terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Mistérios de Lisboa - o filme

Mistérios de Lisboa foi um dos filmes que marcou 2010 e será uma série de televisão a marcar 2011. O realizador chileno Raul Ruiz, que chega a este filme após um longo e marcante percurso no território fantástico, dá a conhecer Camilo Castelo Branco a muitos estrangeiros e permite aos portugueses vê-lo de um outro ângulo. Em primeiro lugar porque o romance que adapta não é o clássico Amor de Perdição, dado nas escolas portuguesas e objecto, pelo menos, de três adaptações cinematográficas, mas a obra de juventude de Camilo, escrita aos 29 anos, Mistérios de Lisboa. É um Camilo fascinado pelo seu poder de criar um universo povoado de personagens em ebulição, um Camilo que escreve mais com a imaginação do que, como fará mais tarde, com a memória de uma vida atribulada. Camilo narra uma memória imaginada que podia ser, na expressão de Camões, um «sonho imaginado», tão rocambolescas são as peripécias, tão insólitas são as personagens ou tão inesperadas as reviravoltas do enredo. A transposição do livro para cinema sublinha o filão onírico, insinuando que toda a história poderá ser um sonho do narrador, um menino que inicialmente é filho de pai incógnito, ou uma ficção que a criança constrói num teatro com personagens de papel.

Mas se o teatro é uma referência deste filme, como o é dos filmes de Manoel Oliveira inspirados pela obra e vida de Camilo Castelo Branco - Amor de Perdição e Francisca -, Raul Ruiz envereda por caminhos muito diferentes de Oliveira. O centenário realizador português, nessa fase camiliana pretendia um regresso aos primórdios do cinema declarando que este era apenas «teatro filmado», recorrendo por sistema ao plano fixo e pondo os actores a recitar textos, do modo mais imóvel e lento possível. Ruiz segue outro impulso primitivo neste filme, o de regresso às assombrações da lanterna mágica, lembrando que no início o cinema era luzes e sombras em movimento. As personagens são compostas de mudança – de palavras, de gestos, de corpos, de situação social. A nossa perspectiva sobre elas muda quase todos os minutos e a câmara está sintonizada com um mundo em permanente transformação, movendo-se com elegância, precisão e subtileza.

O filme possui um naipe de bons actores – alguns obrigados a interpretar as várias vidas de uma só personagem – e uma fotografia tão sensível às sombras de alguns cenários interiores como à beleza intensa de cenários exteriores localizados em Sintra ou no Alentejo. Trunfos na manga de um filme mágico que faz dos mistérios encenados no quarto de uma criança os mistérios de Lisboa e do mundo.

3 comments:

Daniel Melo disse...

Cá está uma crítica que 'puxa' pelo filme...

João Miguel Almeida disse...

Pois, eu gosto é de escrever sobre filmes que me «puxaram» para algum lado. Neste caso o filme também me levou a ler o romance de Camilo, leitura da qual deixarei aqui registo.

João Miguel Almeida disse...
Este comentário foi removido pelo autor.