domingo, 30 de dezembro de 2007

O Vinho da Casa não engana

Este último post dos vinhos ao domingo deste ano é dedicado a essa entidade única no Universo Vitivinícula que é o "Vinho da Casa".
Não muito bruscamente, no Verão passado fiz de guia turístico e fui dar a conhecer à minha companheira o Palácio de Queluz. Para equilibrar tão versaillesco monumento tratei de encontrar nas redondezas um restaurante - como hei-de dizer? - mais rústico, para dar a conhecer os contrastes e a diversida da nossa cultura tuga. Encontrei um restaurante de que, miseravelmente, não me lembro do nome, em que a disposição das salas faz lembrar vagamente os pastéis de Belém, com sala após sala, mas em mais pequeno. Os azulejos, também os havia, mas menos eloquentes e explendorosos que nos pastéis, e acompanhados nas paredes de uns quadros made in feira de S. Pedro de Sintra, daqueles que retratam ora umas florzinhas ora umas cenas bucólicas - por assim dizer - banais. Acho que já estais a ver o décor. As meias doses circulavam em travessas inteiras, acompanhadas não de salada ou arroz ou batata frita, mas de salada e arroz e batata frita. Nalguns casos ainda com a opção dumas migas, legumes, feijão, etc... Chegada a altura de escolher o vinho, eu não estava em medida de despachar uma garrafa de Borba sózinho (hélas, ela não bebe, ninguém é perfeito), não só porque conduzir sobre o efeito de 750ml de Borba na via rápida de Ranholas é desaconselhável, mas também porque estou a pôr em prática um programa de racionamento da minha detrioração hepática. Vi-me constrangido a perguntar se não tinham meias garrafas, ao que o empregado respondeu que só se fosse do vinho da casa. Eu quis enfiar-me num buraco; como é que eu não tinha pensado naquilo antes? Com um décor daqueles não havia engano possível, seria seguramente um verdadeiro "Vinho da Casa". Seria e foi. Logo a começar pela côr, era um tinto tão tinto que faz o Bordeaux parecer rosé. O mesmo se pode dizer do paladar, chamar-lhe encorpado é um eufemismo, o correcto mesmo é chamar-lhe carrascão. Carrascão é um termo que me agrada de sobremaneira, a sonoridade é tão sugestiva que se torna descriptiva. Porque raio tantos usam essa palavra com sentido pejorativo é para mim um mistério insondável. Quando um vinho carrascão começa a deslizar pela goela abaixo cria-se logo uma empatia, digo mesmo uma intimidade entre o vinho e o epitélio do esófago. É aquilo a que os franceses chamam uma relação fusional, o vinho agarra-se ali ao esófago com uma força que é bonito de ver, ou melhor, de sentir. É amor ao primeito toque, é verdadeiramente uma emoção forte. As almas mais susceptíveis não suportam o choque. Pode ter por vezes efeitos colaterais como sejam escoriações no referido epitélio. Mas é uma experiência que vai muito para além do sentido do paladar, ou dos cinco sentidos, é toda uma História, uma Cultura de um povo, com todas as suas idiossincrasias reunidos num copo de vinho (ou talvez não...).
Mas o que eu mais gosto no verdadeiro "Vinho da Casa", e foi o caso nesse dia em Queluz, é que me faz lembrar do meu tio Avelino, que é uma lenda viva. Quase toda a vida bebeu "Vinho da Casa", literalmente, vinho feito lá em casa que eu próprio cheguei a pisar. O tio Avelino é uma força da natureza. São míticas as estórias em que meia tonelada de vaca atravessa o pátio completamente espavorida a correr à frente de 1,56m de tio Avelino, que esbraceja e vocifera. Ele, que até tinha fama de ser um pouco rezingão, deu-se conta que é o único homem na aldeia e arredores que passou dos 85, e com um saúde que faz inveja a muito "rapaz" mais novo. Anda bem disposto que nada nem ninguém lhe tira o bom humor, nem as mais que evidentes falhas de memória. No meio disto tudo a única falha a lamentar é o médico que proibiu o tio Avelino de beber não ter sido julgado em Haia.
A todos os Peões, e a todos os leitores, desejo Bom Ano e Bons Vinhos.

3 comments:

Renato Carmo disse...

Um brinde ao tio Avelino!

Zèd disse...

Tchin-Tchin!

Ruy Blanes disse...

Não contem a ninguém, mas cá vai uma receita ultra-secreta e ultra-rápida para a felicidade momentânea:

- Tinto carrascão (se possível, do Tio Avelino, temos de provar isso).

- Pão Alentejano.

- Azeitona (se possível, britada).

- Queijo de cabra.