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sábado, 19 de março de 2011

«Memórias» de Raul Brandão

Se há um título de livro do início do século XX que se pode considerar precursor da actual escrita blogosférica é Memórias de Raul Brandão. Uma colectânea de notas que o autor ia escrevendo em cafés, na rua, em casa, em cadernos de capa preta, e depois reuniu em três volumes, cada um com um prefácio que é uma grande porta de entrada no labirinto de uma vida. No «prefácio» do primeiro volume o leitor tem um vislumbre do que pode esperar da obra: «Poderão objectar-me: - Então com que destino publico tantas páginas desalinhadas, de que eu próprio sou o primeiro a duvidar? É que elas ajudam a reconstituir a atmosfera de uma época; são, como dizia um grande espírito, o lixo da História.»

As atmosferas que Brandão capta correspondem a dois regimes que se sucedem, em agonia: a monarquia constitucional e a I República. O memorialista é impiedoso nas suas notas sobre a monarquia constitucional: «Hintze passou por ser um homem íntegro. José Luciano também. Pessoalmente decerto, mas com o que ambos eles esbanjaram reconstruía-se o país de alto a baixo. (…) Ser político em Portugal foi a mais rendosa de todas as indústrias.» A consciências dos impasses da monarquia não o convence a aceitar a ilusão republicana de uma República acantonada em Lisboa e Porto, cercada por um país rural e monárquico povoado por gente que se tivesse direito a voto derrubava a República: «Mas o país é, na realidade, monárquico? Se o país é monárquico, porque falham todas as tentativas de incursão? (…) Se o país fosse monárquico, a república já não existia. Bastava um sopro para a derrubar.»

Em contraste com a vida política e social fervilhante de Lisboa, permanece uma sociedade rural marcada pelo silêncio e quase imóvel. Raul Brandão, que é um escritor do sonho e da dor, mostra-se inspirado por ambos os ambientes. Em Lisboa fascina-se com a diversidade das personagens, a velocidade dos acontecimentos, a vã e efémera glória. No campo, com a profundidade rude das paisagens e figuras. As suas memórias são povoadas por figuras conhecidas, que ele descreve em traços largos: Rafael Bordalo Pinheiro: «Todo ele mexe, todo ele é caricatura e imprevisto: os olhos, o nariz, as mãos e até o bigode que se encrespa, desenham e imitam». Guerra Junqueiro: «Parece um pregador socialista-tolstoiano, um santo cavador de barba negra e inculta: traz ainda terra pegada nas mãos e uma roupa velha, a que só faltam alguns remendos cosidos à última hora…»

Há personalidades que não conheceu, mas decifra no seu legado: «Herculano descende de pedreiros e toda a sua obra é a dum homem que mói e lavra com solenidade a pedra, a dum desses extraordinários montantes que metem o ferro até à raiz da fraga, racham o penedo, afeiçoam a laje, e acabam, enfim, por construir a catedral.»

Acerca do controverso Sidónio Pais, que empolgou as massas e entusiasmou intelectuais, escreve: «Metade príncipe, metade condottiere, seduziu, passou como um relâmpago e não deixou vestígios, porque a força que um momento o ergueu até ao alto, se não era fictícia, desapareceu ao primeiro sopro. (…) teve a existência que têm sempre os homens que procuram conciliar forças adversas. Duram um momento. Desaparecem num momento.»

Raul Brandão não se interessa menos por personagens anónimas - o senhor José, cavador, «Tem oitenta anos e tudo desliza sobre ele como sobre uma trave.» A miséria do mundo rural leva-o a interrogar-se sobre o sentido de vidas que são apenas dor e sonho, quando não apenas dor e um silêncio entrecortado por meia-dúzia de palavras: «Este mundo em que vivemos é uma mentira monstruosa. É um mundo anticristão. Como é possível isto? Como é possível que esta gente que trabalha toda a vida acabe a vida a pedir? (…) Espero na lei divina e, se não puder ser, na lei humana.»

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Memória de uma cooperativa cultural em tempos adversos

A cooperativa em foco é a Confronto, e a evocação cabe a Mário Brochado Coelho, num livro que será apresentado esta noite no Porto, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett (vd. convite ao lado).
A obra, intitulada Confronto - memória de uma cooperativa cultural. Porto 1966-1972, é editada pela Afrontamento.
Esta associação pertenceu ao movimento de cooperativas culturais que funcionou como pólo de resistência ao Estado Novo. Para mais informação sobre a obra, vd. esta súmula do autor.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Caderno de memórias coloniais

Porque a história do colonialismo português tem sido um dos meus temas de estudo e investigação, estou atenta ao que se vai publicando nesta área. Também procuro ler os livros de memórias e os romances históricos sobre o período colonial que vão aparecendo. Interessam-me, particularmente, as memórias, pois abordam as expriências de vida, as emoções, o quotidiano, aspectos que as fontes documentais oficiais,  regra geral, não reflectem.

Por estar atenta a essa literatura autobiográfica ou memorialística sobre África, escrita por portugueses que regressaram à antiga metrópole depois das independências africanas, posso dizer que Caderno de memórias coloniais (Coimbra, Angelus Novus, Dez. 2009), de Isabela Figueiredo (autora do blogue Novo Mundo), é um livro fora do comum. Ao contrário da esmagadora maioria da «emergente literatura dos 'retornados'» (como lhe chamou Sheila Khan), é um exclente livro em termos literários. E esse será o melhor motivo para ler e recomendar a obra. Acresce que consegue dar um contributo significativo para a desconstrução de uma imagem hegemónica e monolítica das vivências dos colonos portugueses em África. A partir das memórias de infância e adolescência, trabalhadas literariamente, somos confrontados com a sua visão do sistema colonial, do racismo, da sexualidade, do «retorno», da sociedade portuguesa... Como pano de fundo e elemento catalizador, a sua relação com o pai; figura que, para ela, a partir de certa altura, passou a personificar o colonialismo. Não obstante a educação e os valores cristãos que sempre lhe transmitiu.

O colonialismo português paternalista do pós-II Guerra Mundial, que a um ideário humanista (fundado numa suposta vocação ecuménica dos portugueses) continuava a aliar uma prática de violência, discriminação e exploração dos africanos, ganha corpo neste livro.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

O impagável Outono lisboeta...

Retomo aqui as apaixonadas impressões de Lisboa feitas pelo médico Jorge ao seu amigo republicano João Chagas, então em Paris, agora relativas ao dia de hoje há 94 anos atrás. É claro que agora já ninguém regressa da praia por esta altura, as toilettes são outras (mas parece que vamos voltar ao preto-e-branco na próxima Primavera-Verão, hélas..), etc. e tal. Enfim, vale a pena descobrir as diferenças:
"Por cá temos tido dias lindíssimos: o impagável Outono lisboeta. Regressa-se à cidade com as faces queimadas e um ar retemperado. As crianças das Juntas de Paróquia param com os banhos. Ouvem-se as últimas Sementeiras. Aparecem as primeiras toilettes de Paris. A arcada anima-se. Há um ligeiro perfume de Ambaca".
João Chagas
(Correspondência literária e política,
Lx., Empresa Nacional de Publicidade, 1958, vol. II, p.179)

Nb: imagem de corrida de cavalos no hipódromo de Lisboa, por Joshua Benoliel (1913, não sei se é em Outubro, mas foi o mais condizente que encontrei para ilustrar o texto).

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Era assim há 95 anos atrás

Duma carta do médico Jorge para o seu amigo e político republicano João Chagas:
"Felizmente, dissiparam-se as nuvens, que toldavam uma alma clara e luminosa, e hoje posso gozar, com vagar e requinte, este lindo fim de Verão lisboeta, que é um puro encanto.
Uma temperatura de Arcádia, luz a jorros, invadindo tudo, tornando magníficas as coisas ínfimas, e, por cima de tudo, um céu rebrilhante e puríssimo, dum azul de faiança rica. Venha depressa para gozar, com o requinte dum bem-aventurado, os primores da Natureza Nacional.
O almoço já está assente. Quando você anunciar a sua chegada irei eu próprio apartar o peixe espada que se há-de frigir e comer nessa tarde de glória, de patrotismo satisfeito e de amizade. O jogo de rabanetes para a salada é cedido por um dos nossos mais acreditados criadores de hortaliça e o Colares é da afamada Casa do Cadaval
".
João Chagas
(Correspondência literária e política, Lx., Emp.ª Nacional de Publicidade, 1958, v.II, p.144)
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Nb: na imagem, venda ambulante de peixe por varinas no Jardim Nuno Álvares (Santos-o-Velho), em 1912, foto de Joshua Benoliel (fonte: AFML).

domingo, 23 de setembro de 2007

Era assim há 85 anos atrás

“A classe [dos operários sapateiros] comemorou ruidosamente a vitória alcançada [aumento salarial na Braga de 1922, após greve sectorial de 15 dias], e na festa o bom «verdasco» da terra também teve a sua parte.”
José Silva
(Memórias de um operário, Porto, s.n., 1971, p. 110)