segunda-feira, 30 de abril de 2007

Anedota (chegada via email)


Donald Rumsfeld briefed the President this morning. He told Bush that 3 Brazilian soldiers were killed in Iraq.
To everyone's amazement, the entire colour ran from Bush's face. Then he Collapsed onto his desk, head in hands, visibly shaken.
Finally, he composed himself and asked Rumsfeld, "Just exactly how many is a brazillion"?

Só pode ser coincidência...(II)

Na semana antes das eleições são estas as capas de dois dos principais periódicos franceses, cuja "publicidade" está afixada pelo país todo. A foto é quase a mesma, a pergunta é quase a mesma, a mensagem é exactamente a mesma.


Nota: Para mais coincidências leia-se o comentário do "bacalhau sardinha assada" ali em baixo.

domingo, 29 de abril de 2007

Portugal: país triste e alegre

Soube pela internet qua a PSP carregou com violência sobre pessoas que tinham integrado uma manifestaçao anti-autoritária, no dia 25 de Abril. Como estou na Galiza, procurei informaçao em diversos blogues e nas páginas on-line dos jornais portugueses. Pelo que li, fiquei com a convicçao de que houve, de facto, violência gratuita da parte da polícia. Nada justifica tratar-se à bastonada, pessoas (mesmo se estivessem a pichar paredes ou a partir montras). Perante actos ilegais, o que agentes policiais civilizados deviam fazer era identificar os prevaricadores e, caso fosse necessário, detê-los para averiguaçoes; nunca desatar à bastonada. Também fiquei a saber que a PSP se preocupou em proteger o cartaz do PNR na Praça do Marquês de Pombal e a sede deste partido de extrema-direita na Rua da Prata de actos de vandalismo! Nunca um cartaz e uma sede partidária tiveram direito a tamanhos desvelos. Um tal excesso de zelo parece-me muito suspeito.
Sao notícias tristes as que me chegam de Portugal. Tenho, porém, a alegria de verificar que há muita gente a questionar os métodos policiais e a sua agenda obscura. Muitos blogues foram, também neste caso, espaços plurais de crítica, reflexao, e denúncia das arbitrariedades e da brutalidade da polícia, indesculpáveis em democracia. Obrigada a todos os que se mantêm atentos. Obrigada por continuarem a nomear e a escrever a palavra liberdade.
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As ligaçoes nao sao exaustivas.
Peço desculpa pela falta de tiles. Estou a escrever num teclado galego.


L'imagination au pouvoir


sexta-feira, 27 de abril de 2007

Desacatos

To me, the most haunting, prophetic cry of the nineteenth century is Theophile Gaultier's 'plutôt la barbarie que l'ennui!' If we come to understand the sources of that perverse longing, of that itch for chaos, we will be nearer an understanding of our own state, and of the relations of our condition to the accusing ideal of the past.
George Steiner, In Bluebeard's Castle (1971)

Prioridades II

« (...) both France and the United States are rich countries. The United States grew more rapidly than France in the 1990s after four decades in which the opposite was true. GDP per head in the USA is about 20 per cent higher than in France, but French working hours are 20 per cent shorter than in the USA, so that hourly output is much the same in the two countries. From a statistical perspective, the difference between the two countries is that the French take lunch, and five weeks' holiday».

John Kay, The Truth About Markets, p.328-9

Ainda o 25 de Abril (?)

As inovações podem ser más, mas as continuidades são piores. Quem viu a «manifestação pacífica» de aspirantes a terroristas devidamente encapuçados a gritar «desmascarar a democracia», muito animados contra «o capitalismo e o fascismo» enquanto se encaminhavam numa manifestação ilegal (não autorizada e com vandalismo associado) para a sede de um partido com o intuito expresso de a atacar (na linha da repetida destruição da propaganda política regular), não pode deixar de notar as similitudes (identidade) de termos, meios e objectivos políticos com a «extrema-direita» associada a claques de futebol, concertos clandestinos, posse ilegal de armas, etc. Embora, de facto, haja discriminação: até ver, ninguém se interessou por investigar quem organizou aquilo, nem como é que a «provocação» e a «violência policial» resultaram em 7 feridos dos quais 5 são polícias, nem por que motivo a juíza colocou «os jovens» sob termo de identidade e residência, tal como os responsáveis pela destruição do cartaz do PNR não interessam a ninguém.
Felizmente, por Portugal ser uma democracia «meramente formal», do «centrão», não podem tratar uns dos outros como desejavam - nem dos imigrantes, nem de nós. E nem toda a informação é como a peça que o Público hoje apresenta, nem mais nem menos anedótica que o editorial ou a diatribe de Pulido Valente. Compare-se com a notícia sobre o caso no DN e veja-se a diferença.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Ainda o 25 de Abril

Portugal padece da mania da inovação febril e avulsa, como tão bem provou Cavaco Silva no seu discurso na Assembleia e, geralmente, entre nós, inovar não significa mais que destruir, desfear e esquecer.

Só pode ser coincidência...

O dia de hoje (quinta) tem sido uma sequência de acontecimentos "bizarros" a propósito do debate entre Ségolène Royal e François Bayrou. Royal, num acto que me parece de grande inteligência e democraticidade, propôs um debate público com Bayrou. Um debate para discutir o posicionamento do terceiro candidato mais votado na primeira volta. Esse debate pode servir para establecer pontes entre os dois, eventualmente um apoio de Bayrou, com o mérito de ser feito de forma aberta e transparente, e não nas costas dos eleitores. Há acordo entre Bayrou e Royal para o debate, e aí começam as coisas esquisitas. Primeiro Royal propôs um encontro sexta-feira, por ocasião de um forum com a imprensa regional, Bayrou aceitou, é o sindicato da imprensa regional que recusa o debate. Ségolène Royal e Bayrou chegam novamente a acordo para um debate na televisão, sábado no Canal +, mas é a direcção do Canal + quem anula o debate, por indicação do Conselho Superior do Audiovisual. Estranha esta situação em que os intervenientes estão de acordo para que se faça o debate e são os media quem impede que ele se realize. Obviamente que é a Sarkozy que este debate não interessa nada. Não é de agora que Sarkozy tem uma grande inluência nos media, e do lado dos socialistas já surgiram acusações de pressões sobre os media para que não haja debate Royal - Bayrou. Se isso é verdade é um tiro no pé (digo eu...), ou então estariamos numa situação muito grave para uma democracia se o debate acabasse por não se realizar.

Adenda: O Conselho Superior do Audiovisual negou ter dado qualquer indicação ao Canal + para que o debate não se realizasse, a inteira responsabilidade é do próprio Canal +. Entretanto há de novo acordo entre Bayrou e Royal, e um outro canal de televisão para um debate sábado à tarde, vamos a ver se se mantém...

O que é o mérito?



Num universo onde as realizações académicas se medem em número de cadeiras avançadas de física quântica que se frequentaram no liceu, Marilee Jones, a coordenadora (dean) de admissões ao prestigiado MIT, tentou, ao longo da sua carreira, convencer os administradores, pais e alunos que um résumé se constrói, também, com paixões e realizações pessoais.

Para muitos dos que orbitam em torno destas escolas de elite, as realizações pessoal e académica fudem-se numa só. Há pouco espaço para o resto. A procura do mérito, sempre o mérito, não o permite. Ou não o permitia. Hoje, sabemos que as coisas não funcionam assim. Muito por culpa de Marilee Jones. Mas Marilee Jones já não é a coordenadora do processo de admissões ao MIT. Não o é, porque se demitiu hoje. E demitiu-se, porque durante 28 anos mentiu sobre as suas realizações académicas.

[Mais aqui.]

Política de "esquerda" ou política de "defesa de um interesse geracional"?

Luta de classes ou luta de gerações? Um debate importante a acompanhar aqui. Depois voltarei a isto em post.

Um bocadinho...

de terrorismo...

Rire jaune

O ex-ministro do Interior, ex-ministro da Economia e das Finanças, o presidente do partido que reúne a maioria na Assembleia Nacional, o qual é apoiado por quase todos os ministros do governo Villepin (menos individualidades com pouco peso como o Azouz Begag), consegue obter 30% dos votos. 30% dos eleitores acham que um dos principais actores políticos dos 5 últimos anos vai conseguir resolver os problemas que a direita não conseguiu resolver até agora, tendo Chirac sido eleito com mais de 80% e os governos tendo usufruído de uma maioria absoluta na Assembleia e no Senado. Ora, em 5 anos, Chirac e Sarkozy não conseguiram lograr sucessos na agenda da direita (seja ela má ou boa, isso não é o problema aqui). A insegurança (tema principal de 2002) não desapareceu. Isso não aparece mais porque há várias manipulações dos dados policiais e que, de forma pouco misteriosa, a insegurança quase não aparece nas televisões como a TF1. O problema do endividamento não foi resolvido. A dívida aumentou. O “buraco” da Sécu não desapareceu também. O deficit continua (com a agravante de se instalar uma protecção médica pública a duas – ou mais - velocidades). Os impostos (grande promessa de Chirac e da direita em geral) não baixaram (no conjunto – impostos directos e indirectos). O desemprego também não baixou de forma substancial e aqui também há problemas de manipulações de dados. O problema das pensões também não foi resolvido. E o crescimento económico sempre é baixo, mais baixo que a maioria dos outros países ocidentais. Apesar de todos esses insucessos (tendo como ponto de partida a agenda de direita) o Sarkozy consegue ter 30% dos votos. Bravo!

PS : Para vencer o Sarkozy, parece-me que não é suficiente fazer uma crítica da sua personalidade. É preciso impor na campanha um programa de esquerda coerente e recordar o fracasso da direita de Sarkozy, político que muito se mexe mas pouco faz (com sucesso).

Três indicadores positivos

1. Depois das sondagens de domingo relativas aos resultados da segunda volta darem a entender que Sarkozy detinha uma vantagem apreciável (o score variava entre os 54% e os 56%), uma sondagem mais recente aponta para a diferença mínima 51%-49%. Credível ou não, valha-nos pelo menos o seu valor performativo, dado que permite à campanha de Ségolène ganhar mais confiança face um cenário, para já, e segundo estes valores, ainda bastante em aberto.

2. Sarkozy recusou um debate público com Bayrou. É difícil perceber exactamente o que explica esta recusa, mas é possível que Sarkozy temesse que ficassem à vista de todos diferenças entre os dois candidatos, e é provável que existam indicações credíveis de que Bayrou não lhe estenderia a passadeira vermelha. Na TV, isso poderia ser letal. Para mais, a justificação de Sarkozy para a recusa é torcida:

"Dans une compétition de football, il y a une finale entre le numéro un et le numéro deux" et "le numéro trois, il fait autre chose, mais il n'est pas dans la finale", a-t-il expliqué. "Dans l'urne, il n'y aura pas de bulletin de M. Bayrou", a tenu a rappeler M. Sarkozy.

Sarkozy esquece-se que o senhor que não vai estar no boletim de voto pode decidir a eleição.

Entretanto, Bayrou já aceitou encontrar-se nesta sexta-feira com Ségolène, e pretende que o encontro seja transmitido na televisão.

3. Sarkozy e outras personalidades do UMP já vieram criticar Bayrou por não ter dado indicação de voto. Isto pode querer dizer que Sarkozy e os seus temem - eventualmente apoiados em sondagens a que só eles terão acesso - que, sem indicação explícita de Bayrou para o apoio ao candidato da UMP, os votantes no candidato centrista virem à esquerda.

Contra uma política reactiva

«Portanto mantêm-se os politécnicos abertos mesmo que não haja alunos? (e dado que se vê que a sua existência não é suficiente para os manter nas cidades do interior)É isso o desenvolvimento? Perverso é o critério que as instituições não mudam, o que quer que aconteça aos seus públicos. Como se elas não os estivessem lá para os servir».

A propósito desta citação feita pelo Hugo num comentário a este post, gostaria de fazer algumas considerações.
A afirmação em causa participa de uma concepção de desenvolvimento que não partilho. Pelo contrário, entendo que a política não deve ser meramente reactiva às tendências sócio-económicas e demográficas que ocorrem em certos territórios. Um dos poucos factores de dinamismo que o Interior conheceu nestas últimas duas décadas foram protagonizados pelas cidades médias e, principalmente, pelas que detinham instituições de ensino superior. O impacto que estas tiveram foi extraordinário e, em parte, foi devido ao seu papel que certas zonas urbanas cresceram de forma relevante. Avaliar a importância destas instituições a partir da inversão negativa de uma mera taxa de frequência é um erro político gravíssimo. Em Lisboa, e nos maiores centros urbanos do litoral, o encerramento de uma ou de outra instituição de ensino superior não representaria uma mossa assinalável, mas o encerramento do único instituto ou universidade situado numa cidade ou em toda uma região terá, sem dúvida, consequências muito profundas.
Mais do que reactiva a acção política deverá ser capaz, ou pelo menos, tentar inverter algumas tendências e não contribuir para o seu reforço. Isso requer algum investimento por parte do Estado? Claro que sim! Mas haverá alguma política de desenvolvimento digna desse nome que não contemple algum investimento? Ou então assuma-se que o Interior não é uma prioridade política e encerre-se de vez a metade oriental do país. Sairia muito mais barato!
Portugal tem um grave problema de desordenamento do território que advém, em larga medida, da excessiva concentração populacional e urbanística localizada nas duas maiores Áreas Metropolitanas. A única forma de reequilibrar um pouco a estrutura urbana passará principalmente pela aposta nas cidades médias. Estas deverão ser capazes de gerar nichos e centros de excelência (clusters) suficientemente dinâmicos para atrair capital humano e social. Objectivo que só poderá ser conseguido por intermédio de instituições de ensino superior consolidadas e inovadoras. Portanto, em vez de se anunciar a irreversível morte destas escolas, o que se deveria fazer era anunciar políticas que contribuíssem para a sua reformulação e reinvenção!

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Uma fotografia do 25 de Abril

Primeiro as árvores cobriram-se de folhas
depois de pássaros e depois
de homens

Jorge Sousa Braga, Porto de abrigo, 2005.

Revolución de los Claveles

Com um abraço especial aos camaradas Daniel e Cláudia que andam por terras galegas.

Tempo de Fantasmas

Apaixonado por Nora Mitrani, O'Neill pretendia juntar-se-lhe em Paris. Um familiar resolveu denunciar essa intenção à PIDE. Foi-lhe negado sair do país e passou a ser vigiado. Dois anos mais tarde esteve preso em Caxias, apenas por ter ido esperar Maria Lamas que regressava de Viena. Apesar de ter feito oposição à ditadura, nunca foi militante de qualquer partido político, nem mesmo a seguir ao 25 de Abril. Era um independente. Ninguém, melhor do que ele, descreveu o nosso país sob a ditadura.

Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Alexandre O'Neill

Poema publicado em 1951 no livro Tempo de Fantasmas.

Carnations



Em Outubro de 2004, no casamento de um casal amigo, e seguindo a tradição norte-americana de se apresentar um questionário aos convidados, perguntava-se, entre outras coisas, algo do género: Which country is known for its Carnation Revolution?. Tradição norte-americana, talvez seja exagerado. Mas, pelo menos, seguindo a tradição de uma família católica de Buffalo, Nova Iorque, cidade que no Inverno fica soterrada em neve durante três meses, o que diz muito sobre o tipo de tradições que se instituem.

Só o Nuno Gomes é que não marca golos em contra-ataque

Karl Rove, o arquitecto político da mais desastrosa administração norte-americana, está sob investigação federal. A notícia alegrou as hostes liberais. Pouco tempo depois, a Fox News - who else? - avançou que o investigador que está a investigar as acções de Karl Rove está, ele próprio, sob investigação federal.

E Depois do Adeus

O dia de todos os dias

Para comemorar e recordar passem por aqui.

terça-feira, 24 de abril de 2007

A revolução é pra já!


Debates do MD


Qualificação e desenvolvimento

Respondendo ao desafio do Hugo, considero, aliás como já disse noutra ocasião, que o desemprego qualificado não pode ser analisado dissociado do deficit de qualificações existente em Portugal. Tirar um curso superior é importante para o próprio e para o aumento da taxa de licenciados do país. Mas, por si, o aumento do número de licenciados pode não ter o impacto esperado se não se equacionar o binómio formação-actividade profissional. Não quero com isto dizer que o objectivo primordial de conseguir um diploma seja o acesso ao mercado de trabalho. Mas, convenhamos, é um aspecto decisivo!
Por este motivo, e tendo por base a experiência que adquiri ao nível da formação no ensino superior e na formação profissional, entendo que todos os cursos deveriam obrigatoriamente ter uma componente de estágio profissionalizante em organizações portuguesas ou no estrangeiro, independentemente do aluno vir a escolher a via de investigação. É muito importante o contacto com a realidade profissional. Esta via seria um meio adequado de promover as ligações (que são imprescindíveis) entre as universidades e as empresas e outras instituições públicas. Deveria valorizar-se os melhores alunos de modo a possibilitar uma continuidade profissional na organização onde desenvolveram o estágio. E, neste âmbito, o Estado teria um papel central na definição dos protocolos com as empresas.
É importante que estas últimas em conjunto com as instituições de ensino se impliquem na garantia das oportunidades profissionais dos seus formandos. Neste sentido, convinha que se incentivasse a mobilização de sinergias fundamentalmente a nível regional. Durante os anos que leccionei no Instituto Politécnico de Beja, uma das coisas que mais me preocupava era o facto de a maior parte dos alunos não vislumbrar qualquer futuro na sua região. Nesta questão é particularmente relevante o papel das cidades universitárias. Em, grande medida, esse estatuto deveria advir não só do facto de estas deterem estabelecimentos de ensino superior, mas, principalmente, por conseguirem gerar nichos de excelência a partir do envolvimento com uma série de agentes locais (públicos e privados).
Volto a frisar mais uma vez: são necessárias políticas integradoras que articulem diferentes sectores (educação, investigação, formação profissional, empresas, instituições públicas, cidades, desenvolvimento regional, etc.), que impeçam com que a qualificação caia em saco roto.

E se ganhar Sarkozy?...

Começaram os gestos de cortesia de Sarkozy e Ségolène para com Bayrou, que pensa já nos trunfos que pode garantir nas eleições legislativas. Se contar o passado histórico das formações políticas e o seu "interesse partidário", é provável que Bayrou apoie Sarkozy; se contar o seu sentido de dedicação à causa pública, Bayrou devia apoiar Ségolène. Tudo porque é altamente duvidoso que Sarkozy consiga fazer alguma mudança de fundo num país como a França. Não é a questão da "liberalização" que ele promete ou deseja - mais ou menos explicitamente - ser "boa" ou "má". Nesta altura do campeonato, com a "balkanização" dos estatutos profissionais, dos contratos laborais, das regulações dos diversos mercados, uma liberalização bem feita, de acordo com critérios transparentes, não traria grandes males. A questão não é tanto essa. O problema é que reformar um país como a França não é como reformar, por exemplo, o Reino Unido, como fez Thatcher há quase 30 anos. O nível de potencial conflitualidade social, o poder de veto de diferentes parceiros sociais e o grau de stickiness das instituições é tal que só uma abordagem negociada é que permitiria fazer reformas bem feitas. É improvável que Sarkozy consiga ter capacidade negocial para enfrentar as resistências previstas, e é improvável que os "resistentes" queiram negociar com Sarkozy. Prepara-se para ficar tudo na mais ou menos na mesma, sujeito à lógica do sinuoso muddling through, não apenas por mais 5, mas eventualmente por mais 10 anos, dado que, tradicionalmente, quem cumpre o primeiro mandato, acaba por estar em vantagem para ser reeleito (vide Mitterrand e Chirac).
A única coisa positiva seria talvez o impacto no PSF de mais uma travessia do deserto; talvez o partido fosse capaz de se refundar, iniciar um debate político com os seus congéneres europeus, pensar do início alguns princípios - como levar a sério o princípio da redistribuição e da defesa dos mais fracos e preocupar-se menos com a classe média-alta, esse tal grupo de "explorados" que está entre os 25% mais ricos e que vê qualquer medida que mexa nos seus bolsos como um ataque "neoliberal". O PSF gosta de se ver na vanguarda, mas na verdade muitos dos princípios que defende, mais ou menos implicitamente estatistas, já deviam ter dado lugar a uma estratégia social-democrata - nos países nórdicos que os socialistas franceses gostam de elogiar (mas sem grande convicção: é sempre numa lógica de dizer que o modelo americano não é "único") isso já aconteceu há mais de meio século. A lógica não devia ser "resistir" ao capitalismo (através do Estado: o que leva a proteger uns e deixar os outros de fora, precisamente os mesmos que pagam a protecção dos primeiros...), mas melhor compreendê-lo para o melhor "instrumentalizar", com o objectivo de cumprir os objectivos de crescer economicamente e reduzir as desigualdades. É que, hoje, a França não está a fazer nem uma coisa nem outra.

Outra coisa que eu gostava de ter escrito

Vital Moreira no "Público", a ler com muita atenção:

«(...) Seja como for em tese geral, no caso dos sindicatos de professores, a invocação da defesa da escola pública para justificar e legitimar a sua luta contra as medidas na área do ensino não poderá ser mais contraditória. De facto, toda a resistência sindical tem tido por único e exclusivo fim a defesa das posições profissionais adquiridas, mesmo quando elas conflituam de modo flagrante com a qualidade e a eficiência do sistema escolar. A oposição ao alargamento do horário escolar, às medidas contra o absentismo, às aulas de substituição, à contratação plurianual dos professores, ao encerramento de numerosas escolas com poucos alunos sem as mínimas condições para um ensino de qualidade, etc., essa oposição pode ter toda a justificação em termos de defesa dos "direitos adquiridos", mas não encaixa minimamente com nenhuma ideia de defesa da escola pública.
O mesmo se passa com a rejeição do novo estatuto da carreira docente, que institui dois escalões e estabelece requisitos exigentes de acesso ao escalão superior. Para quem goza da regalia de uma carreira plana, sem provas intermédias e com possibilidade de quase toda a gente atingir o topo da carreira, a mudança para o novo sistema é seguramente uma importante perda. Porém, independentemente da sua configuração prática, o novo conceito é inatacável sob o ponto de vista da melhoria da qualidade do ensino, da remuneração pelo desempenho, da eficiência da escola. Por isso, nesta circunstância, não existe nenhuma coincidência entre interesses profissionais e o interesse do serviço público.
Pelo contrário, como é evidente. As referidas medidas é que podem parar e reverter o caminho de degradação e de abandono da escola pública em favor da escola privada, com prejuízo para as famílias (que tem de pagar as propinas) e para o papel de socialização interclassista e de inclusão e de coesão social que somente a escola pública pode desempenhar. Ao invés das proclamações sindicais, verifica-se um conflito entre a defesa da escola pública e os interesses sindicais.
Existe uma posição de esquerda romântica, segundo a qual, havendo uma convergências histórica entre a esquerda e as lutas sindicais, um Governo de esquerda deve encarar com benevolência e mesmo com complacência as reivindicações sindicais. Numa versão mais radical, vai-se mesmo ao ponto de ver na contestação sindical uma prova incontornável da natureza direitista e neoliberal das políticas impugnadas. Trata-se, porém, de um sofisma político, não somente porque a defesa de interesses sectoriais (sobretudo quando relativamente privilegiados) pode não coincidir com o interesse geral, mas também porque numa paisagem sindical politicamente segmentada e com manifestas articulações partidárias (a propósito, quando é que se retira do princípio constitucional da independência partidária dos sindicatos a incompatibilidade do exercício simultâneo de cargos sindicais e de cargos partidários?), nenhuma razão existe para não distinguir nas lutas sindicais aquilo que são as reivindicações sindicalmente sustentáveis e aquilo que constitui aproveitamento partidário da via sindical. Não é por ser desencadeada pelos sindicatos e não pelos partidos da oposição que a contestação política se torna mais justificável, independentemente dos seus motivos e objectivos. Um Governo de esquerda não pode seguramente contestar o direito de acção sindical, nem o direito à negociação e à participação. Tampouco pode deixar de considerar seriamente os pontos de vista sindicais, quando fundamentados. Porém, como organizações de defesa de interesses profissionais sectoriais, os sindicatos não dispõem de nenhum direito de veto. Para além deles há outros "grupos de interesse" mais vastos, que não têm sindicato que os represente, nomeadamente os utentes dos serviços públicos, que estão interessados em que eles cumpram a sua missão, e os contribuintes, que querem que os dinheiros públicos sejam utilizados de maneira profícua e eficiente. Por conseguinte, a nova guerra da Fenprof é para perder. No conflito entre os interesses profissionais e os interesses da escola pública, o Estado só pode atender aos primeiros sem sacrificar os segundos.»

Só mais um brilhante contributo

Nuno Pacheco hoje no "Público":
"Além do que já foi dito e redito sobre a mísera ideia de que há horríveis profissões inferiores e temos que ser salvos delas para abraçar as superiores que a glória universitária nos dá, existe nesta campanha outra intenção. Tipo: frequentar universidades é dar o pão a uns largos milhares de portugueses. Porque, coitadas, têm cada vez menos clientela. Só entre 1997 e 2005, as universidades portuguesas terão perdido 15 mil alunos. Terão perdido também outras coisas, como algum orgulho, eficácia, seriedade e até vergonha, mas disso a propaganda não reza. É preciso que a universidade, mesmo má, resista! Daí a tal campanha, género "tirem um diplomazinho, pelo amor de Deus". O problema é que muitos milhares tiraram o tal diplomazinho e andam por aí a fazer coisas que nada têm a ver com a almejada profissão: vender bugigangas, pizzas ao domicílio, uma temporada num call-center, outra num bar ou restaurante. Licenciados, todos eles, cumpridores da regra "sem-diploma-não-és-ninguém", todos a tentarem ser alguém apesar do diploma. Seria assim o cartaz: Asdrúbal, licenciado, vendedor de quinquilharia, a fazer o mesmo que faria se não tivesse acabado os estudos."
Mais um brilhante contributo para a discussão pública de um dos membros da actual direcção desse jornal sério que é "Público". Um dos problemas do país é ter falta de pessoas qualificadas. Muito jornalismo, aparentemente, sofre também desse síndroma. Caso contrário, seriam ditas menos asneiras, daquelas que podem ser desfeitas num par de minutos olhando para algumas estatísticas. Mas confesso que começo a ficar habituado à incríveis semelhanças de nível intelectual entre as opiniões dos membros da direcção do Público e as conversa de "taxista". São estes que passam a vida a acusar os outros - o "Governo", os "portugueses", o "país", etc. - de incompetência, preguiça, mediocridade e outros pecados com muitos séculos, não é?

Blogofrase da semana

Desde que passe tempo suficiente, todos os blogues acabarão inevitavelmente por entrar em polémicas com todos os outros.

por David Luz, no Linha-dos-Nodos

segunda-feira, 23 de abril de 2007

A receita para a vitória:

(comecei a manhã pessimista, depois fui-me animando ao longo do dia por razões totalmente apolíticas e agora já entrei no mais puro delírio. Isto passa, tudo passa.)

1- Começar por encostar Sarkozy à campanha da primeira volta e às suas diversas incursões no terreno lepenista. Desmontar a aproximação que ele vai fazer ao centro. Não mudar de rumo. Perguntar: "qual é o verdadeiro Sarkozy, o da primeira ou o da segunda volta, o que pisca o olho a Le Pen ou a Bayrou?". Quando ele começar a estrebuchar, não largar. Surfar a onda anti-sarkozysta, demarcando-se dos desmandos que houver. Ter muito cuidado com a vitimização, que ele deve ser bom nisso ou deve ter amigos bons nisso.

2-Seduzir devidamente, com distância tranquila, todo o eleitorado de Bayrou. Dizer que Bayrou é um homem sério, muito republicano, e que o que ele disse na campanha é para levar a sério. Por isso, votar agora em Sarkozy, que tem um pé na cultura republicana e outro fora, é negar todo o espírito da campanha anterior. Votar em Sarkozy depois de ter votado Bayrou é voltar ao passado.

3-Juntar muita paciência, manter a determinação da primeira volta e está pronto a servir.

Por outro lado...

...a grelha de análise esquerda-direita que o meu post dali de baixo transporta é bastante antiquada. A diferença entre esquerda-direita já não é um muro (e há quem pense que em França a diferença esquerda-direita explica muitas vezes mal as diferenças políticas, muito atravessadas pela questão do jacobinismo). Há um voto volátil, o Bayrou por exemplo é um político-http/ptbv (protocolo de transferência de boletins de votos). E portanto tudo pode acontecer. O que nos lixa é que o Sarkozy é um hacker filha da mãe.

Já agora: Vital Moreira diz que a campanha de Ségolène Royal foi pouco convincente. Não concordo. Apesar de a ter achado errática nalgumas propostas, sobretudo ao início (e de não concordar com várias delas), Ségolène conseguiu arrancar na parte final da campanha, centrando-se nas propostas centrais do seu "pacto presidencial", subindo bem acima do que previam as sondagens no início da campanha. Ségolène tem um estilo mediático que pode não agradar a muitos à esquerda — mas é difícil ver qual seria o outro candidato da área socialista a conseguir chegar ao resultado que ela atingiu. E o estilo, pelos vistos, não afastou os votos da extrema-esquerda e dos comunistas, logo à primeira volta.

Sei que não é o caso de Vital Moreira, mas é bom lembrar que com Ségolène há uma exigência que não existe com outros candidatos. Sarkozy, por exemplo, está livre da acusação de pouco convincente. Mas trata-se duma "convincência", convenhamos, um tanto xenófoba e um tanto hipócrita.

Allez Ségolène, allez.

Leituras

«É o mesmo com os livros. Que buscamos em milhões de páginas? Continuamos esperançosamente a voltar as páginas.»
Virginia Woolf - O quarto de Jacob

Imagem: Vanessa Bell - Interior with the artist's daughter, c. 1935.

Escolhe o teu esquerdista preferido - O epílogo

No concurso "Escolhe o teu esquerdista preferido", evento paralelo às eleições presidenciais francesas a coisa não correu muito bem aos candidatos.

Olivier Besancenot (Ligue Communiste Révolutionnaire) 4,11%
Marie-George Buffet (Parti Communiste Français) 1,94%
Dominique Voynet (Les Verts) 1,57%
Arlette Laguiller (Lutte Ouvrière) 1,34%
José Bové (Altermundialista) 1,32%
Gérard Schivardi (Parti des Travailleurs) 0,34%

A haver um vencedor terá que ser Olivier Besancenot, que voltou a apresentar-se, e foi o único que manteve os mesmos níveis de votação (o rapaz, carteiro de profissão, faz-me mesmo lembrar o Francisco Louçã dos tempos do PSR, mas em mais descontraido). Todos os outros pioraram a sua votação, ou do candidato do mesmo partido, de 2002. José Bové não é "herdeiro" de nenhuma das candidaturas de 2002, mas também não se saiu nada bem.

Em 2002 as votações tinham sido:
Olivier Besancenot (Ligue Communiste Révolutionnaire) 4,25%
Robert Hue (Parti communiste français) 3,37%
Noël Mamère (Les Verts) 5,25%
Arlette Laguiller (Lutte Ouvrière) 5,72%
Daniel Gluckstein (Parti des travailleurs) 0,47%

José Bové foi o único que na noite eleitoral se referiu ao falhanço de uma candidatura unitária à esquerda nestas eleições, e de como estes resultados foram uma derrota de todos. Num momento de extrema lucidez apelidou as votações obtidas pelos candidatos à esquerda do PSF de "desperdício eleitoral" (gâchis électoral). Efectivamente acabaram todos sem honra nem glória (excepto Besancenot) a assumir as suas derrotas e a queixar-se do voto útil, e todos (incluindo Besancenot) a apelar ao voto em Ségolène Royal sem qualquer margem de manobra para reivindicações, sem quaisquer hipóteses de poderem ser parte de um projecto com reais possibilidades de ganhar as eleições.

Embora seja um mero exercício teórico, porventura fútil, é interessante imaginar qual teria sido o cenário eleitoral ontem com uma candidatura de convergência à esquerda dos socialistas. Provavelmente o voto útil não teria funcionado tanto em favor de Royal como funcionou, o eventual candidato dessa esquerda estaria agora a ser tão assediado como o está a ser o centrista François Bayrou. Não é seguro, pelo contrário, que esse fosse um cenário favorável a Ségolène Royal. Ironicamente a fragmentação da esquerda que foi a causa do desastre para Lionel Jospin há cinco anos, talvez dê uma grande ajuda a Ségolène Royal desta vez.

Mais notas sobre as eleições francesas

A noite eleitoral começou ontem, para mim, com tons de franco optimismo, para acabar em tons de semi-depressão. Diz ali o Hugo que desta vez não houve grandes surpresas. Talvez seja verdade, se o termo de comparação forem as sondagens (a bulimia das sondagens, que quanto mais tentam tornar previsível o voto, de certa maneira mais o tornam incompreensível). Mas não deixa de ser surpreendente que, somados os votos da esquerda "clássica" (do PS para a esquerda), estes atinjam apenas cerca de 36% do total, talvez o pior resultado de sempre. E isto depois de 5 anos na oposição, de 5 anos de governo Chirac-Sarkozy, de 12 anos de presidência Chirac... Bem sei que houve muita gente de esquerda que votou em Bayrou, mas mesmo assim...

A meio da noite eleitoral (ver a France 2 foi também deprimente, com uma total ausência de informação sobre os resultados reais e uma total ausência de convidados que fizessem análise política em vez de campanha) já era claro que o maior vencedor da primeira volta seria Sarkozy. A estratégia de ir buscar votos à extrema direita resultou em pleno (quase um milhão de votos a menos para Le Pen). E é-lhe agora mais fácil virar ao centro, onde está uma clientela clássica dos gaullistas, e seduzi-lo. É preciso no entanto ver o que faz Bayrou, porque teve muito, muito voto e porque se o que ele disse na campanha sobre Sarkozy é para valer, será pouca a margem para um apoio explícito. Mas, em qualquer caso, a tarefa de Ségolène para ganhar vai ser hercúlea, vai ser peneloponaica (fazer à esquerda e desfazer ao centro e vice-versa...). Desse ponto de vista, caro Hugo, a quadratura do círculo não tem nada a ver com os sindicatos e os comunistas. É saber como ganhar, muito simplesmente.

Propostas aceitam-se

Para mostrar que não me é indiferente a questão do desemprego dos licenciados, estou disposto a encetar uma discussão mais a sério sobre ela. Na semana passada houve muito barulho sobre este ponto, mas ninguém forneceu medidas para a resolver...
A caixa de comentários aqui em baixo está aberta a quem quiser oferecer medidas para que resolver o problema da mão-de-obra qualificada (ali deve ler-se: medidas credíveis e exequíveis. Mas isso depois fica para a discussão). Se o problema é tão grande e preocupação das pessoas enorme, então a vontade de o resolver deve ser bem intensa, e a imaginação colocada em prática mais vasta ainda.

domingo, 22 de abril de 2007

Notas sobre as eleições francesas

A primeira volta das eleições francesas não trouxe, felizmente, grandes supresas. À distância, alguns comentários:

1. A França deu uma verdadeira lição de participação democrática. Os números dos que foram votar (à volta dos 85%) são impressionantes.

2. Le Pen foi derrotado. Convincentemente derrotado. Este não pode deixar de ser um dos elementos mais positivos deste escrutínio.

3. Ségolène centrou o seu discurso em torno da ideia de "confiança". Se ganhar as eleições, os franceses bem vão precisar de confiança se quiserem fazer reformas que confiram coerência ao regime e as instituições de política económica. O problema em muitas áreas do funcionamento da economia francesa não é facto de ser excessivamente rígida, mas de ser incoerente, e de as complementaridades instituicionais de que depende um bom desempenho macroeconómico funcionarem mal. Perante esta incoerência que é resultado da multiplicação de corporativismos tanto no sector público como no sector privado, há duas saídas. Uma, a da liberalização. Essa será a saída de Sarkozy, mas é improvável que ele consiga liberalizar coerentemente a economia perante a constante ameaça de conflitualidade social. A outra é a da coordenação das instituições, em particular as que sustêm o funcionamento do mercado de trabalho. O PS e Ségolène estarão, em teoria, em melhor posição para negociar com os sindicatos uma reforma do mercado de trabalho que acabe com a multiplicação irracional de contratos laborais que alimentam a dualização - e obviamente, o aumento das desigualdades - entre os insiders e os outsiders. Isto não é a mesma coisa que acabar com a precaridade, como erradamente Ségolène disse ("mettre fin aux insécurités et aux précarités"). A segurança do sector público de antigamente vai, tem de acabar, e não vale a pena medir a segurança laboral futura a partir dessa referência. O que deve ser feito é o que a esquerda historicamente sempre procurou fazer: redistribuir os riscos no mercado de trabalho, neste caso criando protecções inteligentes para o sector exportador, que é o que alimenta qualquer economia globalizada (e em particular o sector público, convém não esquecer) e que é o que mais sofre(rá) de incerteza crónica. Era muito importante que os sindicatos do sector público percebessem isto e fossem capazes de redistribuir os riscos entre o público e o privado, coordenando as suas políticas de aumento dos salários com um eventual Governo socialista e auxiliando este na criação de emprego e crescimento macroeconómico - de forma a provar que a liberalização, mais ou menos brutal, não é a única saída. Reformar o sistema de relações laborais e as instituições de mercado de trabalho é dos desafios mais importantes que o futuro governo terá pela frente. Vamos ver como é que os sindicatos se portam. No caso de esse ser um governo-presidência socialista, era bom que deixassem de lado os delírios "transformacionistas" e a lógica da "resistência"- que não levam a lado absolutamente nenhum, senão ao fraco desempenho macroeconómico, desemprego elevado e ao aumento das desigualdades - para colaborarem inteligentemente para uma mudança que conferisse mais atenção aos que mais dependem do funcionamento do mercado - porque é este o público, e não a mítica "classe operária" que já não existe (ver o ponto 5.), a que esquerda contemporânea deve prestar atenção, porque é o que mais (vai) precisa(r) de protecção em função da crescente globalização das trocas mercantis.

4. Pelo que ouvi dos (e li sobre os) discursos de Sarkozy e Ségolène, as referências à Europa foram, se não nulas, muitíssimo escassas. Ouvi-los falar da "República" e da "Nação" francesa como se a França não fizesse parte de um dos maiores espaços económicos do mundo (e como se não ganhasse ao fazer dele parte), e com o qual partilha, pelo menos idealmente, um conjunto de valores e princípios civilizacionais e políticos é estranho e negativo. Depois admiram-se com coisas do género como o que aconteceu no referendo ao Tratado Constitucional Europeu em 2005.

5. O PCF já foi o maior partido comunista da Europa Ocidental. Hoje, a sua candidata, Marie-George Buffet, recebeu, pela informação que tenho agora, cerca de 1,9% dos votos. Os números dizem tudo da sua decadência eleitoral - mais do que justa face à sua bancarrota ideológica. Infelizmente, a influência de elementos afectos ao partido à frente de várias instituições francesas, para além dos problemas de efectiva representatividade que coloca, continua a comprometer o desempenho dessas instituições e a capacidade destas em participar do tão badalado rassemblement que ambos os candidatos mencionam. Enquanto continuar a haver esta fractura de representação (entre membros de instituições e os seus líderes), por um lado, e problemas sérios de coordenação de dinâmica política (entre os líderes das instituições e os representantes do poder político, sobretudo o executivo), por outro, as reformas que todos anseiam levar a cabo ficam, estrutural e organizacionalmente, bastante comprometidas - dado que o poder de "veto" das instituições estará, nesses casos, praticamente assegurado. (aliás, este diagnóstico relativo à discrepância entre o peso eleitoral do PC e o seu poder no interior de certas instituições, corpos profissionais ou movimentos podia ser aplicado a muitas situações em Portugal. Um deles é claramente este.)

Literatura em estado líquido

Acreditam alguns islâmicos, creio que do Sudão, que se um sábio copiar determinadas suras do Livro e, se depois, mergulhar esse papel em água para que a tinta se dilua, obterá uma bebida com poderes curativos.
Gostava de aplicar tão poética ideia às comemorações do Dia do Livro (e de vos propôr o exercício). Embora já com poucos sábios, talvez se pudessem encontrar algumas cópias manuscritas que transformadas em beberagem, nos tansmitissem, por ingestão, o espírito das obras. Teríamos, assim, bebidas Paul Auster para vermos um significado no quotidiano, Amélie Nothomb para não vermos qualquer significado; J. D. Salinger para nos deprimir, David Lodge para nos alegrar; Raymond Carver para sermos concisos, Javier Marías para sermos prolixos; S. João da Cruz para o misticismo, Tom Wolfe para o cinismo; Duras para nos apaixonarmos, Bret Easton Ellis para ficarmos indiferentes.
Imagem: Knowing I lov'd my books he furnished me from my own library with volumes that I prize above my Dukedom. Propero's books de Peter Greenaway.

À espera de Mme. Royal

São 21:24 e Ségolène Royal ainda não fez a sua comunicação ao país, que estava inicalmente prevista para as 20:45. Deve estar a re-escrever o seu discurso em reposta à alocoção de Sarkozy, que foi um tudo-nada demagógico e falou de um novo sonho francês (diz que é uma espécie de sonho americano, mas à francesa)

Entretanto de salientar que já diversos dos candidatos de esquerda manifestaram já o seu apoio a Ségolène Royal na segunda volta: Voynet (e outros mebros dos Verdes), a candiadata comunista Marie-Geogre Buffet, e - surpresa das surpresas - a mais empedrenida das extremas-esquerdas Arlette Larguiller da Lute Ouvrière. Todos apelaram de forma clara ao voto em Royal, e provavelmente seguir-se-ão outros como José Bové. Se a fidelidade partidária conta alguma coisa, a coisa está a correr bem a Ségolène Royal. Falta saber o que fará o centrista Bayrou que teve 18% dos votos.

Adenda: O altermundialista José Bové e Besancenot da LCR (que obteve mais de 4%) também já apelaram ao voto em Royal, ou melhor dizendo apelaram ao voto contra Sarkozy na segunda volta. Ainda ninguém declarou o seu apoio a Sarkozy.
Ah, Ségolène Royal também já falou, e falou bem (nada de especial a assinalar).

Surpresa: Não há supresas.

Segundo as primeiras estimativas dos resultados nas presidenviais francesas, Nicolas Sarkozy e Ségolene Royal passam à segunda volta. Parece que desta vez as sondagens não se enganaram.

Sarkozy - 29 a 30%
Royal - 25 a 26%
Bayrou - 18 a 19%
Le Pen - 10,5 a 11,5%

A taxa de participação atingiu um nível histórico, ultrapassou os 85%. Talvez a única surpresa seja a baixa votação de Le Pen. Seria de esperar que baixasse, mas uma quebra de mais de 5% em relação a 2002 é enorme (uma boa notícia, portanto). Os "pequenos" candidatos de esquerda tiveram também votações miseráveis.

'Ganda' cena




Atenção! Espalhem a notícia! Corações começam a palpitar, trocam-se os primeiros SMS, combinam-se os pontos de encontro, preparam-se as mochilas e as tendas. Não dá para a acreditar, o trio maravilha vai juntar-se em Portugal num mega Festival. Vai ser super 'boeda' demais!


sábado, 21 de abril de 2007

Prioridades

It is better to have a permanent income than to be fascinating.

Oscar Wilde, The Model Millionaire (1912)

A short story about a country (from the point of view of a political psychologist)

«- O Governo pretende fazer X. Perante a défice de A que temos, X é uma meta ambiciosa, mas essencial, não achas?
- Oh, A...então e o problema B?
- Então, mas espera...A é absolutamente essencial, é um problema que toca mais de metade da população, os mais pobres que, senão atingirmos X, irão continuar de certeza pobres para o resto da vida. O problema B é um problema de menor dimensão, relativamente ao qual já algumas coisas estão a ser feitas, e que terá toda a probabilidade de ser resolvido nos próximos anos, com a expansão da economia no sentido da procura dessas pessoas. Verdadeiramente importante é atacar A. A esquerda devia valorizar isso, não?
- A verdadeira esquerda não se contenta com isso. Isso são migalhas. Quando vocês querem atingir a meta X, nós propomos X+1; quando vocês querem a meta Y, nos colocamos a meta Y+1. Isso sim, é ser exigente e crítico.
- E ser verdadeiramente de esquerda é isso? Cada vez que um governo de esquerda propõe uma coisa, dizeres que isto não chega, ou que o problema é outro?
- Sim, claro, nunca me deixo apanhar.
- Então mas tudo se resume a isso? A não te "deixares apanhar"? Portanto, se o país precisa de política X, e mesmo que, pessoalmente, até reconheças, tu vais acabar por dizer que isso ou não chega ou que esquece alguém, mesmo que para isso tenhas que criticar uma política absolutamente essencial, e mesmo que isso acabe por contribuir, eventualmente, para um insucesso relativo da política?
- Sim, é isso mesmo, porque eu não sou dos teus, eu não me defino politicamente como um dos teus.
- Dos "meus"?
- Sim, porque eu me identifico com os fracos e oprimidos, tu és um burguês que pactua e beneficia do modo como este mundo é.
- Ah, percebi: então tu, por te definires como próximo dos fracos e oprimidos, vais sempre recusar, ou achar por definição insuficiente, qualquer política que melhore objectivamente a sua condição, só porque é proposta por alguém que, segundo a tua concepção, não se "identifica" com eles e não os "representa" realmente, é isso? E isto, imagino, para preservares a tua identidade política: para não te deixares associar, ou direi mesmo, contaminar pelos "meus"...Não achas que isto é hipocrisia?
- Espera lá....o que é que é hipocrisia?
- Colocares a defesa da tua identidade política à frente da defesa dos fracos e oprimidos...Porque é isso que está em causa aqui: mesmo que reconheças que esta proposta seja imprescindível para eles, o teu apoio a ela violaria o teu princípio de apoiares algo que não é proposto por um dos "teus"...
- Eu só acho que essa medida dá-lhes pouco. Isso são migalhas. É preciso ser exigente e querer melhor para eles.
- Eu também quero. Mas devias saber que, quando o elevador sobe, antes de chegar ao 10º andar, tem de passar primeiro pelo 5.º, e antes de chegar ao 5.º tem mesmo de sair do rés-do-chão!
- Isso é só conversa, são desculpas para não fazer mais.
- Ah, claro. Tens alguma proposta a fazer, alguma política alternativa?
- Por exemplo, podíamos fazer K, que seria verdadeiramente de esquerda.
- Ah, portanto saltar directamente para o 10.º andar sem passar pelos andares de baixo! Tu achas que isso faz algum sentido, que isso é verdadeiramente possível?
- Só não implantas porque não queres, tu e os teus amigos capitalistas.
- Portanto tudo se resume a isso, a falta de vontade e de bondade, não é?
- Não só, mas também por incompetência.
- É espantoso como passas lições de correctude moral e julgamentos sobre a maior ou menor capacidade para concretizar coisas quando a tua identidade política se define precisamente por não sujar as mãos, por te distinguires sempre dos que, por obrigação, são, passe o pleonasmo, obrigados a fazê-lo.
- Não vejo onde esteja a incoerência.
- Aqui não existe nenhuma. Isto é totalmente previsível; estamos afinal de contas no domínio do incentivo à irresponsabilidade: como sabes que nunca terás obrigações para nada, podes propor ou prometer este mundo e o próximo. A única incoerência ficou "congelada" lá atrás, mas é bem real: é que colocas a defesa da tua identidade política à frente do bem-estar dos que dizes defender.
- Estás a desconversar.
- Não, não, estou mesmo no ponto-chave da conversa. Mas admito que uma vez colocada esta questão a nu, a conversa futura fique bem mais difícil.»

NO FUTURE "pretty vacant drew a laugh from the listener, and then drove it back down the listener's throat"

Há uns dias postei a letra da música God save the Queen dos Sex Pistols, a propósito da libertação dos marinheiros britânicos.
Segundo Greil Marcus, na sua obra Lipstick Traces, quando os Sex Pistols lançaram o álbum Anarchy in the UK, amaldiçoaram o presente. Em 1977, com God Save the Queen, amaldiçoaram o passado de uma forma tão devastadora que levaram consigo o futuro. O modo como Johnny Rotten grita os versos: No Future for you, No future for me, não poderia ser mais expressivo.
Hoje apetecia-me ouvir a voz de Johnny.
Com a música Pretty Vacant do álbum Better Live Than Dead os Sex Pistols declararam o direito de não trabalhar e de ignorar todos os valores que estavam associados ao trabalho: perserverança, ambição, frugalidade, piedade, honestidade, esperança e futuro.
There's no point in asking us you'll get no reply
Oh just remenber a don't decide
I got no reason it's all too much
You'll always find us
Out to lunch !
Oh we're so pretty oh so pretty vacant
But now and we don't care
Don't ask us to attend cos we're not all there
Oh don't pretend cos I don't care
I don't believe illusions cos too much is real
So stop your cheap comment
Cos we know what we feel
We're pretty pretty vacant
We're pretty pretty vay-cunt
And we don't care

Antecipação ao delírio inauguracionista

(c) cartoon de GoRRo
Para quem não os conseguiu reconhecer à primeira, o trio maravilha é formado por Ganda Nóia, Karmona & Flopes. E a inauguração em apreço é a do túnel pombalino, dia 25, se não começar antes o foguetório...

Boas pedaladas aos ciclistas!

Por falar em blogues, temos aí novos ciclistas, disfarçados de ladrões de bicicletas, e parece que bem preparados para pedaladas de maratona. Boas pedaladas!

Nb: imagem de corrida de bicicletas no velódromo de Palhavã, 1909, fotógrafo não identificado (AMFL).

sexta-feira, 20 de abril de 2007

A minha elite é melhor do que a tua

Os Bloquistas e seus simpantizantes acham que as campanhas e os ministros do governo são elitistas, por sua vez, os governantes e respectivos apoiantes acusam de elistismo os dirigentes do BE. Ambos dizem defender os interesses dos mais pobres! Moral da história: estamos perante UMA ELITE HISTÉRICA A BRADAR CONTRA SI PRÓPRIA!

Será assim tão dificil?

No início da semana eu ficava irritado. Agora acho que fico simplesmente triste. Triste por ver pessoas inteligentes escrever coisas como o Miguel Vale de Almeida, que insiste no discurso que esta "vergonhosa" campanha é "elitista", que se baseia na "ideologia dos doutores" e que quer promover a "ideologia capitalista do sucesso".

Miguel, vamos lá deixar os palavrões caros de lado: para quê tanto exagero quando falha tão redondamente o alvo? Não vê que não está em causa transformar ninguém em "doutor" (e se estivesse, qual era o problema?)? Apenas se pretende que o/as miúdo/as adquiram, pelo menos, a escolaridade mínima...Não vê que não se pretende catapultar ninguém para a estratosfera do turbocapitalismo de sucesso? Apenas se pretende garantir os recursos mínimos para o futuro de pessoas que sem eles ficarão entregues ao emprego precário ou ao desemprego crónico...Será que é assim tão difícil compreender este esforço? Será que não compreende o valor de uma certificação quando não se tem nenhuma? Será que não compreende a importância de transmitir a estes jovens a ideia precisamente de que eles podem e devem ambicionar ter algum sucesso na vida, para contrariar o fatalismo crónico que transportam de casa para a escola, e da escola para casa, que marca a sua existência quotidiana, que lhes limita fatalmente os horizontes desde criança?...

Sim, Miguel, estes jovens precisam mais do que ninguém de uma certificação e mais do que ninguém da confiança mínima que podem ter algum sucesso na vida. É disso mesmo que eles precisam. Porque tudo o resto na existência deles os puxa para baixo. Achar o contrário, achar que isso do "doutor" é um luxo, é apenas e só projectar a sua visão do mundo na "análise" (?) deste problema; e achar que isto é conversa delirante do "elitismo" e da "autocracia socialista" é a mais completa indiferença mascarada de preocupação por estas pessoas.

Há alturas em que eu perco esperança na lucidez das pessoas, na razão humana. Isto, felizmente, passa.

Eu gostava de ter escrito isto

«(...) Na verdade, suspeito que por detrás dessa conversa de "todas as profissões são dignas" (quando ninguém diz o contrário) muitas vezes se esconde o desejo das pessoas que têm trabalhos interessantes terem outras pessoas dispostas a fazer (felizes e contentes) os trabalhos "chatos" para elas.»

Ler o post integral do Miguel Madeira aqui.

Estudo e independência

Há duas coisas que compensam: estudar e ser independente. Ainda não abdiquei nem de uma nem de outra e recomendo-as a todas as pessoas com que me cruzo. O conhecimento e a liberdade alimentam-se mutuamente.
____
Imagem: Maria Helena Vieira da Silva, "Biblioteca" (1949).

A tale of two posters


Eu sei que a fotografia não é famosa, mas se clicarem na foto e olharem com atenção q.b. percebem o que quero mostrar no gráfico. No eixo das abcissas (vertical), temos o nível de salário/qualificações; no eixo das ordenadas (horizontal) temos a distribuição da população. O que interessa verdadeiramente para o caso é a curva da distribuição dos salários/qualificações. Ela permite-nos ver a quem se dirigem as campanhas do Governo - a sombreado, praticamente metade da população - e do BE - uma pequena franja, também sombreada, de um sector altamente qualificado.
Uma imagem que vale mais que vários manifestos.

Política da campanha

Não há nada melhor do que uma boa campanha mediática governativa que provoque uma mais mediática contra-campanha da oposição partidária e dos comentadores de serviço, que, por sua vez, abafe a contra-campanha anterior contra o 1º Ministro.

E isto não é um insulto para os empregados de mesa?

O Daniel Oliveira considera a campanha do programa Novas Oportunidades é "ofensiva para quem trabalha em profissões tão dignas como quaisquer outras e que se esforça para cumprir os seus deveres profissionais". O que pensará agora desta campanha do BE? Não é ela igualmente ofensiva para as mesmas profissões, pelas mesmíssimas razões?

Há contudo uma diferença entre as duas campanhas: A do Governo tem como objectivo melhorar as qualificações daqueles que se encontram numa situação desprivilegiada, para que possam melhorar a sua situação profissional e por consequência o nível de vida - i.e. menos desigualdes -, a campanha do BE faz eco das reivindicações de quem tinha a expectativa de se encontrar numa situação privilegiada mas não está - i.e. mais desigualdades.

Para que serve uma qualificação? (I)

1. O comentário que talvez mais vi difundido nos últimos dias em torno desta polémica da campanha do "Novas Oportunidades" reportava-se ao facto de que toda esta história da certificação reproduzir uma espécie de doença bem portuguesa de querer arranjar um “canudo” à força para mostrar ao vizinho, ou coisa do género.
Esta ideia é extremamente difundida, mas transpira senso comum preconceituoso, é verdadeiramente provinciana – quando pretende supostamente criticar o provincianismo… - e tem, infelizmente, a solidez argumentativa e empírica da esferovite. E digo infelizmente porque antes ela fosse real; bom seria que houvesse um stock considerável de qualificações. O que se passa é precisamente o inverso: é a não-objectivação dos saberes de uma larguíssima fatia da população que sabe muito mais – por aquilo que aprendeu, por vezes ao longo de muitos e muitos anos, no mercado de trabalho – do que o seu diploma de 4º classe ou 9.º ano diz.

2. Para ver o que esta situação envolve, imaginem uma economia onde as actividades informais fossem muito mais predominantes que as actividades formais. O resultado é que as trocas não seriam sancionadas pelo mercado, não seriam contabilizadas pelo Estado, e os salários seriam mais baixos, os impostos arrecadados também, as pensões idem, etc. Agora apliquem o mesmo raciocínio à educação: o que as pessoas está como que em estado eminentemente incorporado, tácito, não-codificado. Não apenas todas essas competências que o indivíduo acumulou pela experiência são, neste contexto, razoavelmente opacas para terceiros, como as pessoas correm o risco de verem o seu conhecimento real ser subavaliado por quem compra o direito a usar a sua força de trabalho. Existirá, então, um não-reconhecimento objectivo das competências do trabalhador – com reflexos potenciais, por exemplo, no seu salário ou possibilidades de progressão na carreira. Um trabalhador nestas condições está objectivamente desvalorizado. Do ponto de vista económico, isto gera um potencial subaproveitamento daquele capital humano. Do ponto de vista moral, isto é indigno (e isto responde à questão da suposta indignidade da campanha: é que esta questão não se resolve com elogios bonitos nos blogues ou noutros locais às tarefas árduas dos dedicados trabalhadores).

3. O “Novas Oportunidades” envolve um esforço para manter os jovens na escola e um esforço para fazer os adultos activos regressar a ela. Para os primeiros, incentiva-os a ficar na escola e, se pretenderem, seguir uma formação mais profissionalizante, à medida dos seus gostos e objectivos. Para os segundos, permitirá não apenas certificar os conhecimentos adquiridos ao longo da vida, mas também voltar à escola de modo a aperfeiçoar as competências que quiserem ou forem necessárias para a certificação. O programa envolve, por isso, uma componente de ensino e aprendizagem, em contextos diferentes, em benefício de jovens e adultos.

4. Mas agora imaginemos que o “Novas Oportunidades” não envolvia um esforço para manter os jovens na escola e um esforço para fazer os adultos activos regressar ao seu espaço. Imaginemos, então, que não existe a oportunidade efectiva de uns e outros melhorarem as suas competências; de ganharem mais confiança e eficiência no exercício das suas tarefas (presentes e/ou futuras); de se tornarem trabalhadores mais produtivos; de conhecerem outros trabalhadores e, via a concretização de interfaces entre a escola e as empresas, potenciais futuros empregadores, etc. Imaginemos, assim, na pior das hipóteses, que a certificação não envolve aprendizagem individual ou colectiva de nenhuma espécie: técnico-cognitiva, cultural, social, etc.. Seria como se, num dado guichet, entrasse o portfolio no qual o indivíduo lista as suas competências individuais e saísse, do outro lado da porta-giratória, o certificado. Mas, mesmo nesse caso limite, a certificação seria muito importante.

5. Porquê? Porque o mercado de trabalho está longe de funcionar de forma perfeita e concorrencial, estando antes repleto de incertezas e de incompletudes informacionais: um trabalhador que passou anos e anos no mercado de trabalho mas que não tem qualquer certificado dos seus conhecimentos terá dificuldade em “dizer” ao seu potencial empregador o que sabe; simetricamente, este terá sempre dificuldade em avaliar as competências do primeiro. (claro, há o CV. Mas a informação lá contida pode não reduzir muito a incerteza do potencial empregador e, na medida que funciona enquanto certificador da experiência, o CV tem limitações. Um certificado escolar é um documento muito mais universal). Para um mercado funcionar relativamente bem, tem que haver um ajuste decente entre a oferta e a procura; se o empregador A pretende comprar a força de trabalho do tipo X, e o trabalhador B só tem competência do tipo Z, então este desajuste é nefasto para os dois. É um bocado como comprar “gato-por-lebre”. No caso de A ter efectivamente contratado B apesar das dúvidas que tinha, o desajuste em causa pode provocar ineficácia desnecessária e levar mesmo a que a relação laboral seja terminada (mas isto depende das leis laborais, etc.) sem que nenhum deles tenha ganho muita coisa com o seu estabelecimento, etc.

6. Um certificado reduz a incerteza e emite um sinal do trabalhador para o empregador, diminuindo o estabelecimento de ligações laborais construídas sobre equívocos e faltas de informação. O que para o raciocínio preconceituoso não passa da “aquisição de um canudo”, para os indivíduos que certificam o seu saber trata-se de um “comportamento racional de investimento” no seu futuro, e para os empregadores uma garantia mínima dos saberes e competência na posse do trabalhador. Por isso, a existência de certificações - credíveis, claro - interessa tanto ao capital como ao trabalho.

7. Noutro dia volto a este tema, mas de outro ângulo de análise, menos devedor da economia e mais da ciência política e da história, e aí vou necessitar de vários posts. Passo a passo, espero mostrar porque é que a construção de um sistema de produção e certificação de saberes e competências profissionais eficaz e reconhecido é essencial para conseguirmos construir uma economia não apenas mais moderna, mas sobretudo menos dualizada e inigualitária. E mostrar também porque é que o projecto da esquerda passa de forma tão crucial por aqui (e não apenas, ou nem tanto, a nível nacional, pela multiplicação de pós-pós-doc's).

Os peões também têm cartaz!

É verdade, amiguinhos, também fizemos o nosso posterzito, um pouco a correr, confesso, um bocado no desenrasca, vero, mas a vida é mesmo assim.
A propósito, hoje foi dia de debate sobre o Parque Mayer na Ordem dos Arquitectos. As conclusões estão aqui e vão no sentido daquilo que já avançáramos. A arq.ª Ana Tostões diz que está farta de escrever cartas para a CML a pedir a salvaguarda do cinema Capitólio, mas que até hoje têm feito orelhas de mercador. Acho injusto esta hipótese: então não se está mesmo a ver que se trata de poupança, neste caso em selos?
O arq. Nuno Teotónio Pereira avalia o projecto de renovação de Frank Ghery como «um amontoado de edifícios que tapa a presença da massa arbórea do Jardim e que teria graves consequências ambientais para a cidade de Lisboa». A socióloga Luísa Schmidt, o arq. Ribeiro Teles e restantes membros do painel afinam pelo mesmo diapasão. Será que este debate em crescendo ainda vai a tempo de prevenir o pior?

Multiculturalismos literários (e cinematográficos)

Já todos os suplementos literários recentes analisaram o actual papel das mulheres indianas na literatura. Arundathi Roy, nascida em Shillong, Meghalaya e a viver em Nova Deli, foi, de alguma forma, a percursora deste movimento, ao ganhar o Booker Prize de 1997 com o seu livro The god of small things (O Deus das pequenas coisas. Asa), fábula familiar de contornos políticos de denúncia do sistema de castas. Aliás, a autora, não tem escrito ficção para se dedicar ao activismo político.
Nove anos depois, em 2006, outra indiana ganha o Booker, Kiran Desai, nascida em Nova Deli, residente nos Estados Unidos, filha de Anita Desai, três vezes nomeada para o mesmo prémio. O livro chama-se The inheritance of loss e foi já traduzido para português (A herança do vazio. Porto Editora), história intimista, também com uma incursão política que ofendeu o Nepal.
O destaque, agora, vai para Abha Dawesar de Nova Deli, a viver em Nova Iorque que causou sensação no Salão do Livro de Paris, com o título Babyji, já lançado no nosso país pela Asa, cujo enredo segue as descobertas (homo)sexuais de uma adolescente indiana e já foi classificado como muito à la Philip Roth.
E toda esta introdução para falar da até agora minha favorita, Jumpa Lahiri, nascida em Londres e criada nos Estados Unidos. Tem um belíssimo livro de contos The interpreter of maladies (O intérprete de enfermidades. D. Quixote), Prémio Pulitzer em 2000 e um romance The Namesake (O Bom Nome. D. Quixote), adaptado ao cinema, já este ano, pela também indiana Mira Nair (em exibição, mas eu ainda não vi). Talvez por ser a «menos» indiana de todas, a escritora tem procurado nestes livros reflectir sobre a identidade daqueles que vivem num país que funciona em simultâneo como país de origem e de acolhimento. As personagens debatem-se com o que os pais indianos neles projectam: a perpetuação da cultura de origem a milhares de quilómetros de distância, e a sua própria vivência num país onde nasceram. Esse conflito é, sobretudo, realçado no que diz respeito aos hábitos alimentares e à escolha de uma noiva/o, como se o corte, ou pelo contrário, o prolongamento com as raízes passasse pelos sabores originais e pela formação de um novo núcleo familiar. Acho as questões muito interessantes: quantos serão precisos a comer o quê e a apaixonar-se por quem para que se mantenha uma identidade? E será mesmo aí que reside o nosso sentimento de pertença a um lugar?

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Momento maldoso do dia

Claro que há sempre mais uma hipótese para intepretar a crítica ao conteúdo dos cartazes da campanha do "Novas Oportunidades", somada ao cartaz do BE de hoje alertando para o desemprego dos licenciados: é que estes, os que perfazem o stock de potencial votantes no BE, estão tão preocupados com a sua situação laboral presente que não estão nada interessados em que mais população se qualifique. Isso, logicamente, geraria concorrência. Estaríamos perante, basicamente, uma forma daquilo a que os sociólogos chamam "fechamento social".

Eu não vou ao ponto de dizer isto a sério. Mas o mero facto de esta concomitância ocorrer devia levar certas pessoas a pensar nos dois efeitos. Nem que seja pelo valor da ironia. É que, às vezes, quando as pessoas são cegas e surdas os argumentos e às estatísticas, é o poder da ironia, sobretudo quando esta é amarga, que lhes mostra a realidade.

À espera de um editor português II


Économie de l'éducation, de Marc Gurgand (2005, Editions La Découverte, 121 páginas)

Momento intimista do dia

Ainda dizem que as ciências sociais só servem para confirmar o que as pessoas já sabem. Se assim fosse, não era preciso chegarmos, nesta discussão, ao ponto a que chegámos.

Luta de classes

Não há nada como o movimento dialógico das palavras e do pensamento. Na resposta ao André e no comentário que fiz ao João (a partir do post dele mais abaixo), cheguei à conclusão que de facto estamos perante uma ironia interessante.
A luta de classes não morreu, não. O que os regimes modernos fazem é a "tradução democrática da luta de classes", como dizia o recentemente falecido (no dia 31 de Dezembro de 2006) Lipset. Perante o manifesto político que representa o cartaz do BE no contexto da actual discussão, o giro é mesmo ver a demonstração claríssima que (fracção de) classe o BE representa. Garanto-vos que não são os mais desfavorecidos. Deve ser isto a que chamam "desvios de direita".

E eles a insistirem nos dez milhões de Cristianos Ronaldo

O Hugo já o referiu aqui. A contra-campanha que o Bloco de Esquerda colocou nas ruas é um exercício demagógico direccionado às elites mais qualificadas, afinal o grosso dos seus eleitores.

Mas o problema nem reside aí. O obsceno, é o BE fingir não perceber - ou, na melhor das hipóteses, não perceber de facto - que o programa "Novas Oportunidades" se dirige aos menos qualificados dos portugueses: os agora adultos que abandonaram a escola muito cedo, e os jovens que se sentem pouco motivados para continuar o seu percurso escolar.

A motivação do programa é só uma: mais qualificação pode significar melhor qualidade de vida. Quem não acredita nisto, é tontinho.

GOLOS

O video do golo do Messi já não está disponível, o que é pena até pelo relato, hilariante. Se alguém souber de que estação de TV é aquilo, pf diga.
Quem quiser ver um golo (até vários) do mesmo nível, vá até A Causa Foi Modificada e veja o video do post «Porque razão a formação do Sporting foi sempre a melhor, e porque é que, se não tomar cuidado, assim vai deixar de ser».

Peões por Lisboa - Propostas concretas - a selecção final

Já está disponível no lado b deste blogue uma selecção da rubrica «Peões por Lisboa - Propostas concretas» (vd. aqui).
Esta selecção foi realizada também para ser entregue ao projecto de ideias «Lisboa Ideal», organizado pelas associações culturais Alkantara e ZDB e que integra uma rede internacional patrocinada pela Comissão Europeia. Não sei se é bem isto que eles estão à espera (ouvi falar em "criações" para serem apresentadas numa outonal "digressão europeia"...), mas na dúvida lá seguiu caminho.
O prazo deste concurso de ideias termina a 25 deste mês, por isso, quem tiver mais ideias já sabe a quem há-de dirigir-se.
Boas leituras.
Nb: na imagem, Largo de Santos, algures na era republicana (AFML).

Estes são aqueles que querem ser levados a sério

Eu já tinha dado, pela minha parte, a polémica como fechada. Mas o Bloco de Esquerda (BE) resolveu fazer um favor ao Governo, produzindo este cartaz. Deu ainda mais publicidade à iniciativa "Novas Oportunidades". Ao mesmo tempo, deu ainda mais provas de um impressionante oportunismo e de uma incrível demagogia.

Vou ser frontal q.b. naquilo que tenho para dizer. Eu não queria partidarizar o debate assim, mas vai ter que ser:

1. Comecemos por um elogio: o BE percebe o mínimo de sociologia e de comunicação política. É que o BE, partido que recebe os seus votos de uma fracção da classe média e média-alta qualificada, conhece bem os problemas dos seus votantes. No que toca à educação, os seus problemas não passam pelo drama de famílias cujos elementos têm menos que o 6.º ano, ou menos que o 9.º ano, ou o secundário incompleto; famílias cuja probabilidade dos seus filhos saírem das escola antes do 9º. ano ou antes do 12.º para engrossar o exército de reserva de mão-de-obra da construção civil é altíssima.
Não: o seu drama eventual é terem eventualmente filhos licenciados em variadíssimas áreas - algumas sem expressão de mercado particularmente relevante - que não encontraram um emprego à altura dos seus sonhos. Isto é um problema. Conheço várias pessoas nessas circunstâncias. Mas – e para colocar as coisas nas devidas proporções - o problema dramático do país não é esse. Já escrevi aqui que o desemprego da mão-de-obra qualificada em Portugal é mais baixo que a média na EU. Isto não é dizer que não existem milhares de casos individuais destes. Existem. Mas uma coisa é falar de problemas individuais, outra coisa é falar de problemas nacionais. O problema da nossa população é basicamente este: temos 3,5 milhões de activos com o secundário incompleto; 2,5 milhões e meio destes, têm o 9.º ano ou menos; destes, meio milhão tem menos de 24 anos. Estas pessoas, ao contrário dos (potenciais) votantes do BE, se nada for feito para inverter esta situação, vão ficar uma vida inteira desqualificadas perante um mercado de trabalho cada mais complicado para os que têm baixas qualificações. A prioridade política passa por intervir junto destas populações, as mais fragilizadas, sem recursos da mais vária ordem, não apenas hoje mas, e ainda mais, amanhã. Os que acham que estas coisas da educação e da formação profissional são intervenções menores, quiçá de pendor "tecnocrático", então é porque não são capazes de ligar pequenas medidas com a filosofia política. É que a justificação para acções deste tipo não é apenas económica (os que se podem dar ao luxo dirão "economicista"), ela é também ideológica: é a justificação rawlsiana de dar primeiro atenção aos mais desfavorecidos e de medir o bem-estar social pela elevação dos mínimos sociais. É "aqui" que é preciso agir primeiro e com mais energia, conferindo recursos e acesso a bens primeiros a estas pessoas. Ora, os (potenciais) votantes do BE não fazem parte desta população, mas acham que são igualmente "explorados". No que me parece ser por vezes a incapacidade de pensar comparativamente, e saber as limitações estruturais do país em que vivem, entra-se num discurso miserabilista que baralha as prioridades que para um Rawlsiano estão bem claras: "the underdogs first".

2. O BE é o partido que, em concorrência directa com o PCP – e quem percebe o mínimo de sociologia política sabe como isto influencia o seu instinto de sobrevivência - está sempre contra o nosso modelo de “baixos salários-baixas qualificações”. Muito bem. Estamos todos. Quando o Governo lança uma campanha de incentivo à qualificação da população e de certificação da experiência profissional, o que faz o BE? Pega nalguns exemplos do seu pequeno microcosmos (noutra época chamar-lhe-íamos “pequeno-burguês”) e transmite a mensagem de que “estudar não compensa”.
Escrevi várias vezes aqui que esta conversa de que os estudos não compensam é da mais pura irresponsabilidade. Bastava alguns senhores olharem para umas estatísticas para perceberem que praticamente em nenhum país da UE compensa tanto ter um curso universitário (ver o final do post). E bastava perceberem, se entrassem numa escola básica ou secundária, que o "discurso de que estudar não leva a lado nenhum" é por vezes banal junto daqueles onde é mais importante erradicá-lo: junto dos/as jovens que, oriundos na sua maioria de famílias com pouco capital económico e cultural, acham que não vale a pena continuar na escola porque, estudem o que estudarem, façam o que fizerem, vão acabar como electricistas, serralheiros ou mecânicos. É absolutamente central contrariar este discurso e mostrar-lhes que se ficarem na escola e prosseguirem a escolaridade, as suas hipóteses de não apenas de encontrarem um emprego no futuro, mas de esse emprego ser mais bem pago, mais estável e mais enriquecedor aumentam. O BE, que passa a vida a bradar contra a (real) reprodução das desigualdades perante e pela escola, em vez de ajudar numa campanha para puxar pelos/as miúdos/as e dar-lhes um algum alento e confiança no futuro, fez precisamente o oposto: reproduz e alimenta irresponsavelmente o mesmo discurso de muitos pais e alunos.
Que esses pais e esses alunos, cuja trajectória passada e “mundo-da-vida” presente contribuem para, lamentável e poderosamente, cercear as suas perspectivas de futuro, pensem como pensam e ajam como agem – desvalorizando os estudos, e no limite abandonando a escola – eu percebo. Que o BE reproduza o mesmo discurso só porque uma parte da sua constituency, altamente qualificada (e por isso a anos-luz do problema da falta de oportunidades da maioria da população portuguesa: era tão bom que conseguissem perceber isso, que faz toda a diferença neste problema), atravessa alguns problemas de inserção no mercado de trabalho; e que o BE transforme o problema transitório de uma pequena fracção da população portuguesa numa questão que não apenas se sobrepõe à tragédia nacional da ausência de qualificações da população e do abandono escolar, mas que dá precisamente os sinais errados a quem mais ganharia com o seu investimento em qualificações, isto, é algo não apenas de profundamente lamentável, mas uma verdadeira lição política, e que define o BE: define o seu público, a sua agenda de prioridades, e, permitam-me a frontalidade, a sua hipocrisia.
Com as suas posições elitistas viradas para quem já tem uma qualificação (a campanha é para quem ainda não a tem e corre o risco de nunca a vir a obter!), alimenta, pelo menos simbolicamente (e isto do ponto de vista moral, nestas coisas, conta), para a continuação das elevadas taxas de abandono escolar.
E no futuro, claro, virá a lenga-lenga de que o Governo não faz nada para aumentar a qualificação dos portugueses, e que por isso continuamos numa economia de “baixas qualificações-baixos salários”. Se isto não é hipocrisia, então digam-me o que é.

3. Eu gostava que as pessoas que têm defendido o que têm defendido nos últimos dias - e que têm um pingo de seriedade - olhassem para o seguinte quadro e lessem os seguintes parágrafos. São retirados de um estudo do Banco de Portugal, publicado no seu boletim económico em 2004, Vol.10, nº1 (pp.71-80), assinado por Pedro Portugal (que pode ser encontrado on-line: ir a www.bportugal.pt > ‘Publicações’ > ‘Boletim Económico’). Chama-se, ironicamente, “MITOS E FACTOS SOBRE O MERCADO DE TRABALHO PORTUGUÊS: A TRÁGICA FORTUNA DOS LICENCIADOS”:

«As transformações tecnológicas que ocorreram ao longo das últimas duas décadas, e que favoreceram uma procura crescente de trabalhadores qualificados, surpreendeu o mercado de trabalho português numa situação de oferta insuficiente de qualificações. Este défice de qualificações terá gerado um significativo acréscimo do prémio salarial atribuível aos trabalhadores com curso superior até ao meio da década de noventa. O hiato de salários entre os trabalhadores com e sem licenciatura ter-se-á mantido muito elevado desde esse período. Os vários estudos que estabelecem comparações internacionais dos prémios de licenciatura não divergem na conclusão de que o mercado de trabalho português apresenta prémios invulgarmente elevados. Serão, aliás, os mais elevados da União Europeia. Compreende-se que o desequilíbrio entre as competências procuradas pelos empregadores e as qualificações disponíveis no mercado de trabalho seja muito acentuada porque existe um grande desfasamento entre a proporção de licenciados em Portugal e nos restantes países da União Europeia.
(...)
Este hiato de qualificações demorará várias décadas a ser corrigido.
Neste ensaio procurou-se aprofundar a análise das condições privadas de decisão de investimento num curso superior. Concluiu-se que o benefício monetário esperado da obtenção de uma licenciatura é excepcionalmente elevado, fazendo corresponder a um custo de investimento de cerca de 25 000 euros, um valor acumulado de ganhos salariais de aproximadamente 200 000 euros. A estimativa da taxa real de rentabilidade (15 por cento) excede claramente o retorno esperado de outras aplicações financeiras.

(...)
O investimento em educação gera também benefícios sociais significativos pelas externalidades positivas que desencadeia. Uma economia dotada de uma força de trabalho mais educada é também mais produtiva. De acordo com um trabalho recente da OCDE o défice de qualificações académicas em Portugal será responsável por uma quebra anual de 1.2 do produto interno bruto. Ter companheiros de trabalho qualificados também tende a aumentar a produtividade (e os salários) devido à presença de benefícios sociais da educação nas empresas.

Não se ignora que os jovens recém-licenciados defrontam presentemente dificuldades em assegurar um posto de trabalho desencadeadas pela recessão económica e pelas restrições orçamentais. Mas esta é uma situação conjuntural que não dissipa as vantagens estruturais associadas à detenção dum curso superior. Mesmo em conjunturas económicas desfavoráveis essas vantagens persistem. Em particular, os licenciados continuam a deter uma maior probabilidade de encontrar um posto de trabalho adequado, em comparação com os jovens com menos habilitações académicas».


Estas letras estão em tamanho gigante para ver se a mensagem, finalmente, passa.

P.S.1 - Podem encontrar mais dados esclarecedores aqui.

P.S.2 - Lê-se aqui que «Francisco Louçã afirmou que o BE vai «durante as próximas semanas» promover «colóquios e intervenções públicas» em defesa da qualificação e do emprego e desafiou o primeiro-ministro, José Sócrates, a debater o tema no Parlamento.
«Desafiamos mais uma vez o primeiro-ministro para que no debate mensal da próxima semana debata no Parlamento a questão das qualificações e do emprego», disse, acrescentando que o BE pretende confrontar o Governo com «a inconsistência e a insensibilidade social
. "Insensibilidade social"???? O BE põe um cartaz que sobrepõe o problema de alguns milhares de privilegiados - lamento colocar as coisas assim, mas num país como o nosso ser licenciado é um privilégio (relativo, claro, como todos os privilégios) - ao problema de milhões de portugueses e vem falar de "insensibilidade social" do Governo?
Mas que lata!