quinta-feira, 19 de abril de 2007

Estes são aqueles que querem ser levados a sério

Eu já tinha dado, pela minha parte, a polémica como fechada. Mas o Bloco de Esquerda (BE) resolveu fazer um favor ao Governo, produzindo este cartaz. Deu ainda mais publicidade à iniciativa "Novas Oportunidades". Ao mesmo tempo, deu ainda mais provas de um impressionante oportunismo e de uma incrível demagogia.

Vou ser frontal q.b. naquilo que tenho para dizer. Eu não queria partidarizar o debate assim, mas vai ter que ser:

1. Comecemos por um elogio: o BE percebe o mínimo de sociologia e de comunicação política. É que o BE, partido que recebe os seus votos de uma fracção da classe média e média-alta qualificada, conhece bem os problemas dos seus votantes. No que toca à educação, os seus problemas não passam pelo drama de famílias cujos elementos têm menos que o 6.º ano, ou menos que o 9.º ano, ou o secundário incompleto; famílias cuja probabilidade dos seus filhos saírem das escola antes do 9º. ano ou antes do 12.º para engrossar o exército de reserva de mão-de-obra da construção civil é altíssima.
Não: o seu drama eventual é terem eventualmente filhos licenciados em variadíssimas áreas - algumas sem expressão de mercado particularmente relevante - que não encontraram um emprego à altura dos seus sonhos. Isto é um problema. Conheço várias pessoas nessas circunstâncias. Mas – e para colocar as coisas nas devidas proporções - o problema dramático do país não é esse. Já escrevi aqui que o desemprego da mão-de-obra qualificada em Portugal é mais baixo que a média na EU. Isto não é dizer que não existem milhares de casos individuais destes. Existem. Mas uma coisa é falar de problemas individuais, outra coisa é falar de problemas nacionais. O problema da nossa população é basicamente este: temos 3,5 milhões de activos com o secundário incompleto; 2,5 milhões e meio destes, têm o 9.º ano ou menos; destes, meio milhão tem menos de 24 anos. Estas pessoas, ao contrário dos (potenciais) votantes do BE, se nada for feito para inverter esta situação, vão ficar uma vida inteira desqualificadas perante um mercado de trabalho cada mais complicado para os que têm baixas qualificações. A prioridade política passa por intervir junto destas populações, as mais fragilizadas, sem recursos da mais vária ordem, não apenas hoje mas, e ainda mais, amanhã. Os que acham que estas coisas da educação e da formação profissional são intervenções menores, quiçá de pendor "tecnocrático", então é porque não são capazes de ligar pequenas medidas com a filosofia política. É que a justificação para acções deste tipo não é apenas económica (os que se podem dar ao luxo dirão "economicista"), ela é também ideológica: é a justificação rawlsiana de dar primeiro atenção aos mais desfavorecidos e de medir o bem-estar social pela elevação dos mínimos sociais. É "aqui" que é preciso agir primeiro e com mais energia, conferindo recursos e acesso a bens primeiros a estas pessoas. Ora, os (potenciais) votantes do BE não fazem parte desta população, mas acham que são igualmente "explorados". No que me parece ser por vezes a incapacidade de pensar comparativamente, e saber as limitações estruturais do país em que vivem, entra-se num discurso miserabilista que baralha as prioridades que para um Rawlsiano estão bem claras: "the underdogs first".

2. O BE é o partido que, em concorrência directa com o PCP – e quem percebe o mínimo de sociologia política sabe como isto influencia o seu instinto de sobrevivência - está sempre contra o nosso modelo de “baixos salários-baixas qualificações”. Muito bem. Estamos todos. Quando o Governo lança uma campanha de incentivo à qualificação da população e de certificação da experiência profissional, o que faz o BE? Pega nalguns exemplos do seu pequeno microcosmos (noutra época chamar-lhe-íamos “pequeno-burguês”) e transmite a mensagem de que “estudar não compensa”.
Escrevi várias vezes aqui que esta conversa de que os estudos não compensam é da mais pura irresponsabilidade. Bastava alguns senhores olharem para umas estatísticas para perceberem que praticamente em nenhum país da UE compensa tanto ter um curso universitário (ver o final do post). E bastava perceberem, se entrassem numa escola básica ou secundária, que o "discurso de que estudar não leva a lado nenhum" é por vezes banal junto daqueles onde é mais importante erradicá-lo: junto dos/as jovens que, oriundos na sua maioria de famílias com pouco capital económico e cultural, acham que não vale a pena continuar na escola porque, estudem o que estudarem, façam o que fizerem, vão acabar como electricistas, serralheiros ou mecânicos. É absolutamente central contrariar este discurso e mostrar-lhes que se ficarem na escola e prosseguirem a escolaridade, as suas hipóteses de não apenas de encontrarem um emprego no futuro, mas de esse emprego ser mais bem pago, mais estável e mais enriquecedor aumentam. O BE, que passa a vida a bradar contra a (real) reprodução das desigualdades perante e pela escola, em vez de ajudar numa campanha para puxar pelos/as miúdos/as e dar-lhes um algum alento e confiança no futuro, fez precisamente o oposto: reproduz e alimenta irresponsavelmente o mesmo discurso de muitos pais e alunos.
Que esses pais e esses alunos, cuja trajectória passada e “mundo-da-vida” presente contribuem para, lamentável e poderosamente, cercear as suas perspectivas de futuro, pensem como pensam e ajam como agem – desvalorizando os estudos, e no limite abandonando a escola – eu percebo. Que o BE reproduza o mesmo discurso só porque uma parte da sua constituency, altamente qualificada (e por isso a anos-luz do problema da falta de oportunidades da maioria da população portuguesa: era tão bom que conseguissem perceber isso, que faz toda a diferença neste problema), atravessa alguns problemas de inserção no mercado de trabalho; e que o BE transforme o problema transitório de uma pequena fracção da população portuguesa numa questão que não apenas se sobrepõe à tragédia nacional da ausência de qualificações da população e do abandono escolar, mas que dá precisamente os sinais errados a quem mais ganharia com o seu investimento em qualificações, isto, é algo não apenas de profundamente lamentável, mas uma verdadeira lição política, e que define o BE: define o seu público, a sua agenda de prioridades, e, permitam-me a frontalidade, a sua hipocrisia.
Com as suas posições elitistas viradas para quem já tem uma qualificação (a campanha é para quem ainda não a tem e corre o risco de nunca a vir a obter!), alimenta, pelo menos simbolicamente (e isto do ponto de vista moral, nestas coisas, conta), para a continuação das elevadas taxas de abandono escolar.
E no futuro, claro, virá a lenga-lenga de que o Governo não faz nada para aumentar a qualificação dos portugueses, e que por isso continuamos numa economia de “baixas qualificações-baixos salários”. Se isto não é hipocrisia, então digam-me o que é.

3. Eu gostava que as pessoas que têm defendido o que têm defendido nos últimos dias - e que têm um pingo de seriedade - olhassem para o seguinte quadro e lessem os seguintes parágrafos. São retirados de um estudo do Banco de Portugal, publicado no seu boletim económico em 2004, Vol.10, nº1 (pp.71-80), assinado por Pedro Portugal (que pode ser encontrado on-line: ir a www.bportugal.pt > ‘Publicações’ > ‘Boletim Económico’). Chama-se, ironicamente, “MITOS E FACTOS SOBRE O MERCADO DE TRABALHO PORTUGUÊS: A TRÁGICA FORTUNA DOS LICENCIADOS”:

«As transformações tecnológicas que ocorreram ao longo das últimas duas décadas, e que favoreceram uma procura crescente de trabalhadores qualificados, surpreendeu o mercado de trabalho português numa situação de oferta insuficiente de qualificações. Este défice de qualificações terá gerado um significativo acréscimo do prémio salarial atribuível aos trabalhadores com curso superior até ao meio da década de noventa. O hiato de salários entre os trabalhadores com e sem licenciatura ter-se-á mantido muito elevado desde esse período. Os vários estudos que estabelecem comparações internacionais dos prémios de licenciatura não divergem na conclusão de que o mercado de trabalho português apresenta prémios invulgarmente elevados. Serão, aliás, os mais elevados da União Europeia. Compreende-se que o desequilíbrio entre as competências procuradas pelos empregadores e as qualificações disponíveis no mercado de trabalho seja muito acentuada porque existe um grande desfasamento entre a proporção de licenciados em Portugal e nos restantes países da União Europeia.
(...)
Este hiato de qualificações demorará várias décadas a ser corrigido.
Neste ensaio procurou-se aprofundar a análise das condições privadas de decisão de investimento num curso superior. Concluiu-se que o benefício monetário esperado da obtenção de uma licenciatura é excepcionalmente elevado, fazendo corresponder a um custo de investimento de cerca de 25 000 euros, um valor acumulado de ganhos salariais de aproximadamente 200 000 euros. A estimativa da taxa real de rentabilidade (15 por cento) excede claramente o retorno esperado de outras aplicações financeiras.

(...)
O investimento em educação gera também benefícios sociais significativos pelas externalidades positivas que desencadeia. Uma economia dotada de uma força de trabalho mais educada é também mais produtiva. De acordo com um trabalho recente da OCDE o défice de qualificações académicas em Portugal será responsável por uma quebra anual de 1.2 do produto interno bruto. Ter companheiros de trabalho qualificados também tende a aumentar a produtividade (e os salários) devido à presença de benefícios sociais da educação nas empresas.

Não se ignora que os jovens recém-licenciados defrontam presentemente dificuldades em assegurar um posto de trabalho desencadeadas pela recessão económica e pelas restrições orçamentais. Mas esta é uma situação conjuntural que não dissipa as vantagens estruturais associadas à detenção dum curso superior. Mesmo em conjunturas económicas desfavoráveis essas vantagens persistem. Em particular, os licenciados continuam a deter uma maior probabilidade de encontrar um posto de trabalho adequado, em comparação com os jovens com menos habilitações académicas».


Estas letras estão em tamanho gigante para ver se a mensagem, finalmente, passa.

P.S.1 - Podem encontrar mais dados esclarecedores aqui.

P.S.2 - Lê-se aqui que «Francisco Louçã afirmou que o BE vai «durante as próximas semanas» promover «colóquios e intervenções públicas» em defesa da qualificação e do emprego e desafiou o primeiro-ministro, José Sócrates, a debater o tema no Parlamento.
«Desafiamos mais uma vez o primeiro-ministro para que no debate mensal da próxima semana debata no Parlamento a questão das qualificações e do emprego», disse, acrescentando que o BE pretende confrontar o Governo com «a inconsistência e a insensibilidade social
. "Insensibilidade social"???? O BE põe um cartaz que sobrepõe o problema de alguns milhares de privilegiados - lamento colocar as coisas assim, mas num país como o nosso ser licenciado é um privilégio (relativo, claro, como todos os privilégios) - ao problema de milhões de portugueses e vem falar de "insensibilidade social" do Governo?
Mas que lata!


4 comments:

andre disse...

Caro Hugo,

tenho andado um bocado por fora (ao quadrado, por fora daí e por fora da bloga), de modo que não tenho podido acompanhar esta questão. Também não tenho lido no detalhe os posts que têm sido escritos aqui.

No entanto, queria dizer uma coisa relativamente à tua argumentação: tu dizes que esta campanha do governo se dirige apenas à faixa da população que precisa mais de qualificação. Mas não há nenhuma campanha de um governo democrático que se dirija só a uma parte da população. Se há uma campanha do governo, ela pode ser criticada por qualquer pessoa. Uma imagem pública dirige-se a todos.

Não me pronuncio sobre a bondade das medidas do governo, porque as não conheço. Mas se a campanha que as promove for classista (e pelo que eu vi, que foi só o cartaz da Judite de Sousa, é-o) deve ser criticada.
Se a contra-campanha do Bloco confundir a Nuvem por Juno, e meter tudo no mesmo saco, eventuais boas medidas e uma campanha infeliz, também deve ser criticada.

Voilà, um comment à la François Bayrou

abraço
Andre

Hugo Mendes disse...

"Mas não há nenhuma campanha de um governo democrático que se dirija só a uma parte da população. Se há uma campanha do governo, ela pode ser criticada por qualquer pessoa. Uma imagem pública dirige-se a todos."

Olá, André. Há duas dimensões numa campanha. A primeira é a do publico-alvo. Esta é feita, tipicamente, para os miudos/miudas de 15, 16, 17 anos, que, à entrada para o terceiro período, estejam más notas e que em risco de abandonar. É este o público da campanha. É para eles que é feita. É para eles que estão lá a Judite de Sousa ou o Pedro Abrunhosa. Imagina que estava lá o António Damásio ou o Sobrinho Simões. Não valia a pena, era deitar dinheiro à rua, porque nenhum miúdo para quem a campanha pretende falar os reconheceria. Mas as pessoas que escrevem nos blogues se calhar gostavam de vê-los como bons exemplos de grandes "achievers" via qualificações académicas.

Mas não discordo que, dado que a campanha é pública, ela é vista e comentada por toda a gente. Simplesmente, quando as pessoas a olham e comentam, elas têm que saber para quem se dirige a campanha. Se não fizerem isso, estão a errar completamente o alvo da crítica. Têm de deixar de olhar o mundo do seu ponto de vista individiual e perguntar, seriamente, se o cartaz que elas eventualmente acham ridículo não é aquele que vai precisamente ao encontro de um universo que é muito, mas muito diferente delas (isto se essa pessoa pertencer ao universo típico de onde são oriundas as críticas a que assistimos nos últimos dias: o das pessoas mais qualificadas).
Quanto ao "classismo". Eu admito que há aqui uma zona sensível, porque evoca comparação entre actividades sociais. Mas uma coisa é admitir que há uma zona de risco - e que existe precisamente porque uma campanha deste género tem que explorar coisas delicadas, que atinjam as pessoas, que as "abanem", que as exponham a coisas cruas, porque senão pomos um cartaz catita que diga "Não saias da escola" e pronto -, outra coisa é transformar (e procurar, mesmo involutariamente, destruir a campanha e a medida) isto tudo numa 'idiotice', numa 'imoralidade' e numa 'inconstitucionalidade'. Esta resposta é completamente disproporcionada, e essa disporção, precisamente, não é por acaso. É porque as pessoas ou estão sempre do "contra" (e mesmo que concordem com 95% da medida, transformam os 5% de que discordam num vendaval que inverte completamente o que é prioritário e o que é acessório), ou porque não percebem, de facto, a importância da medida. E, digo-o com toda a tristeza, não me espanta que não percebam. Porque se percebessem, mesmo que divergissem aqui e ali, não faziam o foclore que fazem.

Mas calma, porque o problema afinal não era só este. Se fosse uma questão de "classismo" da campanha, ou whatever, então as coisas já tinham sido ditas, já todos sabiam do que se tratavam. Mas não. E o cartaz do BE hoje prova que não. O que ele prova é que há uma discordância de públicos, e que o cartaz do PS não resolve o problema dos públicos do BE, que achou por bem contra-atacar e perdeu uma excelente oportunidade de ficar quieto. Criticar a campanha nas bases em que foi sendo criticada nos ultimos dias, enfim, acho um exagero que é sinal de parcialidade maldosa, mas enfim; agora, fazer um cartaz como o de hoje é um manifesto político enorme. Repito: aquele cartaz, no meio desta discussão (que já não é sobre o cartaz original, mas sobre o valor das qualificações, e sobre quem se preocupa com quem), é um manifesto político. E é testemunho das prioridades do BE, que faz aliás prova de coerência: infelizmente, e digo isto sinceramente e sem a vontade de querer chocar ou provocar ninguém, o BE não é capaz de olhar para outro sitio que não o seu umbigo. E o seu umbigo representa 5, 6% da população. Para os problemas dos seus representantes, dos seus amigos e dos votantes. Calma: isto é tudo legítimo: os partidos representam afinal de conta as suas "constituencies". Agora, não o façam de forma lançando mensagens que vão no precisamente no sentido contrário daquilo que é absolutamente necessário para mais de metade da população portuguesa. Do que é necessário para o pais. É contra isto, contra esta irresponsabilidade, que escrevo - um miúdo de 17 anos que quisesse abandonar a escola mas estivesse na dúvida, veria o cartaz do BE e concluiria que se um partido radical e que se preocupa com os oprimidos desvaloriza uma qualificação, então para quê estudar?

abraço
Hugo

L. Rodrigues disse...

Só um comentário ao estudo do banco de portugal: o alargamento do hiato de remunerações entre licenciados e não qualificados não se deverá também, sobretudo, às pressões da globallização sobre estes ultimos?

Não tenho a certeza de que se tenha assistido tanto a uma valorização de qualificados, como a uma desvalorização dos não qualificados...

Anónimo disse...

O estudo Banco de Portugal não contempla uma questão que poe ser pertinente. Relativamente ao gap salarial entre licenciados e não licenciados, edvia ter-se em conta que a balança pode estar muito desiquilibrada. Os licenciados a meio da carreira ou perto do seu fim ganham muito mais que um recém licenciado que, dependendo da área, tem sérias dificuldades em conseguir colocação.
Ou seja, bastam 10 cinquentões licenciados que, por força da efectiva escassez à 20 ou mais anos atrás e conseguiram um nível salarial elevado, para parecer que o conjunto desses 10 mais 30 licenciados mais novos (no total de 40) tenham um nível de rendimentos muito superior aos não licenciados.

Aliás, é do conhecimento geral que um canalizador ganha bem mais que um licenciado nos dias de hoje...

Mudando de tema, a campanha do Governo é triste e desnecessária. Duvido que os estudos tenham dado talento ao Pedro Abrunhosa e que não refere que no tempo em que a Judite Sousa começou a trabalhar na TV, qualquer curso de caudas de cão perdigueiro assegurava emprego bem pago, nem que fosse no Estado...