domingo, 26 de dezembro de 2010

A sociedade aberta e a WikiLeaks

As reacções contraditórias e paradoxais que o caso WikiLeaks tem provocado podiam ter como mote o título do livro escrito por Karl Popper durante a II Grande Guerra: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos. Para uns, Assange é um inimigo declarado dos Estados Unidos e, por consequência, da «sociedade aberta». Para outros, os inimigos da sociedade aberta são os EUA quando consideram Assange um alvo a abater (no sentido figurado e até no sentido literal).

Ressalvo que nem só a língua portuguesa é «muito traiçoeira». A «sociedade aberta» de Popper, se bem me lembro, não era um sinónimo de «sociedade transparente». Era no fundamental uma sociedade capaz de corrigir os seus erros e de responder a problemas imprevisíveis. Uma sociedade deste tipo tem de ter liberdade de informação e de crítica. Não há dúvidas que de que os cidadãos norte-americanos gozam de maior liberdade do que os russos, os chineses ou os iranianos. Mas as tão incensadas instituições liberais dos Estados Unidos não foram capazes nem de prevenir nem corrigir os erros crassos que estiveram na origem da crise financeira de 2008 e são expostos de forma tão clara no filme Inside Job.

A mim interessam-me menos as intenções de Assange do que as questões que a WikiLeaks levanta, que são de tipo diverso e facilmente confundível. Uma das questões mais falada respeita ao secretismo que rodeia os relatórios diplomáticos correntes, cuja divulgação tem levado diplomatas encartados a corar, a empalidecer ou a engasgar-se. Não serei eu a menosprezar a vergonha humana, mas parece-me óbvio que a divulgação de um relatório de uma agência de rating com consequências nos juros da dívida pública de um país causa mais abalos sociais do que todos os relatórios diplomáticos até agora divulgados pela WikiLeaks. Quantas empresas é que já faliram por causa das «inconfidências» da WikiLeaks, quantos salários foram cortados,etc? A pergunta que me coloco é: por que é que os relatórios diplomáticos correntes não hão-de ser públicos? Desse modo algumas percepções erradas ou discutíveis podiam ser corrigidas ou discutidas. É claro que os diplomatas escreveriam de um modo mais sóbrio e neutro. Em vez de lermos que Luís Amado devia ser «acarinhado» provavelmente leríamos que devia ser «apoiado» o que, em Portugal como nos Estados Unidos, seria óptimo para uns e péssimo para outros. Os relatórios agora divulgados já foram escritos a pensar em leitores futuros – o diplomata que comparou Putin e Medvedev a Batman e Robin deve ter imaginado o sorriso de um historiador daqui a cinquenta anos e deve ter estremecido com os risos dos jornalistas e dos seus colegas diplomatas russos. Uma das consequências da divulgação de relatórios diplomáticos controversos seria uma maior discussão pública sobre questões internacionais e, provavelmente, a transferência de diplomatas contestados. Mas isso sempre se fez. Far-se-ia apenas com maior transparência.

Outro tipo de questões, mais grave, refere-se à divulgação de informação relacionada com operações militares. Todas as forças armadas – quer as norte-americanas quer as dos atenienses da Grécia antiga cujos generais eram eleitos – têm o dever de não divulgar informação que ponha em risco a vida dos combatentes. Algumas pessoas podem considerar que é seu dever divulgar informação acerca de operações militares que descambam em massacres, corrupção, utilização de verbas militares para financiar o narcotráfico; ou informações que revelam a falsidade dos pressupostos legitimadores da guerra – se a WikiLeaks existisse em 2003, não teria prestado um excelente serviço se mostrasse, quando se preparava a invasão do Iraque, provas de que Saddam Husseim não possuía as célebres «armas de destruição maciça»? As pessoas responsáveis por fugas de informação acerca de operações militares devem ter um julgamento justo e é isso que se deve exigir para o soldado Manning que está há meses preso «preventivamente». A comunicação social está obcecada por Assange, mas o grande herói ou vilão é o soldado Manning. Foi ele quem meteu a cabeça na boca do lobo. Temos o direito de saber as suas razões.

4 comments:

jrd disse...

Excelente!

Bradley Manning é um "soldado conhecido" e a Wikileaks é o 'fim do mundo'-desconhecido...

Daniel Melo disse...

Boa posta, João Miguel, também me parece que seria bom sabermos mais sobre o soldado Manning, independentemente do valor per se do que está sendo divulgado.

Só tenho um reparo: a divulgação da informação diplomática não faz sentido que seja no imediato, pois então essas mensagens não poderiam servir para analisar questões delicadas sob pena de revelar aos inimigos (em caso disso) segredos, detalhes estratégicos ou trunfos negociais da outra parte.
O que se poderia reclamar era tornar menos dilatados os prazos para o acesso a essa informação, pois hoje já se tem acesso à maioria da informação passadas umas dezenas de anos da data do documento (os prazos variam de país para país... democrático).

João Miguel Almeida disse...

Caro Daniel,

Só um reparo ao teu reparo: a informação diplomática tem vários níveis de confidencialidade. É claro que informação relativa a operações militares em curso da qual dependem vidas humanas - ou negociações directas com o inimigo que visam construir alternativas à guerra - têm de ser confidenciais até ao conflito estar terminado.
Eu defendo que os relatórios diplomáticos correntes deviam ser públicos. Ou seja, os relatórios de análise da conjuntura económica, social e política.
Actualmente ando a ler alguns desses relatórios diplomáticos acerca da I República. Há muitos que não são mais do que resumos dos relatos da imprensa com as notícias anexadas. Num caso ou outro é citada uma conversa «off the record», mas é raro.
O que eu acho que podia ser público eram as análises resumidas e as opiniões dos diplomatas. Assim ficava claro qual era a percepção que os serviços diplomáticos tinham de determinado Estado e evitavam-se «lendas negras» ou contestavam-se determinadas visões e agentes diplomáticos. Às vezes o problema é o segredo. Outras vezes o problema são as teorias de conspiração alimentadas pelo segredo.

Daniel Melo disse...

Caro João Miguel,

sim, há vários níveis de confidencialidade e tu até já tinhas salvaguadado a "informação relacionada com operações militares".

Ainda assim, só um reparo ao teu reparo ao meu reparo (não podia perder este enlace!):
não vejo qual seria o interesse de se revelar no imediato (repito: no imediato) esses relatórios que tu referes como relatórios diplomáticos de conjuntura. Agora, talvez fosse útil que fossem divulgados passado algum tempo. Até para corrigir excessos e conspiracionismos.

Esse é um debate importante que está por fazer. E até acho bem oportuno que dês exemplos do ofício de historiador, pois ajuda a mostrar como este debate pode ter influência na própria possibilidade de termos mais reflexão crítica mais próxima dos acontecimentos.