podem rejeitar o que uma minoria poderia achar "o que se devia fazer".
Para embrulhar este lençol de uma forma um bocado abrupta que já vai estupidamente longo: parece-me que boa parte da esquerda perde demasiado tempo em debates "ideológicos" (que são coisas de seita, really) - usando paralavras que já ninguem sabe bem o que significam: "socialismo", "capitalismo" -, mas claro, onde eu quero chegar é que problema nao é de linguagem, mas de pensamento -, falhando onde devia investir, a montante e a jusante: na filosofia política, para esclarecer que principios e ideais devemos defender, e quais as contrapartidas de optar por maximizar o principio A, em detrimento do principio L, por exemplo; e nas ciencias sociais, que trazem as grandes discussoes sobre o conceito A ou B para próximo das pessoas e obrigam os mais politizados a enfrentar a realidade (mas que é tantas vezes ambigua) das estatísticas, do trabalho de falsificação, de debate aberto - que é o oposto ao espírito de seita, tantas vezes dado mini-oligarquias (porque é que os partidos de extrema-esquerda, tanto dados à conversa da "democracia instituinte" etc., sao liderados pela mesma pessoa - ou seus amigos - durante, por vezes, décadas e décadas?; será que isto não leva a sua grande batalha a reflectir o que teorizam?).
Se isto se resume numa formula, seria mais ou menos assim: menos debate "ideológico" (tantas vezes preguiçoso), e mais filosofia política (que disciplina o pensamento) e ciencias sociais (que disciplina a nossa visão da realidade) [claro, a filosofia limita os excessos empiristas das ciencias sociais e estas controlam os excessos especulativos da filosofia; o equilíbrio será sempre instável]. Quando e se uma boa parte da massa cinzenta da esquerda passar esta linha, tenho a certeza, os debates vao ser muito mais interessantes e ricos. E, porque dados menos a "masturbãções intelectuais", mais humildes também.

Bom, acabei por escrever demais - isto devia ter sido um posto no "Véu", paciencia - e disse muitas coisas dispersas, espero que se percebam algumas, pelo menos as mais importantes.

abraço
Hugo

Renato Carmo disse...

Epá só te respondo quando me entregares o texto :)

Hugo Mendes disse...

É justo :)!

tourais disse...

O Hugo Mendes era uma pessoa que dava gosto ler no "Véu da Ignorância". Depois veio a oportunidade de se chegar ao sopé do Olimpo e tudo mudou. Li-o, em tempos, defendendo esta inenarrável equipa ministerial da Educação e algumas das medidas por ela tomadas, usando palavreado oco "emprestado" do eduquês. Chavões semelhantes aos que vivem na bolha socialista - que não é certamente o país real.
Vem-me sempre à memória o último parágrafo de "Animal Farm". Enfim, o poder - ou a proximidade dele - muda as pessoas. Algumas pessoas.

Hugo Mendes disse...

Caro Tourais,

Não retiro uma linha ao que escrevia no "Veu da Ignorancia". Escrevia contra a direita e contra uma parte da esquerda. Podemos até fazer um debate "documentado", com posts analisados e tudo.
Se na altura escrevia mais contra a direita, e agora mais contra a tal certa esquerda, é porque me interessa muito mais fazer um debate interno à esquerda (a direita portuguesa é, efectivamente, muito pouco interessante).

Para além mais, eu não tenho muita paciência para pregar aos convertidos, e se isso me faz perder leitores à esquerda - porque escrevo por vezes coisas pouco simpaticas como os sindicatos, a função pública ou até os professores -, paciência.
Penso o que pensava no Veu da Ignorancia e, se alguma coisa mudou, foi que o que pensava ficou reforçado: boa parte da esquerda tem as prioridades viradas do avesso, e protege os que mais têm e deixa sem protecção nenhuma os que menos têm. Fosse alguém compreender isto.
[Quer um exemplo? Portugal gastava em 2004 quase tanto em despesas sociais como países com Estados sociais mais inteligentes do que o nosso (24,9% nós; por exemplo 26,3% no caso da Noruega). Como é que Portugal tem tanta pobreza e desigualdades gastando quase tanto que um dos paises mais ricos e mais igualitarios do mundo? Uma das razoes é precisamente o facto de as muitos recursos irem parar aos bolsos de quem não precisa: o chamado "welfare for the rich". A isso, muita esquerda fica caladinha, porque a sua lei genética parece ser "toujours plus!" - Há que gastar sempre mais, mesmo que seja da forma mais idiota possivel]