quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Da rua à prática política

As investidas da direita contra o Estado social visam um só objectivo: substituir o Estado pelo mercado. Como se entre estas duas instâncias não existisse mais nada. No entender do discurso económico dominante (infelizmente, parece que deixou de haver discurso económico de esquerda), tanto o Estado, como o mercado são constituídos, basicamente, por factores de racionalidade. Nesta óptica, a racionalidade do mercado gira fundamentalmente em torno da maximização de ganhos e da minimização de custos, enquanto a racionalidade do Estado é, do seu ponto de vista, essencialmente reprodutiva, no sentido da manutenção dos interesses instituídos.
Por outro lado, fora destas instituições parece que domina a irracionalidade. Para estes iluminados, a sociedade civil é um logro e uma inutilidade. Quando se manifesta move-se segundo as batutas manipuladoras de algumas organizações que lhe são exteriores, como é o caso dos partidos ou dos sindicatos. Por este motivo, sempre que a rua ganha aos parlamentos ou às bolsas, é porque foi instrumentalizada. Nunca reconhecem racionalidade à rua, encaram-na, na maior parte das vezes, como um bando de alienados cuja motivação é simplesmente insondável e, por isso, muito pouco racional.
Face a esta visão, conservadora no que diz respeito ao Estado e liberal no que concerne ao mercado, é necessário encetar um contraponto… Uma outra narrativa que conte uma história diferente sobre a natureza da sociedade civil e da sua importância enquanto elemento (re)organizador dos sistemas sociais económicos. Uma narrativa que a partir da rua construa novos horizontes ao Estado, ao mercado e também à democracia. As movimentações de protesto representam um ponto de partida que não culminam com o recuo, meramente circunstancial, do Estado (ou do mercado). O protesto gera consciência e esta, por sua via, deverá gerar discurso e acção.
Muito bem, provavelmente até aqui as várias esquerdas estarão de acordo. O problema é quando na rua surgem diferentes narrativas que, em certa medida, parece colidirem ou, pelo menos, são aparentemente inconciliáveis. Por exemplo, veja-se o caso francês, nas últimas semanas tivemos simultaneamente uma greve dos sindicatos e trabalhadores, e o ressurgimento dos protestos nos subúrbios das maiores cidades. Em traços muito redutores podemos dizer que os primeiros protestam contra a perda de alguns direitos legitimamente instituídos e que os segundos clamam contra a sua contínua marginalização no acesso a determinados direitos básicos. Face a este desequilíbrio a direita (e alguma esquerda?) não tem dúvidas na resposta a dar: corte-se nalguns direitos dos primeiros para que os segundos possam aceder a um pouco mais. Basicamente a ideia é: nivelar por baixo.
E qual é a proposta da esquerda? Anunciar a ineficácia do Estado, da democracia e propor a realização de uma greve geral? Quanto a mim, essa já não pode ser a receita (se é que alguma vez foi?). O pior que pode acontecer à esquerda é que a rua se divida e se barrique na defesa de interesses particulares e supostamente antagónicos. Transformar o Estado e a democracia como os inimigos a abater é um erro crasso por parte da esquerda. É, basicamente, dar uma margem ainda maior para que o poder económico e financeiro transnacional se reproduza e continue a acumular. Face a isto é preciso encontrar uma outra narrativa, uma racionalidade que agregue na mesma reinvidicação o acentuar contínuo da precarização ao ciclo vicioso da marginalização. É necessário propor alguma coisa, um caminho… algo de concreto: uma prática política.
Nota: este post é uma versão aumentada de um outro publicado aqui.

10 comments:

Hugo Mendes disse...

Olá Renato,

Concordo com muito do que dizes, por isso só anoto duas coisas de ligeira discordancia:
- o problema da "rua", como lhe chamas, não é muitas vezes tanto a questão da racionalidade - embora possamos ver por esse prisma - ou da manipulação (tb podes ter partidos e/ou parlamentos 'manipulados') mas a da inconsequencia: tu escreves que o "protesto gera consciência e esta, por sua via, deverá gerar discurso e acção". Deverá, mas a maior parte das vezes não gera, nem o protesto é organizado para gerar acção nenhuma. O problema aqui não é da racionalidade, mas da inconsequencia - ou entao, se quiseres (como eu prefiro), de ausencia de 'racionalidade instrumental' (isto é, de inconsequencia, ou ineficacia), dado que o calor da manifestação não corresponde em nada a uma capacidade de organização por parte dos sindicatos nem nenhuma estratégia negocial viável, nem sequer influencia na forma como funcionam o mercado de trabalho, etc. É por isso que eu sou céptico acerca dessa «narrativa que a partir da rua construa novos horizontes ao Estado, ao mercado e também à democracia». Isso só acontecerá se e quando aqueles que "organizam a rua" forem eles dotados de capacidade de acção e visão que, parece-me que tambem concordas, também falta ao sindicalismo português. Porque se houvesse capacidade de acção e visão, então a rua seria subsidiária, um complemento a essa capacidade. Hoje, temos reivindicações e descontentamento de muitos sem que os sindicatos tenham capacidade/vontade/dispobilidade de pensar numa estratégia global.

- o problema de "nivelar por baixo". Eu acho que esta é uma forma injusta e menos bem equacionada de ver as coisas. Quando um grupo de pessoas que, via lutas passadas, ganham o direito à reforma aos 50 anos e picos - tu chamas a isto "direitos legitimamente instituídos": porquê legitimamente? não vejo porque é que hoje eles fazem sentido, e o que vem do passado nem tem que ser defendido só porque vem do passado e ganhou letra de lei - numa sociedade onde a reforma terá que se fazer mais tarde para todos, eu acho que argumento do nivalmento por baixo é tremendamente perverso. Claro, era óptimo que todos se pudessem reformar aos 52, 53. Agora, SE não pode ser, entao o que fazemos? Deixamos uns quantos a poder reformar-se nessa idade enquanto os outros labutam pelos 60 fora? Com que justificaçao - porque conseguiram convencer no governo alguém há mais 100 anos? Ou nivelamos a idade de reforma, impondo uma justiça minima? É que das duas, uma. Chamar nivelamento por baixo é desvalorizar a justiça - e a necessidade - deste processo de alinhamento, e é estar a defender implicitamente o que mais abaixo chamas, e bem, interesses particulares. Se é preciso contribuir, então que contribuamos todos, não é?

Este segundo ponto liga-se ao primeiro. Quando o sindicalismo defende os direitos do que têm medo do tal nivalemento por baixo, não consegue dar resposta aos que não têm acesso aos direitos básicos, nem, a maior parte das vezes, aos que não têm emprego. Ou seja, os que mais têm, são os que mais protestam de forma organizada, porque são os que mais têm a perder. Os que menos têm, são os que menos representados são. É preciso definir prioridades: enquanto continuarmos mais preocupados com o "nivelamento por baixo" do que com os que não tem acesso aos direitos básicos ou não conseguem entrar no mercado de trabalho, não vamos resolver os problemas destes últimos; e são estes que mais precisam da atenção da esquerda.

abraço
Hugo

Renato Carmo disse...

Hugo, em relação a esses aspectos que frisas discordo da tua posição. À semelhança do que já conversámos noutras circunstâncias, considero que a esquerda deve ter uma perspectiva mais progressista e não se ficar pela prática reformista da resistência. Não acho que os movimentos sociais que se manifestam na rua sejam inconsequentes, pelo contrário, em alguns momentos históricos foram decisivos. Temos alguns exemplos recentes que contribuíram para uma consciencialização face a algumas perversões da globalização económica.
Por outro lado, quando falo em perda de direitos, refiro-me fundamentalmente à precarização do trabalho (inexistência de expectativas de carreira, instabilidade temporal, etc.). Não me parece que a generalização da precariedade tenha de ser inevitável. Pelo menos para a esquerda ela não deveria de ser inevitável.
Na minha opinião a esquerda não deve perder a perspectiva internacionalista, neste ponto, o Zé Neves tem alguma razão. É fundamental incrementar uma luta contra os pilares do capitalismo globalizado de características selvagens e predadoras. No entanto, discordo dele quando estabelece como alternativa uma espécie de desmembramento do Estado. Um movimento transnacional não tem necessariamente de levar ao desmantelamento dos Estados Nacionais. Aliás, sempre achei que um dos erros dos movimentos anti ou alter globalização foi o de se colarem excessivamente a um certo neo-anarquismo folclórico e marcadamente pequeno-burguês.

Um abraço

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

Olá,

Não acho que a questão da precarização seja menor, mas o que me parece em discussão em França neste momento - centrei a minha resposta nisto, é verdade - é a questao das reformas. Eu gostava de ver alguèm à esquerda posicionar-se sobre esta questão de forma frontal, porque é muito importante do ponto de vista da equidade e da eficácia economica, e não vejo a esquerda a admitir importancia disto, e só preocupar-se com o "nivelamento por baixo", que em muitos casos (mas não exclusivamente) afecta o que já estão por cima e com algum desafogo (são estes de qq forma que mais facilmente se conseguem mobilizar para defender os seus interesses). A minha tese é, de novo, os que estão sem representação política são sempre esquecidos; nem o desemprego desce de forma sustentada, nem os que estao excluidos conseguem entrar no mercado de trabalho. A esquerda recusa debater, e considera mesmo a flexisegurança uma "mentira". Acho que isto é fugir para a frente sem ter nenhuma alternativa para apresentar, sem sonhar com um mundo que não regressa, que é o dos empregos com 30/40 anos na mesma empresa - cujo outro lado, as pessoas esquecem-se, era as mulheres em casa. A esquerda defende, na maior parte das vezes, um Estado social completamente ficcional, que não existe, em vez de o querer reformar segundo principios de justiça decentes. Não consigo compreendo tanta teimosia de alguns em reconhecer isto (não falo de ti).

Quanto às acções de rua, o que eu queria dizer é que sem organização que agregue a energia da rua esta dispersa-se na hora seguinte às pessoas terem ido para casa. É quase sempre assim em França; as pessoas descem à rua e os problemas continuam todos por resolver no dia seguinte. O Rosanvallon explicou bem isso na "Question Syndicale", de 1988: uma sociedade em que os sindicatos tenham perdido poder negocial não é necessariamente uma sociedade "fria", sem conflitos, pode até ser bastante "quente", com manifestações sucessivas. Simplesmente, longe de ser prova da força dos sindicatos, é mostra da sua fraqueza negocial. Claro, pode-se dizer que as propostas dos governos muitas vezes caem; mas os problemas continuam sempre por resolver.

Quanto à questão internacionalista, não tenho nada a discordar, se bem que se ela ficar pelas ruas, de novo, nada se passa de relevante para além do que chamas consciencialização. O que é preciso é reforma das instituições, e para isso precisamos que os diferentes governos tenham coragem para querer concertar estratégias a nivel global. O problema, claro, é que muitos dos protestos "em casa" são a favor de múltiplos proteccionismos, e retiram poder e legitimidade para os governos lançarem estratégias a nível internacional. E é aqui que a "racionalidade da rua falha", porque na rua estão multiplas reivindicações contraditórias que ninguém sabe como concertar (e por vezes parece que não estão interessados em fazê-lo, ou sequer admitir que muitos desses interesses chocam objectivamente entre si; ficam todos muito contentes por ver tanta gente na rua sem uma unica ideia do que fazer com semelhante mobilização) que só geram ruido e tornam qualquer estratégia impossivel de articular. O resultado é uma enorme irracionalidade e incapacidade de apresentar propostas que escapem à defesa dos proteccionismos do passado (que muitas vezes, caramba, reconheça-se, não têm nada progressista!)e à reprodução de injustiças que a esquerda não tem coragem de corrigir porque isso parece-lhe sempre "ideologicamente incorrecto". E, para relembrar ao concluir, quem se lixa mesmo, no fim, são os excluidos do emprego e dos direitos basicos. Não basta dizer que nos preocupamos com todos: é preciso definir prioridades e a coragem política - ou falta dela - mede-se aí.

abraço
Hugo

Zèd disse...

Renato concordo com o post todo sem lhe mudar uma vírgula.

Hugo,
Na questão da "narrativa a partir da rua" não generalizes o exemplo do sindicalismo francês actual (ou do português, for that matter). Como o Renato referiu há exemplos históricos contrários. Eu relembro apenas um recente, os protestos anti-globalização em Seatle em 2000, na cimeira da Organazição Mundial do Comércio. Foi até um movimento de uns "extremistas" mas teve um impacto no decorrer da cimeira, dando legitimidade (e alento) aos países do terceiro mundo para baterem o pé, e teve mais ainda impacto no movimento anti-globalização daí para a frente. Também podia falar das propinas, que tiveram de facto um impacto na política educativa daí para a frente.

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

Zèd,

Ainda bem que referes o caso da manifestação em Seatte, da OMC. Qual foi o impacto real do movimento na mudança institucional, para além de ter bloqueado as negociações naquele momento e ter criado uma espécie de consciencia nas pessoas? Próximo de zero, parece-me. Eu acho que precisamos de ser um pouco mais exigentes na construção e concretização de alternativas, senão as coisas esfumam-se no ar.
E esfumam-se no ar porque as pessoas reunidas nessas manifestações clamam por tantas coisas diferentes, muitas delas contraditorias entre si (umas com as quais concordo, outras das quais discordo), que se as pessoas sairem da rua e se sentarem a uma mesa para tentarem construir uma agenda comum, o mais provável é que ninguem se entenda e que acabe tudo virado para seu lado. Direi mesmo que isso à esquerda é a regra, nao a excepção.

O mais engraçado mesmo é que a OMComércio é talvez a unica instituição mais democratica do triunvirato composto ainda pelo FMI e pelo Banco Mundial, e que se há palco para os países pobres se defenderem (como já começaram) é esse. Muito mais grave são outras coisas, como a Politica Agricola Comum, essa sim criminosa para o terceiro mundo. Infelizmente, não vejo as pessoas protestarem contra isto - alias, vejo é pessoas protestarem, à esquerda, quando muito, é a favor dela (veja-se o José Bové) e da sua continuação, que leva a que na pratica uma vaca na Europa receba mais dinheiro do que um cidadao do Terceiro Mundo via ajuda humanitária. Isto é escandaloso, não é? Mas enquanto as pessoas acharem que retirar os subsidios aos (ricos) agricultores europeus - subsidios esses o que arruinam o negócio (e as vidas) dos milhões de pequenos agricultores do terceiro mundo que não tem outra coisa que fazer na vida - é um exemplo de "nivelar por baixo", não vamos longe.
Prioridades desajustadas, sempre disse - o que se espelha tantas e tantas vezes nas manifestações...Eu tambem gosto de manifestações, mas gosto muito mais que haja uma estratégia por trás. Construí-la é muito mais dificil do que trazer as pessoas para a rua.

abraço
Hugo

Zèd disse...

Hugo,

"Qual foi o impacto real do movimento na mudança institucional, para além de ter bloqueado as negociações naquele momento e ter criado uma espécie de consciencia nas pessoas?"

Achas pouco? Isso em si já foi uma enorme viragem, o curso dos acontecimentos mudou daí para a frente. Foi em Seatle em 2000 que a globalização entrou nas agendas políticas. Essa tal "espécie de consciência nas pessoas", como dizes, alterou complentamente os dados. Agora há um movimento político com um discurso (mais ou menos) consistente sobre o que está em causa com a globalização.

"Eu tambem gosto de manifestações, mas gosto muito mais que haja uma estratégia por trás. Construí-la é muito mais dificil do que trazer as pessoas para a rua."

As duas coisas não são mutuamente exclusivas, bem pelo contrário. Foi isso que quis dizer com o meu post, e nos comentários aqui. E os acontecimentos de Seatle são disso um bom exemplo. Mas acrescento a estratégia pode estar por trás como pode vir depois.

Nunca apoiei nem apoio o José Bové, nisso estamos de acordo.

Abraço

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

Zèd,

"Agora há um movimento político com um discurso (mais ou menos) consistente sobre o que está em causa com a globalização."

Mas há mesmo? Foram colocadas questões na agenda, isso é verdade. Mas acho que a maioria dos mesmos equívocos, para as pessoas que tomaram consciência, já para não falar nas divisões internas, se mantêm...Se calhar estou a ser pessimista. Falta fazer tanto, e passar das ruas às mudança real das instituições é que é a parte que doi.

"Mas acrescento a estratégia pode estar por trás como pode vir depois".

Pois, mas a verdade é que as coisas são quase sempre assimétricas, o que se passa nas ruas quase nunca tem tradução na inteligência estratégica. E acontece tantas vezes que tenho a certeza que não é por acaso: a estratégia é descurada porque implica que as pessoas se sentem à mesa e negociem valores, programas, prioridades, etc. E isso, como disse, é muito mais dificil (sobretudo para quem se sente mais confortável no purismo da ideologia e da crítica a um inimigo do que na realpolitik construtiva das negociações e cedências [não há uma sem a outra]) do que desenhar uma estratégia. Se calhar sou eu que já vi este filme muitas vezes, já tenho pouca paciência para coisas inconsequentes. :)

abraço
Hugo