domingo, 6 de janeiro de 2008

Luiz Pacheco (1925-2008), o libertino andarilho

Não sei nada. Duvido de tudo. Desci ao fundo dos fundos, lá onde se confunde a lama com o sangue, as fezes, o pus, o vómito; fui até às entranhas da Besta e não me arrependo. Nada sei do futuro, e o passado quase esqueci. Li muito e foi pior. Conheci gente estranha nesta viagem. Pobre gente [...] Mas um bebé! uma rapariga com o filho ao colo! os bambinos em volta! são os bichos mais exigentes e precisados de tudo. E há que lhes dar tudo. Eis, senhores, porque saúdo a manhã e faço gosto em a ver inda uma vez, eis porque a pardalada me incita. E no riso do meu Paulocas uma leve ironia contente me desperta, babada em leite e ternura. Somos puros. Sabemos e cumprimos. Bem-aventurados somos e vós, também,
Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sereis, se as praticardes.
(Comunidade, 1964)

Descubro que o êxito e o fracasso são uma e a mesma cadeia e em tudo. O êxito para cima, o fracasso para baixo, e quando digo baixo digo baixo: sujidões, dívidas, vergonhas, podridão, loucura. Mas o que toma tudo igual é que ambas as cadeias se encontram, nada a fazer, meus caros, daqui a cem anos ninguém se lembra.

Acabara de falar dele ali atrás e eis que parte, aos 82 anos.
Dele li, num misto de maravilhamento e desconforto, Comunidade e O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor. Maravilhamento, pelo seu desassombro, num estilo único, conciso, desconcertante, mordaz. Desconforto, por saber que muitas das piores misérias que descrevia haviam sido vividas pelo autor, causadas pela perseguição dos algozes da ditadura e suas polícias, a recriminação pela sociedade hipócrita e convencional que denunciou, as más condições de vida, a sua errância por vezes auto-mortificante.
Dele li, também com proveito, as crónicas que sairam no Público há uns anos atrás, atentas aos outros, às virtudes sérias e postiças. E, também, várias entrevistas, sempre imprevisíveis e cáusticas. Lufadas de ar fresco.
Auto-intitulou-se neo-abjeccionista para gozar o afã taxonómico dos convencionalistas falhos de imaginação.
Viveu a literatura por dentro, editou, criticou e polemizou como poucos por cá.
Até sempre, Pacheco.
*
PS: mais informação sobre Luiz Pacheco no Público e aqui, onde estão disponíveis várias hiperligações e entrevistas, incluindo uma pelo seu biógrafo e amigo João Pedro George, que recolheu as suas últimas entrevistas em O crocodilo que voa, uma edição para breve, pela Tinta da China.

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