sábado, 8 de dezembro de 2007

Para 'desnaturalizar' o pensamento neoliberal



Com o intuito em não barricar ainda mais este debate (em curso?), penso que seria interessante recentrá-lo para uma questão que é essencial e que parece ser relativamente secundarizada pela esquerda mais libertária’. Refiro-me ao pensamento neoliberal que se vai naturalizando cada vez mais nos discursos e práticas políticas. É necessário desnaturalizar essa lógica: quebrar o seu raciocínio binário e exclusivista de modo a romper com a sua aparente inevitabilidade. Das várias dicotomias propagandeadas, a que opõe Estado ao Mercado talvez seja a mais marcante. Quando certa esquerda envereda pela senda da destituição abrupta do Estado parece que se esquece que existe mercado e um discurso muito poderoso que sustenta a universalidade da sua desregulação. Encetar uma luta absoluta contra o Estado sem construir um contraponto, uma alternativa viável ao pensamento neoliberal, demonstra, quanto a mim, uma tremenda irresponsabilidade. A actual forma do Estado se organizar tem de sofrer uma enorme transformação, é verdade, mas esta não passa pela sua destruição.


Uma outra dualidade que é importante questionar diz respeito à que opõe sistematicamente os trabalhadores que estão (ainda) 'integrados' no sistema laboral e os excluídos (os que estão fora deste). É comum ler-se e ouvir-se uma retórica que estabelece uma relação linear (de causa-efeito) entre a perda de direitos (considerados exagerados) por parte dos primeiros para que os segundos se possam integrar melhor. Esta visão é particularmente eficaz na medida em que pretende, até certo ponto, ofuscar a noção de que a sociedade pós-capitalista se encontra estratificada em classes. Face à composição vertical da pirâmide social (característica das sociedades industriais), sugere-se que, actualmente, as desigualdades mais determinantes se geram horizontalmente, ou seja, no seio dos grupos ‘despossuídos’ de meios de produção: os trabalhadores por conta de outrem. Quanto a mim, essa interdependência é artificial e está por demonstrar. Não é líquido que redução dos direitos dos supostamente integrados se transfira no incremento de apoio social e cívico aos que estão fora do sistema económico. E sobretudo não é nada líquido que seja esta dicotomia a origem da exclusão e da assimetria social. Pelo contrário, parece-me (é uma mera intuição) que em muitos casos a redução de direitos em certos sectores do trabalho assalariado não implica um aumento minimamente relevante dos níveis de integração das camadas populacionais mais desprotegidas.

Não questiono a necessidade de reajustes (alguns significativos) no equilíbrio entre direitos e obrigações de alguns estratos profissionais, nomeadamente no interior da administração pública (por exemplo, as mudanças de ordem demográfica implicam necessariamente reconfigurações no que concerne ao prolongamento do tempo da vida activa, etc.). O que questiono é o abuso político e ideológico que se faz de uma relação de causa - efeito que está por demonstrar. Penso que um dos princípios orientadores dessa tal narrativa, que falávamos nuns posts atrás, passa pela desnaturalização da oposição entre ‘instalados’ vs ‘excluídos’. As verdadeiras razões que acentuam as desigualdades sociais encontram-se muito mais a montante. São razões intrínsecas à lógica de funcionamento do próprio sistema capitalista globalizado...

6 comments:

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

Renato, escreveste:

"Quanto a mim, essa interdependência é artificial e está por demonstrar. Não é líquido que redução dos direitos dos supostamente integrados se transfira no incremento de apoio social e cívico aos que estão fora do sistema económico."

Imagina que és empresário. Imagina depois que tens X trabalhadores, e que o mercado onde trabalhas é instável, e o futuro não é risonho. Sabes que é dificil contratar um trabalhador, e mais ainda despedi-lo. Imagina agora, de forma algo inesperada, surge uma boa encomenda, que te ocupará por alguns meses. O que vais fazer? Racionalmente, vais pôr os trabalhdaores que tens a trabalhar o mais possível (horas extraordinarias, etc.) e vais evitar contratar mais gente, porque depois não vais conseguir despedi-los quando o mercado voltar a sorrir-te menos. A realidade é dura mas é esta nos mercados laborais mais protegidos: se o trabalho for excessivamente regulamentado, o que protege os que estão empregados joga contra os que estão fora do mercado de trabalho. Mais: a excessiva regulamentação "produz" directamente a precaridade, porque as alternativas que tens é, se existirem essas alternativas legais (e existem), contratares pessoas para periodos curtos e sem os beneficios dos primeiros. Se essas solução não existissem, entao essas pessoas não eram contratadas de todo!!! Não acho muito complicado ver a interdependencia. Bom, e nem coloquei a questão do desenvolvimento tecnológico: dado que não há legislaçao laboral para as máquinas - se o empresário precisar de cobrir uma nova necessidade na sua empresa, se o codigo laboral foi rigido e se a tarefa pode ser desempenhada por um trabalhador ou por uma maquina, o que é que achas que ele vai adquirir: um trabalhador ou uma maquina? Uma máquina, claro está. E com isto podes perfeitamente ter aumento de produtividade e crescimento economico SEM aumento do emprego (o chamado 'joblewss growth', que é precisamente o que vivemos, tudo indica, hoje em Portugal). Já viste a perversão disto tudo?

Todavia, é importante não esquecer (para evitar a tal naturalização) que os empregados têm estatutos diferentes, e que os empregados podem passar a estatuto de desempregados; nesse caso, nos mercados de trabalho mais regulamentados, as leis que os protegiam quando estavam empregados poderão
agora viver a situação inversa, e viver dificuldades em encontrar um emprego, podendo cair numa situação de desemprego de longa duração e possivel exclusão. É por isso que os mercados de trabalhos muito regulados são paus de dois bicos. Não consigo perceber porque não se aceita esta interdependência. Negá-la, como pareces fazer, continua a dar o monopólio do argumento à direita, e a legitimar os abusos contra os quais escreves. Pois bem: se queres acabar com os abusos, admite que há um problema - um enorme problema aqui. Fazer de conta que não há é entregar de bandeja o discurso crítico à direita, que fez dele um enorme fogo de artifício. As elevadas taxas desempregro dos países mediterrânicos e da França (esta há mais de 30 anos...) não deixam muitas duvidas deste efeito a longo prazo. E em Portugal vamos ter o mesmissimo problema se continuarmos a raciocinar assim...

"E sobretudo não é nada líquido que seja esta dicotomia a origem da exclusão e da assimetria social."

É líquido que o desemprego - em particular de longa duração - é a causa primeira da exclusão social. Sem emprego há menos dinheiro e há menos estatuto, que alias pode por vezes ser mesmo vivido, pelo próprio e pelos outros, como um estatuto negativo. Isto está amplamente documentado.

"Pelo contrário, parece-me (é uma mera intuição) que em muitos casos a redução de direitos em certos sectores do trabalho assalariado não implica um aumento minimamente relevante dos níveis de integração das camadas populacionais mais desprotegidas."

Se contribuires para facilitar a contratação, aumenta quase de imediato o potencial de integração dos mais excluídos. Logicamente, isto não é tudo, e há muitas outras coisas que podem e devem ser feitas, se formos minimamente exigentes. Ao mesmo tempo, porém, essas muitas outras coisas - no plano da educação, saude, habitação - necessitam de dinheiro, e como o dinheiro não é elastico e para teres dinheiro para comprares mais direitos para os que menos têm, podes muito bem acabar por ter menos dinheiro para gastar para pagar os direitos das classes médias. Depois as classes médias vão protestar. E o poder político vai ter que tomar decisões dificeis; quando a esquerda defende sobretudo as reivindicações das classes médias, contribui para a reprodução da exclusão. Pensa nisto.

"São razões intrínsecas à lógica de funcionamento do próprio sistema capitalista globalizado..."

Esta posição, deixa-me dizer o que penso, é de um enorme conservadorismo e deixa-nos de mãos atadas: dado que ninguem sabe muito bem o que é lutar contra o "sistema capitalista globalizado", então não se faz nada, e os excluidos continuam excluidos. Era exactamente o que há 30 anos se dizia sobre a escola: dado que ela reproduz o sistema capitalista e as desigualdades estão enraizadas nele, ou mudamos o sistema todo, ou então não vale a pena fazer absolutamente nada, porque tudo está determinado à partida. Desculpa, mas é nesta forma de pensar que o radicalismo dá maõs ao conservadorismo.

A minha hipótese é muitas pessoas pensam estas coisas a partir do que se produz e escreve a partir da realidade francesa, onde o Estado social tem raizes conservadoras, com atribuição de regalias específicas e diferenciadas a grupos vários de funcionários publicos para evitar que estes se deixassem levar pelas sirenes comunistas. Comprando literalmente esses grupos com direitos específicos, e aceitando, em nome da paz social, que o mercado de trabalho fosse sendo construido em negociaçao com os sindicatos ligados ao PCF com regras extremamente proteccionistas para quem tinha um emprego, o Estado estruturou, pelas suas políticas, uma hierarquia social extremamente desigual - e que ganhou ampla visibilidade quando o pleno emprego dos anos 50 e 60 chegou ao fim na década de 70. Quando as finanças públicas começaram a apertar e estes grupos sentiram que a vida deixa de ser tão estável, foram os primeiros a manifestar-se. Muitas vezes, o drama vive-se dentro da mesma casa, porque os direitos que a geração dos pais conseguiu comprar é responsavel por deixar os seus proprios filhos no desemprego quando saem da escola. Como não ver a interdependencia aqui?

Em muitos outros países, alias mais ricos do que a França, estas assimetrias não existem de forma tão vincada, em parte porque o Estado não cometeu o erros que o francês cometeu, e porque os sindicatos são responsáveis, e sabem que se protegerem demasiado uns, o cobertor não dá para todos. O modelo social-democrata, mais próspero e mais igualitário que o conservador/continental que se verifica em França, não tem um mercado de trabalho particularmente regulado; todos os estudos internacionais o mostram. Mas também não tem nada a ver com o neo-liberalismo. As regulaçoes existentes são moderadas e inteligentes, e contribuem para que o desemprego seja regularmente baixo, e os niveis de pobreza e exclusão social baixissima.
Porque não olhamos de uma vez por todas para os bons exemplos historicos e para arranjos institucionais mais inteligentes, equitativos e eficazes em vez de andarmos sempre e sempre a culpar o capitalismo globalizado? Estas coisas estão mais do que estudadas, era tao bom que alguns dos seus contributos fossem mobilizados para estes debates. Uma das consequencias era a destruição de alguns mitos (um deles, sobre o qual já escrevi várias vezes nos comentarios a varios posts, é o mito de que o 'modelo social frances' é progressista; muitas das perversoes e desigualdades que ele estrutura desde sempre dão, claro, origem hoje a reinvidicações elas próprias perversas; faz-me alguma confusão que boa parte da esquerda as compre sem perceber melhor o que está em causa).

Conclusão: o sistema de regulação economico francês tem uma série de perversidades, e não serve de modelo para as coisas boas; complementarmente, a crítica que a esquerda francesa dele produz falha muitas vezes no essencial, e tambem não serve, penso eu, para o discurso crítico cá.

Depois escrevo qualquer coisa no 'Véu' sobre isto, porque acho mesmo que este discurso tem pés de barro à luz do que se sabe, ao nivel da economia política europeu, dos sistemas de protecção e exclusão. Porque, claro está, se for mal desenhada, a protecção de uns é a exclusão dos outros. A esquerda sabe, desde sempre, que isto se aplica à propriedade. Porque é que não admite que se aplica a outras bens/capitais também - como o emprego? Tu só ves o problema nos despossuidos dos meios de produção; o problema, hoje, é nos que estão despossuidos de um lugar na produção. Alias, é aqui que reside (mais no emprego do que na propriedade) não só a causa da exclusão, como das desigualdades salariais: os mais ricos hoje retiram, na sua maioria, as suas vantagens económica dos salarios de topo altíssimos que usufruem (ou que os seus amigos nos quadros das empresas lhes atribuem), e não - regra geral, calma - das suas rendas. O que fazer para a esquerda reconhecer de uma vez por todas que hoje os problemas mais prementes estão na distribuição do trabalho? A esquerda não aceita isto porque acha que não se podem por "assalariados contra assalariados" - mesmo que alguns destes estejam no desemprego. Ora, devo dizer que isto é uma espécie de dogma ideológico (perfeitamente naturalizado) que devia ver o seu
fim o mais depressa possível. Antes que a esquerda aceite ver subjectivamente o problema, ele existe na realidade, independentemente do que a esquerda pensa: os assalariados estão, objectiva e efectivamente, em situações de competição por empregos e oportunidades no mercado de trabalho. Achar que não se devem colocar "assalariados contra assalariados" é simplesmente colcoar uma venda à volta dos olhos e, em nome do 'ideologicamente correcto', reproduzir uma impotência que impede a esquerda sequer de começar a pensar em como resolver estes problemas.

Para responder ao titulo do teu post: muito mais importante do que desnaturalizar o pensamento neo-liberal (que é bastante claro, aliás), muito mais importante parece-me é, à esquerda, desnaturalizar o modelo conservador/continental, origem de enormes perversidades e de reprodução dos problemas. Há vários países que integram no sistema capitalista globalizado (aliás, ainda mais do que a França, proteccionista em tantos aspectos...) e que não têm estes problemas que geram estas críticas.

abraço
Hugo

Renato Carmo disse...

Caro Hugo, mais uma vez discordamos. Aliás, já estava à espera de um dos teus sempre bem-vindos lençóis :)
Este post tem um âmbito mais abrangente, o seu objectivo é o de questionar algumas dicotomias que se vão naturalizando até no pensamento de certa esquerda, como é exemplo o teu comentário.
Como refiro no post, não questiono a pertinência em flexiblizar a contratação laboral. O que eu questiono é se essa flexibilização reflectirá decisivamente na redução da exclusão social, como nos faz querer o discurso político dominante. E quando falo em exclusão refiro-me a grupos que não conseguem ingressar no sistema formal de emprego (as subclasses, se quiseres). Por isso, o teu exemplo do empresário é perfeitamente inadequado. Aliás, deverias reflectir melhor no modo como apresentas o teu raciocínio: tudo parece ser simples, linear e inevitável. Este post põe dúvidas e tenta apontar para alvos comuns à esquerda. Tu, em contrapartida, vens com certezas e desvalorizas esses alvos.
Quando referes:
"Para responder ao titulo do teu post: muito mais importante do que desnaturalizar o pensamento neo-liberal (que é bastante claro, aliás), muito mais importante parece-me é, à esquerda, desnaturalizar o modelo conservador/continental".
Não são discursos alternativos, pelo contrário são complementares. Agora o que eu te pergunto é: será que para ti desnaturalizar esse modelo conservador (de esquerda) que falas, passa por permitir e veicular a naturalização (e institucionalização) de um certo pensamento neoliberal?

Um abraço

Zèd disse...

Hugo,

Sem refutar o teu exemplo posso (pode-se) dar outros contra-exemplos. No caso do CPE, que foi felizmente retirado, duvido que tivesse tido algum impacto positivo no desemprego ou na diminuição da exclusão. No entanto era uma lei de flexibilização do emprego, particularmente no primeiro emprego, que teria levado apenas a uma maior precarização do primeiro emprego. A única consequência que teria tido era ter deixado o patronato com (ainda mais) a faca e o queijo na mão no que respeita à contratação de jovens. Teria, o patronato, muito mais margem de manobra para contratar a baixos salários. Não teria havido qualquer outra consequência.

Isto não é para dizer que o teu exemplo não é válido, mas apenas que há exemplos e contra-exemplos que dependem do contexto, e das medidas concretas que são tomadas. O que demonstra, como faz o Renato no post, que não fórmula neo-liberal mágica que resolva todos os problemas, e que devemos evitar que esse dogma se incruste como uma inevitabilidade no discurso político. A flexibilização pode ser, e é, por vezes uma boa solução (e sempre dentro de determinadas regras), a flexibilização, e outros outros dogmas neo-liberais, não são SEMPRE a solução para TODOS os problemas (muito menos se forem desreguladas).

E já agora, Hugo, eu percebo que à esquerda possam existir várias vias possíveis para atingir os mesmos objectivos, o combate às desigualdades deve ser o primeiro. Mas se os objectivos são os mesmos, o diálogo parece-me possível, e deve ser centrado nas propostas concretas para atingir esses objectivos. Os objectivos da ideologia neo-liberal (como a liberal, como a conservadora de direita) não são os mesmos, de todo. As desigualdades não os preocupam minimamente. O que nos separa da direita é muito mais fundamental, não percebo como podes achar que "apontar baterias" para uma certa esquerda pode ser prioritária em relação ao combate de certas ideias da direita que começam a cristalizar-se.

Renato,
De facto os raciocínios binários são de facto muito mais simples, e por isso muito mais apelativos. É o bem e o mal, o preto e o branco, o pobre e o rico, opressores e oprimidos, nós e os outros, etc... Infelizmente é um raciocínio redutor. Redutor no que toca à descripção da realidade, mas mais ainda no que respeita a propôr soluções. Da dicotomia ao maniquísmo é um passo. O exemplo que dás de França é excelente, os grevistas da SNCF e os jovens da banlieue não são os mesmos, não são os mesmos problemas, não são as mesmas reivindicações. Nem são as mesmas soluções.

Renato Carmo disse...

Zèd, sim é verdade as reinvidicações e as soluções não são as mesmas, mas, também não são antagónicas e exclusivistas. Há pontes de contacto. Aliás o ponto deste post vai no sentido de a esquerda começar a escavar no concreto de modo a construir algumas das narrativas de focávamos atrás. Por isso, não entendo muito bem o comentário do Hugo que confunde uma perspectiva de questionamento com conservadorismo. De facto, questiono alguns dos seus pressupostos que tenho cada vez menos como adquiridos.

Zèd disse...

Sim há pontes de contacto, claro (o Sarkozy por exemplo :-), e a esquerda tem que eglobá-las, sem dúvida.