quarta-feira, 12 de agosto de 2009

A soberba das elites

Associações de produtores de produtos tradicionais voltam a acusar o governo português de não defender o sector em apreço, isto após o mesmo não ter exercido o direito de derrogação (vulgo, cláusulas de salvaguarda) face a normas comunitárias específicas (vd. reportagem detalhada aqui).

Portugal é um dos países da UE que tem mais produtos tradicionais: em 2006, estava em 3.º lugar no reconhecimento destes. Assim sendo, a atitude do governo luso devia indignar-nos e ser motivo de pressão para uma mudança de atitude. Como desmistifica Ana Soeiro, perita do sector, ao Público de hoje: «É, por vezes, dito [...] que é a UE que tem a culpa das dificuldades dos pequenos produtores, que muitas vezes gerem uma pequena economia à escala familiar, mas que é socialmente muito importante. Mas isso não é verdade» (cf. aqui). Embora haja regulamentos comunitários impondo um rol de regras e directivas, os governos nacionais têm a possibilidade de adequar a sua efectivação nos respectivos países. Como adita a ex-dirigente do Instituto de Desenvolvimento Rural e Hidráulico do Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas: «É para isso que existem as derrogações e Portugal é, de entre os países que mais produtos regionais têm reconhecidos, como a França, Itália, Grécia, Espanha e diversos outros, o único que não aplica cláusulas de salvaguarda para protecção dos seus pequenos produtores».

Além do efeito de homogeneização incaracterística, o perigo principal é o encerramento de muitas destas produções, e com elas, dos respectivos produtos tradicionais e do acentuar dos bloqueamento do mundo rural. Estamos a falar de parte do universo de 700 produtos já reconhecidos, como p.e. alheiras, azeitonas, carnes e presuntos, mel, buchos, folares, maranhos, cavacos e outros doces tradicionais, cherovias (ou xerovias), vinhos, etc.

Uma das coisas que mais choca nisto tudo é a ostensiva indiferença das elites e a persistência do centralismo iluminado (que contamina todos os partidos, atenção, uns mais do que outros, concerteza), recentemente reforçada por uma das piores ofensivas estatais contra estes produtos e a produção nacional, a da ASAE (vd. aqui e aqui). Isto apesar dos contínuos alertas feitos por especialistas como a eng.ª agrónoma Ana Soeiro, as associações do sector (p.e., Qualifica) e outros timoratos. Mas o mais grave é mesmo a atitude do governo actual, que se justifica dizendo que muito tem feito pelo sector: na lista das medidas que propagandisticamente elenca, nenhuma respeita à promoção desses produtos. Fui ver o site do Ministério da Agricultura e a pesquisa deu em nada, zero, népias. Os responsáveis têm o descaramento de dizer que as "Certificações não foram mais-valia" pois "a profusão de registos [de certificação] acabou, em muitas situações, por não corresponder a uma alternativa com mais-valias para os produtores e regiões produtoras". Ora, a questão não é essa, mas sim a de saber se o Estado cumpriu a sua parte, isto é, a de certificar e de divulgar e promover. A primeira, sim, mas imersa em burocracias inauditas (detalhes no texto do Público); a segunda e terceiras, nada de nada. Nem mesmo uma simples página onde se divulgassem esses mesmos produtos, ou uma feira específica com os mesmos. Com tantos funcionários não era possível fazer um trabalho tão simples?

Também aqui temos vindo a falar da relevância da protecção e fomento dos produtos tradicionais, seja a fruta, o vinho, etc.. Noutros países da UE como a França, Itália e mesmos países recém-integrados, como a Polónia e Hungria, a luta por cláusulas de salvaguarda é uma questão nacional. Por cá, achamos que não, que são outras coisas: estádios de futebol, turismo de betão, etc..

Sendo esta uma questão tão relevante no desenho de políticas públicas de coesão social e territorial e na salvaguarda de tradições sustentáveis, custa-me a perceber a indiferença à volta desta questão, mesmo por parte daquela direita que se diz defensora das tradições nacionais. É caso para dizer: a retórica fica-se pelo enunciado.

Na imagem, os maravilhosos biscoitos do Fundão.

5 comments:

gdsantos disse...

Bravo Daniel.
Texto fantástico!
Um outro problema é o problema da distribuição internacional dos produtos tradicionais portugueses.
Fora da economia informal do tio manel, não é assim tão fácil encontrar um bom chouriço português no circuito internacional...

Sappo disse...

Daniel, é lamentável que os governantes portugueses ajam assim com tanto descaso e cinismo nesse aspecto. Já a cruzada insana da ASAE contra esses produtos é uma atitude quase criminosa. Em termos de mercado externo, se hoje o azeite e o bacalhau português são bem consumidos aqui em Pindorama é porque houve uma ampla divulgação deles. Por que o mesmo não acontece com outros produtos, como o vinho, a castanha, a azeitona, o presunto, por ex.?

Daniel Melo disse...

A questão da distribuição externa é, de facto, um dos problemas, gdsantos.
Por isso mesmo eu referi no post o facto do Estado português nada ter feito quanto a "divulgar e promover" os produtos tradicionais de pequenos produtores. Claro que estes também poderiam tentar criar as suas próprias redes, mas, uma vez que são pequenos produtores, i.e., com poucos recursos e desconhecendo a realidade de cada sector, é óbvio que faria todo o sentido terem também estímulos oficiais para poderem dar esse salto.
Ainda assim, e se estás com ânsias de enchidos em Londres, sempre te direi que decerto haverá alguma venda de emigrantes por aí que te poderá satisfazer.
Em Vauxhall, existe um mini-mercado de madeirenses bem apetrechado, ladeado por uma casa de vinhos e por um restaurante com buffet recomendável, também madeirenses. Fica em frente da sede do MI5 ou MI6.
Em Portobello, no mercado local, na parte final, onde estão os cafés portugueses (Lisboa, etc.), também decerto deverá haver alguma venda de produtos deste género.
É uma questão de procurar e perguntar. A lista Páginas Portuguesas (http://www.netpaginas.com) também pode ajudar.
Boa sorte!!

Daniel Melo disse...

Ora, aí está uma boa pergunta, Manolo, a que eu não te sei responder, sinceramente.
Num país como o Brasil, com tantas possibilidades de ensaiar associações entre empresas e representação externa portuguesa, é também para mim um mistério que não haja mais produtos tradicionais lusos a serem promovidos e apreciados.
Falta de engenho? Desconfiança dos autóctenes? Ambas as coisas?
No Nordeste, pelo menos, a tradição gastronómica portuguesa é muito valorizada, pelo menos junto de certos estratos sociais.
E a doçaria, com o bolo-rolo na dianteira, tem muita saída na rede da Casa do Frio (acho que é assim que se chama), que tem uma loja em São Paulo.

gdsantos disse...

Em Londres eu recomendo o The Wine Cellar em Kentish Town Road - tb gerido por uma família de madeirenses. Eles têm uma cave de vinhos daquelas que dá para passar o resto da vida no petisco!

Recomendo ainda um café português (sem nome) em Pratt Street com as melhores francesinhas do lado londrino do Porto!

É certo que estes dois casos - como os que tu mencionas, daniel - estão mto para além da economia informal do tio manel, mas são em grande medida negócios geridos por portugueses e dirigidos à comunidade portuguesa.

A questão que é preciso perguntar é como fazer passar o 'pacote tuga de delícias culinárias e agrícolas' para uma comunidade de estranhos chamada mundo?

Não é só o estado não, como tu dizes, a ter voto na matéria. São tb os empresários, em particular a sua capacidade de projectar uma imagem tanto diversa quanto coerente do que é portugal.

Para quando uma tosta mista com galão no Wine Cellar?