sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Quem fica ao pé do lume é que se aquece

Este provérbio popular ilustra ainda, penosamente, uma prática frequente entre quem lida com a coisa pública por cá. O recente caso das casas municipais de Lisboa atribuídas de modo discriccionário é disso exemplo. Este segredo de polichinelo tem pelo menos 20 anos, mas só agora teve honras de manchete e acompanhamento em vários media. Mais vale tarde que nunca. Aparentemente, começou como arma de arremesso contra a recandidatura de Santana Lopes a Lisboa, mas depressa se espalhou generosamente por várias vereações, atingindo deste modo a vereadora Ana Sara Brito, por ter beneficiado pessoalmente por esta prática quando era vereadora no mandato de Abecasis (parece que foi sob essa presidência que tudo começou).
Em post anterior, apoiara a decisão de se criar um regulamento para acabar com este esquema opaco e discriccionário, ignorando que a procissão ainda ia no adro. Aliás, a ex-vereadora Nogueira Pinto propusera isso mesmo em 2004 e foi ignorada!
Estão em causa c. de 4 mil fogos, que deveriam ter sido aproveitados para estancar a sangria populacional e a sua polarização crescente entre ricos e pobres (condomínios de luxo vs. bairros sociais) e para trazer mais receitas, mas que, ao invés, eram arrendados a amigos por valores irrisórios. As casas construídas pela EPUL obedeciam a regulamentos e visavam obter lucro (quanto a más gestões da empresa, isso é outra história), por isso, é ainda mais gritante esta dualidade de critérios.
Mas a elite por cá tem as costas quentes. Os jeitinhos ainda são recursos comuns e tolerados, e predomina uma concepção patrimonial da coisa pública numa parte significativa daqueles que passam pelo Estado, ou seja, o bem público é gerido de acordo com as vontades e humores de quem manda. É uma lógica de Ancien Régime, para nos relembrar como ainda são as nossas elites: conservadoras, monolíticas, contíguas e ávaras de privilégios.
Rui Tavares avançou aqui propostas interessantes (passíveis de compatibilizar com a proposta municipal, que privilegiará arrendamento para jovens e idosos), Fernanda Câncio aborda o caso no DN de hoje, de que respigo esta passagem certeira: "O que está em causa, e não será de mais repeti-lo, é o que de pior existe em qualquer administração pública - a opacidade, o favorecimento discriccionário, a assunção dos bens públicos como propriedade de «quem está» e o seu tráfico entre escolhidos".
Oxalá este caso seja sintoma de maior exigência democrática, de transparência, regulamentação e igualdade de oportunidades. E que, de caminho, se passe duma política remendista de habitação social para uma efectiva política social de habitação e de fruição da cidade, de ordenamento e planeamento urbanísticos para já, e não para daqui a 30 anos. É que é hoje e aqui que vivemos. Em 2040, não saberemos se ainda cá estamos. Deixem o amanhã e as megalomanias para os astrólogos.
PS: não percam o «Inimigo Público» de hoje e o seu dossiê "Casas camarárias já vinham com máquina de lavar cunhas". São 3 páginas de bom humor.

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