terça-feira, 24 de novembro de 2009

Concorda que o casamento possa ser celebrado entre pessoas do mesmo sexo?

Esta será a pergunta a colocar aos cidadãos portugueses em referendo próximo.

Para o efeito, foi lançada uma petição para reunir as 75 mil assinaturas necessárias a uma iniciativa popular de referendo, já que o parlamento não prescinde da sua competência nesta matéria e irá legislar em breve, honrando os programas eleitorais. De par, a novel Plataforma Cidadania e Casamento divulgou a 9/XI um manifesto sobre o assunto. Apesar do nome, esta ong é tendencialmente contra o referido casamento homossexual, donde resulta uma contradição insanável com o «cidadania e casamento» inscrito no nome, pois a rejeição do casamento homossexual impõe-se como situação anti-constitucional, além de atentatória dos direitos humanos. Segundo o manifesto, o casamento homossexual «introduz uma alteração num instituto milenar» e acarretará mudanças de carácter «histórico e civilizacional», daí a necessidade do dito referendo. Tanto um como o outro argumento são pobres: por esta ordem de ideias, ainda andávamos a desbastar pedras de sílex, a comer com as mãos e a dormir em grutas.

No Peão temos vindo a debater este assunto desde 2008 (vd. esta etiqueta). Em post anterior, João Miguel Almeida criticou a opção do referendo por atentar contra os direitos das minorias, porquanto estes não devem ser referendáveis. E afastou o paralelismo com a IVG, pois esta era uma questão potencialmente relativa a todos. Sobre a diferença entre ambos os temas foi avançado o argumento forte de que no caso do IVG estavam em confronto 2 direitos fundamentais enquanto no caso do casamento homossexual não existe confronto, apenas a sonegação histórica dum direito a uma minoria.

Mas a questão é ainda mais complicada. Parece-me que se está a fazer caminho numa 'tradição' bloqueadora: sempre que no parlamento surge e se aprova certo tipo de propostas mais progressistas irrompe um referendo para contrariar a delegação de competências no poder representativo. Foi assim com a regionalização, foi assim com a IVG, será assim agora. Vejamos como.

Como manobra de atracção, a petição menciona em concreto os projectos de lei do BE e PEV. Ou seja, além do papão dos 'vermelhos', remete para a questão da adopção.

E o manifesto concretiza: atendendo à «consequência jurídica» do casamento homossexual - a adopção por casais do mesmo sexo, «com grave prejuízo do bem das crianças» -, exige-se um 'debate público' sobre as duas matérias. Mas a proposta parlamentar do PS não contempla a adopção, por defender que o casamento e a adopção são questões distintas, recorrendo ao caso belga. Até podem ser, mas é óbvio que também estão relacionadas. E é por aí que o movimento do contra irá pegar. Contudo, o busílis da questão é outro.

O que está subjacente a esta repentina cruzada, além de puro preconceito social, é a imposição dum único modelo de família a toda a sociedade: 'a família' heterossexual, procriadora, com casamento civil, com um pai a fazer de pai e uma mãe a fazer de mãe, com os respectivos filhotes, etc., etc.. Como essa imposição é impossível para outras configurações conjugais (uniões de facto, sem ser de facto, etc.), ou para diversos tipos de família historicamente existentes (viúvas com filhos, crianças criadas por padrinhos, avós, outros familiares, casais inférteis ou que não querem ter filhos, etc.). Quanto aos 'pais' e 'mães' deixarem de ser 'pais' e 'mães', enfim, estamos a falar de construções sociais e culturais que remetem novamente para o modelo da família patriarcal: o pai-chefe de família, distante, disciplinador (de preferência, autoritário) e não afectuoso; a mãe, subordinada, presente, afectuosa. Modelo esse em crescente erosão nas sociedades modernas, à medida que, entre outros processos, avançaram a emancipação das mulheres, novos modelos de parentalidade e conjugalidade, a laicidade, etc.. É isto e só isto que está em causa. O resto é areia para os olhos.

14 comments:

www.angeloochoa.net disse...

(...)
Amigo(a), obriga-nos a ler nas entrelinhas?

Daniel Melo disse...

Caro Ângelo Ochoa,
muito grato ficaria se me pudesse elucidar em que parte do post não fui claro.

www.angeloochoa.net disse...

aMIGO(A):
Leia, p. f., o artº 16º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que conta bem mais de cinquenta anos de haver sido universalmente proclamada. Se não estiver para ler, lhe poupo a pesquisa, e cito:
«Artigo 16º 1 - A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião.»
«Artigo 16º 3 - A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado.»

www.angeloochoa.net disse...

Daniel Melo:
... E porque cristão aqui nascido em Terra de Santa Maria, aqui criado, educado, casado, lhe cito ainda Catecismo Da Igreja Católica (Artº 2211):
«A comunidade política tem o dever de honrar a família, de a assistir e de nomeadamente lhe garantir:

-- a liberdade de fundar um lar, ter filhos e educá-los de acordo com as suas próprias convicções morais e religiosas;

-- a protecção da estabilidade do laço conjugal e da instituição familiar;

-- a liberdade de professar a sua fé, de a transmitir, de educar nela os seus filhos, com os meios e as instituições necessárias;

-- o direito à propriedade privada, a liberdade de empreendimento, de obter um trabalho, uma habitação e o direito de emigrar;

-- consoante as instituições dos países, o direito aos cuidados médicos e assistência aos idosos, bem como ao abono de família;

-- a protecção da segurança e da salubridade, sobretudo no que respeita a perigos como a droga, a pornografia, o alcoolismo, etc.;

-- a liberdade de formar associações com outras famílias e de ter assim representação junto das autoridades civis.»

Daniel Melo disse...

Caro Ângelo Ochoa:

afinal, a necessidade de leitura nas entrelinhas era só aplicável ao seu 1.º comentário...

Não percebo o sentido do seu 3.º comentário, listando preceitos do catecismo, pois nada tenho contra eles.

Quanto ao seu 2.º comentário, é verdade, a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz isso, mas a nossa Constituição vai mais adiante, consagrando o direito ao casamento e à constituição de família a todos e proibindo a discriminação com base na orientação sexual.

Como teve o cuidado de transcrever documentos, aproveito também para reproduzir parte dum texto que me parece bem elucidativo do que está em causa:

«Em Portugal, o Artigo 36º da Constituição refere que "Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade." Mais: A Constituição da República Portuguesa proíbe explicitamente, desde 2004, a discriminação com base na orientação sexual (Artigo 13º). No entanto, o casamento civil continua a existir exclusivamente para casais constituídos por pessoas de sexos diferentes, numa clara violação da Constituição – que é a nossa Lei Fundamental. Isso significa que há muitos direitos associados ao casamento civil aos quais gays e lésbicas não têm acesso: do registo às heranças, passando pelos regimes de propriedade até aos inúmeros aspectos da vida quotidiana em que o estado civil é relevante.»
(continua)

Daniel Melo disse...

Como não cabia o excerto todo no comentário anterior, aqui vai a restante parte:

«Os deveres fundamentais do casamento civil estão claros na lei portuguesa: assistência (alimentos e contribuição para os encargos da vida familiar), fidelidade, respeito, cooperação, coabitação. No entanto, embora muitos casais de gays e de lésbicas já cumpram estes deveres, há vários exemplos do conjunto de direitos e deveres que diferenciam o casamento civil da união de facto:
Registo — não existe a possibilidade de registo da União de Facto e a lei não especifica os mecanismos pelos quais se faz prova de viver em união de facto;
Heranças — as pessoas que vivem em união de facto não são herdeiras uma da outra; cada uma pode fazer testamento a favor da outra, mas esse testamento apenas permitirá especificar o destino de parte do património (não havendo cônjuge, existe uma quota indisponível que se destina necessariamente a descendentes e ascendentes);
Adopção — o direito à adopção continua consignado apenas para as uniões de facto entre pessoas de sexo diferente;
Dívidas — são da responsabilidade exclusiva da pessoa que as contrair, mesmo se contraídas em benefício do casal, pois não existe património comum;
Direito ao nome — não há possibilidade de escolha da adopção de um apelido d@unid@de facto;
Regime patrimonial — ao contrário do casamento civil, a união de facto não permite a escolha de um regime de comunhão de bens ou comunhão de adquiridos.

Um casal heterossexual pode, considerando os conjuntos de direitos e deveres inerentes, optar pelo casamento civil ou pela união de facto — duas figuras jurídicas que têm, como se viu, diferentes implicações embora sejam baseadas num mesmo modelo de conjugalidade.

Um casal de gays ou de lésbicas tem apenas acesso à união de facto. Esta discriminação é real e afecta as vidas de muitos casais de gays ou de lésbicas.

É por isso que, a par dos E.U.A. e do Canadá, vários países da Europa têm vindo a alargar o casamento civil a casais constituídos por pessoas do mesmo sexo. A Bélgica veio juntar-se à Holanda, seguindo-se agora a Espanha.

Também em Portugal, o facto de se atribuir o mesmo reconhecimento legal a casais de pessoas do mesmo sexo não terá qualquer implicação sobre a liberdade de outr@s. Casais heterossexuais continuarão a ter exactamente a mesma liberdade de escolha. Nesta questão, liberdade e igualdade são, afinal, perfeitamente compatíveis.

No entanto, há vozes discordantes em relação ao reconhecimento dos casais de pessoas do mesmo sexo:
Fala-se na impossibilidade de ter filhos em conjunto, quando nem o casamento civil pressupõe a reprodução nem a reprodução pressupõe o casamento (o casamento civil é obviamente possível para pessoas estéreis ou para pessoas para além da idade reprodutiva).
Mistura-se casamento civil e adopção, quando a adopção é uma outra questão regulada, aliás, por uma lei específica.
Na falta de argumentos racionais, tenta-se ainda uma "táctica do susto" falando nas ameaças da poligamia e do incesto, quando não há qualquer reivindicação social nesse sentido e quando, sobretudo, não existe qualquer relação lógica entre essas questões e o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo.

Fala-se portanto de cor, tentando de todas as formas dissimular a questão essencial: essas vozes reproduzem apenas um preconceito associado ao fundamentalismo religioso, vindo de pessoas que lidam mal com a igualdade e precisam de continuar a ver gays e lésbicas como cidadãos de segunda. Curiosamente, são também essas pessoas que, em geral, desvalorizam completamente o casamento civil face ao religioso, perdendo toda a legitimidade para se intitularem "protectores" do casamento civil.»
(in «O que queremos: Igualdade no Acesso ao Casamento Civil», da Associação ILGA Portugal, http://www.ilga-portugal.pt/glbt/gip/casamento.htm)

www.angeloochoa.net disse...

Daniel:
Não me diga que os sagrados direitos humanos estão ultrapassados... e logo pela constituição portuguesa... Se mais lenha quiser, amigo, ou seus ledores, vide...
http://cid-9c6666bade6d7e92.spaces.live.com/default.aspx

www.angeloochoa.net disse...

... e se mais lenha muita ainda quiserem o amigo Daniel e seus fieis ledores vide (também)...
http://angeloochoa.net/pdf/historiasfuribundas.pdf
(cum miriam semper)

www.angeloochoa.net disse...

Vai o Daniel me perdoar a insistência, mas -- e quero que bem me entenda -- lhe dou uma dica para subsquente diálogo que civilizado desejaria -- ci vi li za do:

HÁ QUE distinguir~
(REGRA DE OURO~
O Acessório Do Essencial...
Esta regra vale para muita matéria que anda no ar.
Vale, Amigo!

Daniel Melo disse...

«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades».

É verdade, caro Ângelo Ochoa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem é muito importante, mas, como muitos outros documentos históricos relevantes, é filha do seu tempo. Já tem 60 anos, a nossa Constituição tem 33, por isso é natural que esteja mais 'actualizada', digamos assim.
Para bom entendedor.

PS: novamente, nada contra a família (não queria ter que puxar pelos meus 'galões da vida privada', mas, enfim, eu também tenho uma!), nada contra as famílias, os vários tipos de famílias.

www.angeloochoa.net disse...

Mude-se embora a face do mundo, Daniel caro, terá que concordar que certas palavras e certas questões não mudam, exemplo disso é a afirmação de Camões que cita.
Atentemos ao que permanece, e esqueçamos a mutável condição deste «mundo...»
(Quem isto lhe escreve, amigo, é alguém que também não puxa de galões, mas que «ensinou» Filosofia durante 36aninhos...)

Daniel Melo disse...

Ainda que atrasado, aqui vai:
mas que verdades imorredoiras são essas?

www.angeloochoa.net disse...

Ainda que nada atrasado, aqui vai:
mas que verdades não imorredoiras são essas?

www.angeloochoa.net disse...

«O céu e a terra passarão, porém as minhas palavras não passarão.»

(Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo)