sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Vamos lá viver este dia

Ando há que tempos com uma frase do escultor Rui Chafes na cabeça para meter aqui no Peão. É sobre o tempo, essa questão fundamental. O respeito do tempo dos outros, a possibilidade de desfrutar do seu próprio tempo quotidiano. Não são umas balelas quaisquer: é uma coisa fundamental da vidinha, tal como a logística afectiva (o trabalho que os afectos dão no quotidiano).

Vamos então, sem perder mais tempo, à frase do Rui Chafes. Está no JL. Sim, o "Jóta Éle", ele mesmo, o Jornal de Letras. (um dia, se tiver tempo, gostava de fazer o elogio do JL, esse anacronismo). E está num JL já desactualizado, como convém a um anacronismo. É o n° 969, de 21 de Novembro a 4 de Dezembro do ano passado.

A frase, então. Vai a bold para ser fulminante, para entrar mesmo no quotidiano das cabeças.

Não vale a pena lutar contra o tempo nem contra as crianças. Primeiro, porque elas têm razão em tudo, segundo, porque o tempo delas é o real, o da irrupção da vida, das flores que nascem, das nuvens que passam. O único tempo real é acordar de manhã, esfregar as mãos e dizer: vamos viver este dia".

É uma pérola, não é? E foi dita assim, numa entrevista a um JL escondido, anacrónico. Ficou-me semanas na cabeça, entrou nas minhas contradições, falou-me quando dei por mim a apressar a minha filha enquanto ela lava as mãos e quer sentir a água a correr por entre os dedos. Ou quando examina atentamente uma pedra que está no passeio. Ou se põe a pintar um detalhe de um desenho com minúcia. Sem pensar no tempo.

E depois há a logística, a tramada da logística. Os momentos em que, realmente, não temos tempo, apesar da beleza criancil. Em que não podemos, simplesmente, por causa do raio do modo de produção insuperável. Para todos. E a frase do Chafes continua ali a pairar, como utopia do quotidiano belo, como contradição outra vez.

Vamos lá então viver este dia.

3 comments:

Isabel Valente disse...

Belo post, andre, belo post... Gosto da liberdade com que tratas a linguagem. É bom instaurar esse território para quem o queira habitar.

andre disse...

Obrigado, Isabel, pelo comentário,

O dia afinal ficou frio, não está lá muito habitável. Brr... beijinhos

Cláudia Castelo disse...

Abri o computador para começar a trabalhar. Tenho um artigo para escrever e o tempo urge. Cedi à tentação de vir espreitar o Peão, uma forma de adiar o trabalhar uns breves minutos. E leio este post! Como eu quero que o meu tempo seja em breve o das crianças, vagaroso, sem pressas, sem prazos...