quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Lavagante

«O terceiro indivíduo já lá estava quando Cecília chegou ao snack-bar.
A rapariga sentou-se ao balcão e olhou o espelho que havia por cima da frasqueira. Descobriu dois olhos grossos e uma boquilha. Era ele, o terceiro indivíduo. Tinha chapéu de abas largas e samarra, ar de amigo de patuscadas e de toureiros retirados.
Cecília bebeu o primeiro café, bebeu o segundo. No espelho, o homem tirava fumaças e fazia-lhe olhos doces, os olhos do velho galo conquistador.
Curvada sob o peso daquela presença, a rapariga abriu uma revista – o último número dos Cahiers du Cinema, se por acaso se lembrou de o comprar e se, comprando-o, o tivesse trazido com ela – abriu o Cahiers e tentou ler. As mãos suavam-lhe terrivelmente. Ela sabia o que isso queria dizer e foi lavá-las com carinho, compadecida e vagarosa para ganhar tempo. Depois voltou para o lugar. Daniel acabava de aparecer.»
PIRES, José Cardoso, Lavagante. Encontro desabitado, Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2008, pp. 71-72

2 comments:

Zèd disse...

Sê bem vindo ao Peão!

P.S. - Excelente texto, tenho que ler mais Cardoso Pires.

João Miguel Almeida disse...

Aterragem cumprida, céu limpo, boa recepção. Esperemos que daqui em diante a escrita vá fluindo.