sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Marioladas

Queixava-se Vasco Pulido Valente (há já uma semana) do esquecimento com que a Guerra Peninsular tem sido tratada no nosso país. De que não ocupa um grande lugar na «imagem heróica» do país, de que só a Monarquia e o Exército se lembram de a comemorar.
É uma opinião. Mas o pior é que perante tal lacuna, o cronista desata a lamentar-se por já ninguém ler as obras de Arnaldo Gama: o Segredo do Abade e o Sargento-Mor de Vilar. Este último é um livro que, alguns anos depois de o ter lido, recordo com enfado. A prosa romântica, já de segunda geração, enredada em descrições do povo portuense, sempre entre a turba amotinada e os «espíritos sãos» e nos amores de Luís Vasques com Camila de Vilalobos, que passa a vida a estremecer de sensibilidade e a comer caldos, é de modo a desanimar o maior entusiasta do desastre da Ponte das Barcas.
«- Que é isto? Que mariolada é esta, pelo inferno!
- Os francezes! Os francezes!»
Gama, Arnaldo – O sargento-mór de Villar. Lisboa: Empresa Lusitana Editora, [s.d.]. p. 124.
Imagem: Arnaldo Gama (1828-1869)

Estudo Sobre Medeia

Começou ontem na Culturgest.

Dividido em três capítulos, cada um deles potencialmente autónomo, o tríptico sobre Medeia concentra-se nalguns temas que surgiram da leitura do grande texto de Eurípides. Este é aqui utilizado como pretexto, imprescindível ponto de partida, para uma interpretação pessoal com uma forte liberdade expressiva que encontra a sua correspondência cénica na utilização de escassos elementos cenográficos, nos corpos e vozes dos actores como vectores de informação e emoção, no uso de várias línguas destinadas a tornar-se simplesmente som.
Três telas sujas, caóticas, cores lançadas de jacto sem gramática, sem lógica, a ruptura de uma forma, ou pelo contrário a tentativa utópica da não-formalização. Deste caos, é a memória dos corpos, da carne, que toma a dianteira. A primeira tela ou capítulo I, Medeia e Jasão, é o encontro/embate destes dois corpos e das suas histórias, síntese da história de Medeia, do mito Medeia, tal como nos foi transmitido. Dança de corpos que se procuram e se anulam no outro, nesta memória que não pertence aqui. As outras duas telas ou os outros dois capítulos vêm completar a narrativa do primeiro: o corpo da mulher amada/amante que se torna o corpo mãe/corpo infanticida; e depois no último capítulo o corpo que elimina, anula o sangue, a carne, para ascender e portanto tornar-se Dea-Me-Dea. Poucas palavras, palavra nenhuma: alfabeto que procura a reconquista de uma língua na impossibilidade da compreensão, onde o dizer se torna som, memória arcaica. Música.antonio latella
Antonio Latella nasceu em Nápoles em 1967. Em 2001 ganhou o prémio especial UBU para o projecto “Shakespeare e mais além” e continuou a sua pesquisa sobre Shakespeare nos anos seguintes. Montou ainda três textos de Genet, I Trionfi de Testori (2003), O Banquete das Cinzas (2005, a partir de Giordano Bruno, prémio da crítica), As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant de Fassbinder (2006) e algumas óperas. Mas as suas encenações mais conhecidas partem da obra de Pasolini: Pílades (2002), Pocilga (2003) e Besta de Estilo (2004) – esta última pôde ser vista o ano passado na Culturgest. Este ano foi convidado para ser um dos encenadores do projecto Thierry Salmon (a nova École des Maîtres), dirigido por Franco Quadri.


Dia 29 Capítulo I (21h30) ·
Duração: 1h05
Dia 30 Capítulos II (21h30) e III (23h00) ·
Duração: 50 m + 40 m
Dia 1 Capítulos I (18h30), II (21h30) e III (23h00) ·
Duração: 1h05 + 50 m + 40 m
Capítulo I: Medeia e Jasão
Capítulo II: Medeia e Filhos
Capítulo III: Medeia Deusa
Encenação Antonio Latella
Dramaturgia Federico Bellini Com Nicole Kehrberger, Michele Andrei, Giuseppe Lanino e Emílio Vacca
Som Franco Visioli
Luzes Giorgio Cervesi Ripa
Assistente de encenação e movimentos coreográficos Rosario Tedesco
Figurinos Rosa Futuro e Tobias Marx
Fotografia Anna Bertozzi
Produção Teatro Stabile dell’Umbria, Totales Theater International, Festival delle Colline Torinesi
Estreia a 18 de Junho de 2006 em Turim, no Festival delle Colline Torinesi
*texto retirado da página publicitária da Culturgest

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Paz, pão, habitação: utopias de outrora?

Hoje e amanhã, debate-se a construção colectiva da cidade e as políticas inclusivas na Ler Devagar do Braço de Prata. A iniciativa chama-se Acupunctura urbana e o pontapé de saída é dedicado às operações SAAL (Serviços Ambulatórios de Apoio Local), estrutura estatal criada a seguir à revolução de 1974 para auxiliar logisticamente e financeiramente o processo de auto-construção de novas casas por comunidades interessadas em mudar os seus péssimos núcleos habitacionais. Rapidamente se estendeu por grande parte do país urbano: Porto, Coimbra, Lisboa, Montijo, Setúbal, várias cidades do Algarve, etc..
Recomendo vivamente o filme de João Dias que aí será exibido esta noite, sobre essas mesmas operações SAAL, e cuja estreia ocorreu no DocLisboa 2007. Toda a programação no site da Plataforma Artigo 65, que co-organiza a iniciativa, juntamente com o CIDESC e os Cidadãos por Lisboa.

Toca e foge

Não querendo quebrar a cadeia, segue o nome dos cinco filmes que me vieram logo a cabeça:

The Shining de Stanley Kubrick
A companhia dos Lobos de Neil Jordan
Amadeus de Milos Forman
Querido Diário de Nanni Moretti
Dogville de Lars Von Trier

A cadeia segue para a Elisa.

Escolhas cinéfilas

Respondendo ao repto da Vallera, aqui vão alguns dos meus filmes preferidos e que acho mais importantes, em ordem aleatória. Salto alguns dos que já foram citados, incluindo A regra do jogo (Jean Renoir), que recomendo vivamente ao Zèd (a propósito, o mesmo realizador tem um bom filme sobre a I Guerra Mundial, não me recordo agora do nome). Os russos também têm excelentes filmes (Couraçado Potemkine; Siberíada; Vem e vê; vários do Nikita Mikalkov; etc.), bem como os japoneses, os alemães, os brasileiros, etc.. Fica para a próxima. Agora, passo a vez ao Renato.

O mundo a seus pés (Orson Wells)
2001; Dr. Strangelove (Stanley Kubrick)
Novecento (Bernardo Bertolucci)
Morangos silvestres (Ingmar Bergman)
Os favoritos da lua (Otar Iosseliani)
O meu tio (Jacques Tati; enfim, todos os filmes deste grande cineasta)

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Brincar com o fogo, literalmente

A terceira noite de confrontos em Villiers-le-Bel foi mais calma que as duas anteriores. Vamos ver se a tendência é para acalmar. Uma coisa para já parece evidente nestas três noites, apesar de até agora os tumultos se restringirem a uma zona dos subúrbios do norte de Paris, a violência é superior à de 2005. Nomeadamente foram usadas armas de fogo contra a Polícia. Aliás a Polícia é muito mais um alvo agora do que há dois anos. Tanto agora como em 2005 o que desencadeou a violência foi a morte de dois adolescentes num incidente com a Polícia. Não é por acaso, antes de se pôr já em causa todo a política de integração em França dos últimos 30 anos (apesar de ter bem por onde se lhe pegar) deve atentar-se nesta constante que é o mal-estar entre os jovens das banlieues e a Polícia. Em 2005 a morte de Zied e Bouna na central eléctrica de Clichy-sous-Bois resulta de erros grosseiros da Polícia, o que muito contribui para o desencadear dos tumultos. Desta vez o acidente parece ser da responsabilidade dos dois jovens, que circulavam numa moto não hologada (não devia circular na via pública), sem capacete, depressa, e não respeitaram a prioridade. No entanto, há um pequeno senão contra a Polícia: vendo o estado em que ficou o carro é possível que seguisse em excesso de velocidade. A versão oficial é que o carro foi danificado deliberadamente por jovens do bairro após o acidente. Um investigação do Le Monde desmente esta versão. Pelo contrário os populares isolaram o carro da Polícia e a moto para que nada fosse alterado. Eu só me pergunto "porquê tentar arranjar desculpas?". Com todos os elementos contra os dois adolescentes, assumir que o carro da Polícia talvez seguisse em excesso de velocidade seria visto como um gesto de boa vontade, de assumpção de responsabilidades. No mínimo a versão oficial vai ser vista como uma provocação, numa altura em que convém evitar uma escalada (acho eu...). A bem dizer ninguém deve ficar surpreendido, afinal os erros grosseiros da Polícia em 2005, confirmados por inquéritos independentes, nunca foram assumidos nem pela Polícia nem pelo Ministério do Interior, até hoje.
Claro que Sarkozy não tardou a anunciar a sua firmeza contra os delinquentes que causam os distúrbios. Acho muito bem! E gostaria ainda mais que ele fosse tão firme a resolver os problemas das banlieues - desemprego, exclusão social, delinquência, um sistema de ensino que agrava as desigualdades, precaridade, baixos rendimentos, etc... etc... - como é a publicitar a sua firmeza securitária. Se fosse, talvez nem tivesse estes problemas de tumultos para resolver.

Mudança

do Arrastão. E não é nada abusar pedir para divulgar a nova morada, temos muito gosto.

Cinco mais

"Esperamos, agora, as cinco escolhas da peão Vallera, a quem passo a cadeia."
Ora bolas. (A ideia foi de quem? do Hugo?)
Segue, então, uma lista de filmes, não dos que eu mais gosto (embora alguns coincidam), mas daqueles que prefiro dar nas aulas e aos quais os alunos co-respondem.

Apocalypse Now
The Deer Hunter
The Last Picture Show
The Servant
La Dolce Vita

Passo a cadeia ao Daniel!

terça-feira, 27 de novembro de 2007

+ 5 filmes

Em resposta ao convite do Zéd e, também, entusiasmada com a cadeia (talvez seja por isto que nunca nos convidam, ficamos todos entusiasmados e desatamos a fazer uma cadeia interna), aqui está a minha lista (sem grande ordem de preferência):
- In a lonely place de Nicholas Ray (1950): "I was born when she kissed me. I died when she left me. I lived a few weeks while she loved me.";
- Brief encounter de David Lean (1945): se o amor é uma fatalidade, também pode ser uma escolha;
- Annie Hall de Woody Allen (1977): penso invariavelmente na cena, em que Marshall Mcluhan vai desfazer o equívoco na bilheteira do cinema quando oiço alguém perorar opiniões parvas;
- Rumble Fish de Francis Ford Coppola (1983): o filme da adolescência, mas, ainda hoje "the motorcycle boy reigns";
- Todo sobre mi madre de Pedro Almodóvar (1999): o filme perfeito.
Esperamos, agora, as cinco escolhas da peão Vallera, a quem passo a cadeia.

Uma minúscula para a esquerda

Eu percebo o ponto de vista crítico do Zed, mas também acho que é preciso ter calma sob pena de não cairmos na autoflagelação da Esquerda — que, mesmo que seja virtual (a autoflagelação...), não deixa de fazer mossa. Nem tudo o que acontece, mesmo tendo protagonistas que se dizem de Esquerda, é representativo da Esquerda. Nem tudo o que acontece é um rumo possível ou falhado para a Esquerda. A Esquerda francesa não representa toda a Esquerda. Os movimentos sociais actuais não representam — nem deixam de representar — o futuro da Esquerda em França. Talvez a Esquerda precise, não digo de tempo nem de calma, porque isso hoje ninguém pode exigir a ninguém, mas simplesmente, prosaicamente, de uma minusculazinha para baixar a pressão.

(já vêem como ando ambicioso em termos programáticos)

E agora vou-me deitar, que os acontecimentos aqui em Rennes não dão tréguas. Amanhã ou depois ponho aqui uma cronologia da rocambolesca guerra civil bloqueio-não bloqueio, com mais detalhes sobre o que entretanto se passou.

PS: eu sei que fui eu que pus maiúsculas na palavra "esquerda" neste post, que o Zed escreve "esquerda" com minúscula e que a maior parte das pessoas de esquerda também o faz. Mas acho que se percebe o que quero dizer.

Concurso de tiros no pé

O Renato nos dois posts anteriores, e no debate com o Zé Neves, desviou o debate sobre se o regime Chavista, na Venezuela, é uma democracia ou não, para outro, eventualmente mais interessante, sobre qual o rumo que a esquerda deve tomar. Aproveitando a ressaca de duas semanas de greve aqui em França, vou aproveitar a "deriva" do debate para dar outro exemplo de via que a esquerda NÃO deve seguir, o da esquerda francesa. Não se trata de idealizar a democracia (desculpa Renato), mas de fazer uma crítica muito concreta à prática de uma certa esquerda.

Começando pelo fim, depois de quase duas semanas de greves nos transportes, Sarkozy vem afirmar que não recua, e que as suas reformas são para levar até ao fim. É nesse momento que os sindicatos terminam com as greves e se sentam à mesa das negociações. Aqui há algo errado (digo eu...), normalmente quando o governo se mostra intransigente é altura de começar as greves, não de acabar. Ora acontece que nessa altura os sindicatos já tinham desbaratado qualquer capital de contestação que poderiam ter. A adesão à greve baixava de dia para dia e as reivindicações dos grevistas eram impopulares para a maioria da opinião pública. Naturalmente que neste braço de ferro, como se temia, é o governo quem leva a melhor. Isto insere-se num clima em que uma parte da esquerda parece querer ganhar na rua o que perdeu nas urnas. A contestação estudantil de que fala o André é um bom exemplo disso mesmo.

A contestação actual, tal como está a ser feita, é antes de mais um erro de estratégia. Tão pouco tempo depois de a direita ter ganho claramente as eleições presidenciais e legislativas, e quando uma parte destas reformas foram promessas eleitorais, Sarkozy e o seu governo têm uma forte legitimidade. E, mais importante ainda, qualquer contestação tem que ser em defesa de uma causa justa, e vista como justa pela opinião pública. A manutenção de regimes especiais de reformas para os maquinistas, que são objectivamente um privilégio de uma classe em particular, não são, obviamente, bem vistos (nem me parecem sutentável hoje em dia reformas aos 50/55 anos). Fazer a oposição da Sarkozy na rua, neste momento, e desta maneira, só descredibiliza a esquerda. Para além da questão de estratégia, também por uma questão de princípio tenho reservas. As formas extremas de protesto que não tenham um apoio da opinião pública, e que não tenham uma causa justa (e acredito que numa democracia as duas coisas tendem a andar juntas), pecam por falta de legitimidade. Estes protestos - Greves nos transportes, a que se juntam a função pública, com os estudantes a tentar ir à boleia - aparecem como uma amálgama de sentimentos difusos anti-Sarkozy que procuram apenas um qualquer pretexto para atacar o geverno, seja o pretexto qual for. Claro que o governo Fillon/Sarkozy agradece, e vai já tentar levar a reboque a reforma do contrato de trabalho, essa sim bem mais preocupante para a generalidade dos trabalhadores. Mas quando chegar a altura de protestar contra o que realmente interessa os cartuxos vão estar já todos queimados.

E nisto onde andam os partidos? Do PSF não se houve falar. Os pequenos partidos à esquerda do PS estão na rua, a tentar agitar as massas. Cada um por si a tentar ser o polo aglutinador da contestação, o que quer dizer na prática cada um a puxar para seu lado. Numa altura em que a direita vai estar no poder por cinco anos, com a presidência e a maioria absoluta, é uma boa altura para a esquerda francesa respirar e pensar. É uma boa altura para se lançar num debate ideológico entre esquerdas, para procurar convergências e estratégias de oposição comuns. Frentista se necessário. Nunca como agora foi uma boa altura para fazer uma união da esquerda, com causas e lutas comuns. O que é exactamente aquilo que a esquerda francesa não está a fazer.

Impressões madrilenas

Voltei a Madrid a semana passada, após 7 anos de ausência, e gostei mais agora do que então. Talvez porque tenha visto uma Madrid mais intercultural. Não que ela não existisse antes, talvez me tenha passado ao lado.
A começar pelas gentes nas ruas e nos estabelecimentos, com muitos imigrantes, sobretudo latino-americanos. Depois, a retrospectiva da Paula Rego no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, muito forte, embora o espaço parecesse apertado.
Ademais, os melhores restaurantes foram galegos: o Taberna Maceiras, com música tradicional galega e um ambiente muito acolhedor (+info e imagens para salivar aqui e aqui) e a Marisquería Ribeira do Miño, esta mais antiga e finalizando os repastos com a tradição do conjuro, uma queima para fazer ponche de café acompanhada da leitura dum texto de esconjuro.
Deu ainda para ver a exposição que inaugurou o anexo do Museo Nacional del Prado, Fábulas de Velázquez, que mostra o lado menos conhecido deste pintor, enquadrado por outros pintores e quadros que o influenciaram.
E livrarias, muitas, e manifestações, ao largo (não são monopólio de França, hélas!). E muito passeio...
Duas coisas ficaram em falta: ver o Rastro (a Feira da Ladra lá do sítio) e comprar uma garrafa de aguardente de medronho. É verdade, nem na cidade que tem como símbolo um medronheiro cobiçado por um ursão guloso foi possível encontrar, em pouco tempo, o divino néctar. Fica para a próxima.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Cinco bobines

Uma coisa que me irrita profundamente nesta coisa das cadeias dos blogues é que nunca fui convidado para nenhuma. Agora que o Hugo Mendes resolveu mandar com uma cadeia genericamente dirigida ao Peão, eu vou fazer de conta que é comigo e vou responder (afinal é o mais perto que alguma vez hei-de estar de ser convidado a participar numa cadeia). O tema desta vez são as bobines, e como o critério, tanto quanto eu percebo, é mais ou menos livre, não vou dar a lista dos melhores cinco filmes que eu já vi, mas dos que ainda não vi. Ora aqui vai a lista de do top cinco da minha lista de filmes a ver:

- To Kill a Mockingbird, de Robert Mulligan (primeiríssimo da lista, há anos que me anda a fugir).
- On the Waterfront, de Elia Kazan (segundo da lista, há anos que ando a fugir dele, mas - eu sei - é gravíssimo um intelectual de esquerda nunca o ter visto).
- F for Fake, de Orson Wells (nem sei bem se o filme foi realmente feito...)
- One Flew Over the Cuckoo's Nest, de Milos Forman (porque gosto do Jack Nicholson).
- La Règle du jeu, de Jean Renoir (até parecia mal não ter nenhum francês na lista).

E chega a pior altura do post, decidir a quem enviar a cadeia (uns chateiam-se por serem incluidos, outros por não serem...). Então aqui vai disto: 1) Para que os meus colegas Peões não fiquem sentidos por ter usurpado o convite procura-se voluntário aqui mesmo para dar seguimento à coisa; 2) Porque "Ladrões de Bicicletas" é um título de um excelente filme procuram-se voluntários ali também; 3) Para o David Luz do Linha dos Nodos, que tem um visual novo; 4) Para o João Sousa André do Estação Central, que há montes de tempo que não fala de cinema; e 5) para a Shyz que gosta desta coisa das cadeias (espero que esta não seja uma repetição...).

Constituição boliviana é aprovada em meio a distúrbios

Sucre, a capital oficial da Bolívia, enfrentou ontem o terceiro dia consecutivo de protestos e distúrbios, desencadeados pela forma como foi aprovada a nova Constituição do país. Quatro pessoas morreram e os feridos já passam de 130. A Constituição foi aprovada na noite de sábado, dentro de uma instalação militar e sem a presença de representantes da oposição.

O presidente eleito Evo Morales deseja uma nova Constituição para impulsionar no país a sua política de governo e com a qual promete "voltar a fundar a Bolívia". Parece-me que a profecia de Hugo Chávez está se concretizando quando afirmou recentemente sobre a possibilidade de a Bolívia vir a se tornar um "Vietnã das metralhadoras, da guerra". Mais notícias sobre os distúrbios de Sucre nos principais jornais bolivianos La Razón, El Diario e El Deber.

Gilberto Freyre no Museu da Língua Portuguesa

Depois de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, chegou a hora de o Museu da Língua Portuguesa homenagear Gilberto Freyre, com a exposição temporária, "Gilberto Freyre - Intérprete do Brasil", tributo ao sociólogo e antropólogo brasileiro, falecido há 20 ano, e autor, entre outros, de "Casa-Grande & Senzala" (1933). A exposição começa amanhã e vai até 4 de maio de 2008.

A mostra apresenta objetos inéditos para o grande público. Trata-se de material de pesquisa utilizado por Freyre para vários de seus livros, como Casa Grande & Senzala , Ordem e Progresso, Açúcar entre outros. Além de documentos pessoais e correspondências trocadas com Cândido Portinari, Heitor Villa-Lobos, Carlos Drummond de Andrade, Florestan Fernandes e Cícero Dias.

Outra novidade e um lado pouco conhecido de Gilberto Freyre é trazido ao público pela primeira vez: o pintor. A mostra reúne 27 quadros de Freyre (óleos em tela e aquarelas), com temáticas variadas, como auto-retratos, religiosidade, cenas familiares e de crianças, sua casa, engenhos e etc. Taí um evento que não se pode perder.

Idealizar a democracia? Vamos a isso!

A propósito deste debate que se iniciou com a discussão em torno do tipo de democracia vigente na Venezuela, o Zé Neves respondeu ao meu post anterior. Das suas afirmações retenho esta (que gostaria de responder de uma forma concisa e clara):

“Creio, no entanto, que a idealização da democracia deveria igualmente preocupar democratas como o próprio Renato. Não o digo apenas – ou tanto – pelo que essa idealização pode ter de afim aos projectos neoconservadores de exportação da democracia. Falo sim de algo que me parece anterior a isso: as análises tipológicas sobre a democracia correm muitas vezes o risco de só existirem “fora da história” e de só servirem num tal contexto”.

Devo confessar que não percebo muito bem o problema de “idealizar a democracia”. Aliás, entendo até que esse tem sido um dos grandes problemas da esquerda e do socialismo desde das concepções propostas a partir da segunda metade do século XIX (refiro-me particularmente a Marx e Proudhom). As vias ideológico-políticas propostas desde então foram na sua maior parte idealizadas fora de um contexto de democracia. Este sistema foi sempre associado aos interesses e ao domínio da burguesia. Penso que isso foi um dos grandes erros estratégicos do socialismo do séc. XX: deixou que um determinado modelo de democracia se impusesse pela mão dos partidos sociais-democratas e pelos conservadores.
Herdamos agora um modelo que está em grande crise e que assenta basicamente em dois pilares: a democracia representativa e a instituição do Estado Providência. Foi o que restou e infelizmente não temos muito mais em que nos agarrar. Contudo, isto não quer dizer que não tenhamos outra alternativa senão assumir um discurso e uma prática de resistência. Essa é a via da esquerda dita reformista cujo objectivo pragmático passa unicamente pela reforma do Estado Social (para que este permaneça com a maior parte das suas funções de solidariedade institucional).
Entendo que para além da resistência há mais campo de luta para a esquerda. E este deve jogar-se essencialmente dentro de um processo democrático e de democratização. Considero que a posição da esquerda socialista não deve ser, mais uma vez, a saída de cena apregoando aos quatro ventos a ineficácia do sistema e apresentar a revolução como a única saída possível. Muitas mudanças e rupturas podem efectivar-se por intermédio de um sistema mais vasto e pluridimensional de democracia. Talvez tenha chegado a hora da esquerda começar a idealizá-lo!

A suivre

Ontem ao fim da tarde dois adolescentes morreram num acidente com um carro de polícia, num "bairro sensível" dos subúrbios norte de Paris, não muito longe de onde começaram os tumultos de 2005. A moto onde seguiam os dois jovens foi abalroada pelo carro de polícia, mas não se conhecem ainda as circunstâncias do acidente, apenas que os jovens seguiam sem capacete. Menos de uma hora depois do acidente ocorreram confrontos violentos entre jovens e a Polícia. Tudo muito semelhante ao que aconteceu há dois anos, excepto que a violência da primeira noite de confrontos foi maior ontem do que em 2005. Provavelmente as autoridades estão também mais preparadas agora do que estavam na altura. A seguir com atenção o que vai acontecer nas próximas noites nas banlieues. Uma coisa parece óbvia, o mal-estar entre os jovens dos "bairros sensíveis" e a Polícia é tão grande ou maior do que em 2005. Dois anos passaram sem quaisquer progressos. Notícias no Le Monde e no Libération.

sábado, 24 de novembro de 2007

A Ginjinha do futuro (to Sofia with Luv)

Depois de alguma pesquisa, e segundo fontes pouco seguras contactadas pelo Peão, conseguimos apurar que o fecho da Ginjinha do Rossio é afinal temporário. Segundo as mesmas fontes um representante de uma empresa fictícia, com sede fiscal nas ilhas Caimão, prepara-se para investir na economia nacional e a sua prioridade é a aquisição da Ginjinha do Rossio. Este cenário é visto com bons olhos pelo governo, por representar um investimento estrangeiro, e ser um passo na modernização da economia nacional. A dita empresa irá reabrir em breve a Ginginha remodelada e modernizada, conforme às regras da ASAE.
Do plano de restruturação da Ginjinha faz parte o rejuvenescimento dos quadros. Todos os empregados serão jovens, recrutados maioritariamente nos subúribos, receberão como ordenado base o ordenado mínimo nacional, trabalharão por turnos, e com contratos a prazo. Findo o contrato serão substituidos por novos empregados. Ao que consta, está a ser concebido um uniforme para os empregados, que inclui um chapéu de pala, com o objectivo de criar um nova imagem no acolhimento da Ginjinha. Será também instituido o prémio do empregado do mês, para premiar o desempenho dos funcionários. O prémio consite na oferta de uma fotografia do próprio premiado, autografada pelo novo proprietário, e entregue no momento da cessação do contrato a prazo.
A modernização vai trazer a oferta de novos produtos à clientela, procurando atrair novos públicos alvo. Está a ser estudado o lançamento da Ginjinha Light, Ginjinha Sem Alcool e Ginjinha sem Cafeína. O investidor espera a prazo transformar a Ginjinha num franchise e estará a equacionar a aquisição de novas instalações noutros locais turísticos de Lisboa. Aparece como a possibilidade mais forte neste momento uma nova Ginjinha junto ao Mosteiro dos Jerónimos (ao que parece no CCB). Outras hipóteses serão a Baia de Cascais, o centro histórico de Sintra, o centro comercial Colombo ou o Alvaláxia. Uma expansão para o estrangeiro, em caso de sucesso, não está de todo excluída.

Com isto das greves o estacionamento em Paris está cada vez mais difícil

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Orgulhos

Aqui está uma excelente reflexão sobre a campanha da cerveja hetero. E só uma pequena citação para verem como é mesmo boa: «Porque dessa simplificação facilmente nasce outra, "se o orgulho hetero é homofóbico, então o orgulho gay é heterofóbico". »

2 tiros no pé seguidos de 1 coisa trágica

Por sugestão do meu amigo Daniel, cá vai um texto mais longo sobre a actual contestação nas universidades francesas.

A actual contestação estudantil em França tem, como em anos anteriores, uma causa próxima e depois, por trás, um sentimento difuso de angústia e de apreensão em relação ao futuro. O descontentamento vem, assim, em vagas cíclicas, e por razões mais do que compreensíveis: as universidades francesas são a face massificada e degradada de um sistema de ensino superior que, como noutros planos da gestão da coisa pública neste país, é suposto produzir igualdade e acaba por produzir desigualdade. Os estudantes são os primeiros a senti-lo e, de tempos a tempos, explodem de indignação.

A causa próxima da contestação actual é uma nova lei sobre a gestão das universidades, à qual se tem chamado, talvez impropriamente, lei da autonomia universitária. Em boa medida, a autonomia agora aprovada consiste, em termos de gestão, num reforço dos poderes do presidente da universidade; em termos de financiamento, a universidade dependerá de contratos-programa assinados com o Estado e necessitará cada vez mais de recorrer a receitas próprias. Uma lei tão importante foi aprovada — à boa maneira Sarkozysta — em plenas férias de Verão. Houve umas negociações a correr com os reitores e com os sindicatos estudantis, umas cedências aqui e ali — e ala com a lei.

Dito isto, a primeira coisa que me chateia no movimento universitário actual é os estudantes serem contra a nova lei sem dizerem que o que é preciso é mais autonomia universitária ou um outro tipo de autonomia diferente desta. E que o que é preciso são garantias claras de que o Estado não vai deixar afundar, ao abrir o leque dos financiamentos universitários, os cursos de letras e de ciências sociais, como está a acontecer, e não só em França, mas em todo o espaço europeu.

(Dito isto, devo acrescentar que os professores universitários — nos quais me incluo — deviam estar na primeira linha deste combate que aqui reivindico. E não estão. Embora, neste preciso momento, tal luta se tenha tornado impossível)

A segunda coisa que me chateia é que a luta se faz essencialmente, tal como já tinha acontecido na grande contestação anti-CPE de 2006, através de bloqueios da universidade. Os alunos, que já têm enormes carências de base e semestres incrivelmente curtos, ficam várias semanas sem aulas. A actividade académica — colóquios, seminários — fica muito perturbada ou totalmente paralisada. E um lugar que é, ou deve ser, um lugar de vida e de inteligência fica fechado, bloqueado, abandonado. Os que fazem e defendem o bloqueio dizem-me que esta é a única maneira eficaz de luta, como se viu pela de 2006. Eu tenho as minhas dúvidas. Mas, de qualquer modo, não concordo com o método e nunca aderiria a uma luta que se medisse só pela eficácia.

A terceira, e principal coisa — e fundamental, e trágica — é a seguinte: os métodos da contestação actual são, demasiadas vezes, anti-democráticos e mesmo violentos. Para me referir ao caso da universidade onde ensino — a universidade de Ciências Humanas de Rennes —, uma clara maioria dos estudantes manifestou, por via de um referendo legítimo, a sua oposição ao bloqueio. Durante dois dias ele foi levantado, para recomeçar, imposto pela força de uma minoria, na segunda-feira seguinte. Os elementos mais activos do movimento de bloqueio da universidade de Rennes — uma parte dos quais não são estudantes — deram, além desta, várias provas de desrespeito pela vontade da maioria. No seu discurso, como tentei dizer aqui, aflora de forma explícita e muito inquietante o repúdio pela democracia — a mesma que, numa amálgama terrível, acusam de ter eleito Sarkozy.

(suspeito que uma das consequências da eleição de Maio passado tenha sido fazer passar uma franja da extrema esquerda para o horizonte da acção directa. Dizem lutar contra o sistema, mas a única coisa que estão a conquistar, neste momento, são umas instalações destinadas ao ensino de matérias tão relevantes para o Capitalismo mundial como História, Literatura e Línguas Estrangeiras)

Em Rennes, os bloqueadores ocuparam um dos edifícios da universidade e usam de intimidação em relação aos funcionários que lá trabalham. A presidência está a tentar, com dificuldade extrema e sem garantias de sucesso, levantar o bloqueio sem intervenção policial (que já ocorreu uma vez, na semana passada). Assim, a universidade, que já tinha sido alvo do mais longo bloqueio da contestação anti-CPE em França, vive talvez a maior crise da sua história. Por efeito da escassez de recursos e da concorrência real que existe entre as universidades de Letras pelo financiamento estatal, esta paralisação da actividade da instituição reflecte-se, para os anos seguintes, em perda de alunos, de lugares para professores e de receitas. Rennes é talvez um caso extremo, mas não é caso único.

É de uma ironia trágica que um movimento que se diz contra a precarização do ensino e das relações laborais contribua objectivamente, pela sua própria acção, para a precarização do ensino e das condições de trabalho.

P.S. No meio disto, a maioria dos alunos da universidade mantém uma assinalável lucidez. São pragmáticos e, apesar de desorganizados, não gostam de ser manipulados nem tomados por parvos. Mas sentem-se, compreensivelmente, abandonados. Hoje, os estudantes votam mais uma vez por via electrónica. Na segunda-feira, vamos tentar voltar a levantar o bloqueio, e há alguma esperança de recomeço de normalização. A ver vamos.

Chávez não é a minha via

Este debate sobre Chávez e os novos movimentos da esquerda na América Latina tem sido interessante de acompanhar e teve o condão de, pelo menos, trazer um novo fôlego para o debate político na blogosfera. Gostaria de centrar este meu post na esquerda. De um lado, temos a postura cautelosa que torce o nariz perante as ambivalências de Chávez (o populismo carismático, o egocentrismo, os tiques autoritários…) e questiona se de facto este representa uma real alternativa ao modelo neo-liberal; do outro lado, temos uma adesão ao suposto processo revolucionário de transformação socio-económica que está ocorrer em alguns países da América Latina. Segundo esta perspectiva a figura de Chavez não é o mais importante, como também não é importante centrar o debate na questão democrática. Contudo, devo confessar que tenho alguma dificuldade em entender a perspectiva de José Neves (defensor desta última posição): não percebi se a sua crítica é ao modelo liberal de democracia ou se é à democracia em si enquanto sistema.
Na minha opinião qualquer processo reformista ou até revolucionário deve ser enquadrado e constituído por intermédio de uma sistema democrático representativo (e não me refiro somente aos partidos, mas também, aos sindicatos, às associações – inclusive às patronais). Aliás, um dos grandes problemas das actuais democracias liberais (americana e também europeias) tem sido, quanto a mim, a limitação do campo representativo da democracia quer a nível micro - nas empresas, nos sindicatos, na administração pública, nas universidades; quer a nível macro, por exemplo, na construção da União Europeia.
Por outro lado, entendo que a suposta revolução de Chávez tem por base um imenso barril de petróleo. Este facto não displicente, pelo contrário, para mim é central. Para a esquerda mais esclarecida o petróleo significa um dos grandes males do mundo: gera oligarquias, ditaduras, guerras, e, sobretudo, gerou um sistema económico insustentável que urge substituir. O que seria deste capitalismo não fora o petróleo? É claro que enquanto o barril perdurar, Chávez terá toda a liberdade e todos os recursos para eternizar a seu processo revolucionário. Mas o curso deste processo assenta em grande medida no curso do ouro negro.
Defendo que um dos grandes objectivos da esquerda contemporânea é o de propor e de lutar por um sistema económico que acabe com a dependência e, sobretudo, com o monopólio do petróleo. Não consigo conceber qualquer forma de socialismo viável cuja infra-estrutura se fundamenta num forte desequilíbrio económico: o monopólio de um recurso. Em última instância podemos dizer que este socialismo de Chávez só é possível porque existe este capitalismo que tanto criticamos. Ao sustentar toda a economia interna e toda a sua política social no petróleo, Chávez está a ser um forte contribuinte para a reprodução de um sistema capitalista gerador de enormes desigualdades. Por isso, não comungo da exaltação de alguma esquerda face à actual Venezuela: a desvalorização da democracia e a indiferença face ao uso (abuso?) de uma matéria-prima nefasta como monopólio económico, não representam para mim os pilares de uma esquerda com futuro.

Solidariedade para com o Abrupto

Seguindo o repto do Arrastão e do Zero de Conduta, quero aqui demonstrar a minha solidariedade para com o Abrupto, e o seu autor, Pacheco Pereira.
O Abrupto é um blogue que não leio, e do que não leio não gosto. Parece-me um blogue monótono, repetitivo e, sobretudo, previsível. Não fala do mundo, a não ser do mundo pessoal de Pacheco Pereira, que é o que menos me interessa. Se eu lesse o Abrupto regularmente não teria apenas uma vaga opinião, teria uma certeza, mas não vale o esforço. Não obstante quero aqui insurgir-me contra os falsos blogues pornográficos e toda a espécie de truques utilizados com o único intuito de impedir o Abrupto de ser o primeiro blogue nos rankings nacionais e (quiça?) internacionais. Fica portanto aqui o link ao Abrupto como testemunho da minha solidariedade.

cerveja Tagus

Descobri no 0 de conduta que a cerveja Tagus tem uma nova campanha: http://www.orgulhohetero.com/
Descobri, ainda, que os Panteras Rosas fizeram uma campanha alternativa, a ver com atenção.

Despedida da Ginginha

É no dia 26 de Novembro pelas 18.30h a despedida da Ginginha do Rossio, outra vítima da ASAE. Ver aqui.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A ler

No blog "contrejournal", que faz parte do Libération, um depoimento do historiador Gérard Noiriel sobre como o discurso anti-racista não está a ser capaz de contrariar a lógica identitária (com traços racistas) do presidente-governo francês na política de imigração.

O que é afinal a Democracia?

Ora aí está um debate realmente interessante. Não é um debate propriamente novo, mas a propósito de Hugo Chávez e da Venezuela, Daniel Oliveira no Arrastão e Pedro Magalhães no Margens de Erro têm-se dedicado a uma muito interessante troca de posts (prova que a blogosfera serve para que hajam bons debates). O Daniel Oliveira começou com este post, Pedro Magalhães respondeu, Daniel Oliveira replicou, e Pedro Magalhães respondeu novamente. Para resumir o debate, Daniel Oliveira acha que deve ser levada em conta a opinião dos próprios venezuelanos para avaliar a democraticidade do regime de Chávez. Pedro Magalhães considera que uma análise objectiva não deve levar em conta a avaliação subjectiva, e muitas vezes contraditória, que os próprios venezuelanos fazem da sua democracia. Essa avaliação deve ser feita com base em critérios estabelecidos a priori.

"Se eu tiver uma definição de "democracia" - como o Daniel pelos vistos tem ("eleições livres, liberdade de organização, liberdade de expressão, liberdade de imprensa e separação de poderes") - eu posso dizer se a Venezuela é ou não uma "democracia" independentemente daquilo que saiba sobre as opiniões subjectivas dos cidadãos venezuelanos."

Concordo com Pedro Magalhães que por uma questão de rigor analítico não se deve misturar realidades diferentes. Discordo sobre qual é a realidade relevante para avaliar a democraticidade de um regime. Na minha opinião a democraticidade avalia-se por um critério ainda mais minimalista do que o do Daniel Oliveira, mas é o critério que resulta da própria definição de Democracia: um regime é democrático se o exercício do poder pelo estado resulta da vontade livremente expressa dos eleitores. O principal elemento a ter em conta nessa avaliação é a opinião desses eleitores, com toda a subjectividade e contradições que isso possa acarretar. Convém aqui fazer uma separação clara. Se eu fosse um cidadão venezuelano a quem se perguntasse numa sondagem se estava contente com a democracia, eu levaria em conta para a minha resposta todos os elementos que Daniel Oliveira enunciou (eleições livres, liberdade de associação, de expressão e de imprensa) e mais algumas. A minha resposta seria um redondo "Não". Mas se me puser na pele do analista político que avalia exteriormente a democraticidade do regime venezuelano os critérios são outros. Se para os eleitores venezuelanos consideram que as medidas económicas e sociais são mais importantes do que aquelas liberdades, e se é por isso que escolhem o governo de Chávez, podemos estar em desacordo, mas não podemos dizer que não é democrático.

Pedro Magalhães refere que pode aferir-se a democraticidade pelos traços autoritários de um regime. Discordo. Se o autoritarismo é o resultado de uma escolha livre dos eleitores, então é democrático. Faço aqui uma distinção (semântica?) entre um regime autoritário e uma ditadura. A ditadura é quando o poder é exercido sem a consulta da vontade dos eleitores, logo nunca é democrática. Um regime autoritário pode, em teoria, ser o resultado de um processo democrático. Definir a priori quais são os valores fundamentais que regem uma democracia independentemente do que pensam os cidadãos é um raciocínio que pode legitimar o despotismo iluminado. Quem é que decide quais são os valores fundamentais da Democracia? E com que legitimidade?

Esclareço que este post não é de modo algum em defesa de Chávez (ou de qualquer outro regime, seja a Russia de Putin, ou a China comunista). O regime Chavista pode até ser democrático. Mas será que ser democrático é suficiente para nos contentarmos com um regime? A minha resposta curta é: Não. Ou, parafraseando Pedro Magalhães, é necessário mas não é suficiente.

Jorge Palma

Eu andava a tentar não escrever sobre Jorge Palma para não revelar a minha condição de fã incondicional, destituída de qualquer sentido crítico e apenas capaz de proferir afirmações sentimentais, mas depois do concerto no Coliseu já não só capaz de tanta discrição.
Cada espectáculo é uma experiência e um percurso por tantas canções que vão fazendo sentido em alturas diferentes (uma fã incondicional sabe todas as letras).
Em Lisboa, por enquanto, a experiência não se repetirá, mas, amanhã, o Porto também vai poder ouvi-lo.
É mesmo um autor que
Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar
Só por ter dois sóis
Só por hesitar
Fiz a cama na encruzilhada
E chamei casa a esse lugar
E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão
Só por inventar
Só por destruir
Tenho as chaves do céu e do inferno
E deixo o tempo decidir

Outras globalizações: o olhar do cartoon


Alguns dos cartoons do World Press Cartoon 2007, dedicado à globalização, estão expostos na Culturgest (Lisboa) até Dezembro.
Uma amostra de cartoons desse concurso também pode ser vista aqui.
Eu já vi o catálogo e, por isso, recomendo uma visita à Culturgest, ou aos sites acima indicados.
V
Nb: na imagem, cartoon de TD («Naughty boy», Indonesia), vencedor do Prémio Gag do WPC2007.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Herói americano

Num dos episódios mais marcantes desta última série dos Sopranos, Tony mata o seu sobrinho após um acidente de automóvel antecedido por um negócio gorado. Estamos à espera do acidente, mas não esperamos o que se segue: o assassinato brutal de Chris perpetrado por Tony a sangue frio. Tony até ía ligar para o 911, mas a mea culpa de Chris, a de ter reincidido no vício, foi-lhe fatal. O acidente é um mero pretexto para uma morte anunciada mas não premeditada. Sabíamos que mais cedo ou mais tarde, Tony se iria desembaraçar de Chris. Não sabíamos é que seria assim.
Neste mesmo episódio, surge na TV do quarto de Tony e Carmela, um programa estilo talk show com Katharine Hepburn. Aliás, em todas as temporadas da série, a alusão directa e indirecta ao cinema clássico americano são qualitativamente e quantitivamente impressionantes. Afinal os Sopranos estão imbuídos dessa característica do cinema clássico, quer na sua forma, quer no seu conteúdo. Os géneros (Gangsters, Western, Noir, Screwball, etc..) e os planos clássicos (unidade fechada e percurso linear das cenas) percorrem todos os minutos da série, e Tony é o herói americano por excelência, aquele que percorre o quotidiano on the road cruzando fronteiras no território perpassado, e que não se limitam às fronteiras territoriais do genérico.

Blogofrase da semana

A morte é o que nos faz esgalhar o carapau.

M. D., 2007 DC

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Cuidado com as generalizações abusivas...

Um editorial do Le Monde, sobre Hugo Chávez, pega numa citação de Durão Barroso "O populismo não é a solução para os problemas que há na América do Sul" e generaliza para "O populismo não é uma boa solução em lado nenhum". Ora, o Durão Barroso é um político inteligente, sensato e ponderado, se ele pôs "América Latina" na frase é por alguma razão. Não me parece que ele estivesse de acordo com aquela generalização. Bem prega Frei Tomás...

Bad news

Para terminar esta segunda-feira tristonha, ou para começar a terça cinzenta, aqui fica a nota saudosa para o encerramento de três «casas» lisboetas: o cinema Quarteto; o cinema King e a Ginjinha do Rossio.
O Quarteto estava a ficar piolhoso, mas é verdade que acompanhou a adolescência de muitos de nós, o King, um viveiro de ácaros, ainda não estudados pelos documentários da 2, mas respresentou o mesmo para a nossa juventude e a Ginjinha, que provavelmente não acompanhou nada, mas que sempre esteve lá. E não vão ser as salas de centros comerciais, agora quase em exclusivo, e o chá verde que poderão substituir estas experiências.

Faltar Levas: o novo super-herói das escolinhas lusas

Agora que a algazarra já passou, e o tiro relativamente corrigido (trata-se de dar uma derradeira oportunidade aos alunos faltosos, faltando apenas saber a posição da avaliação contínua), nada como nos determos nesta pérola de Antero. Quem quiser seguir o folhetim terá que ir ao blogue Anterozóide, especializado no 'humor educativo', mas não só..
Cartoon de Antero

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Cousas lindas

Ó meus amigoze,

atão agora publicam-se livros a desdizer a pátria?
Burocracia, Estado e território?! Burocracia?!
Ai, ai, vamos lá a ber isto. Aqui na baiúca só existem coisas lindas. Cousas lindas, isso.
Bamos lá a acertar na próxima ediçom, tá bem? Títalo sugerido: Cousas lindas da ditosa pátria.

domingo, 18 de novembro de 2007

Chegou o Beaujolais Nouveau

Como todos os anos, em França (e talvez noutros países como Wallis e Futuna, a Nova Caledónia ou a ilha da Reunião), a terceira quinta-feira do mês de Novembro marca o início da comercialização do Beaujolais Nouveau. Para quem não sabe o Beaujolais Noveau é um vinho francês relativamente mau. Vá-se lá saber porquê é um vinho que é posto no mercado logo que se completa a vinificação (há rumores de que o Beaujolais Nouveau é um vinho que não se aguenta lá muito, e a verdadeira razão para tão rápida colocação no mercado é simplesmente pragmática, mais tarde seria tarde demais). Mais misterioso ainda é o sucesso comercial do Beaujolais Nouveau. A terceira quinta-feira de Novembro em França é apenas comparável ao dia de S. Valentim nos EUA. Compreende-se que no EUA seja difícil encotrar um parceiro/a decente e que por isso o S. Valentim gere tanta expectativa, já em França não é assim tão difícil encontrar um bom vinho. O facto é que desde o princípio de Novembro são mais os cartazes publicitários do Beaujolais Nouveau do que os que mostram mulheres semi-nuas (mesmo que alguns cartazes consigam conciliar ambos). E desde quinta-feira é impossível comprar detergentes no super-mercado sem levar com uma garrafa de Beaujolais Nouveau em promoção. A febre estende-se a restaurantes, bares e similares.
Esta coisa de Beaujolais Nouveau é uma tradição ancestral, que remonta nos seus moldes actuais a 1985, e na sua origem a 1951, e só pode ser compreendida no seu contexto étnico-cultural francês. Por um lado a modéstia endémica dos franceses leva-os a celebrar efusivamente o vinho que permite demonstrar ao mundo que nem todos os vinhos franceses são bons, o que os livra da maldição de ser vistos de fora como sendo um povo arrogante. Por outro lado existe a crença profundamente enraízada de que beber um mau vinho do ano em curso proveniente de uma determinada região vai permitir saber se todos os vinhos do país nesse mesmo ano serão bons ou não. Na realidade parece-me que a verdadeira razão pela qual se festeja a chegada do Beaujolais Nouveau é tão simplesmente porque isso quer dizer que continua a produzir-se vinho. Isso em si mesmo é uma razão mais que suficiente para uma celebração, porque pior que mau vinho é não haver vinho de todo.
O Beaujolais Nouveau propriamente dito, para quem tem curiosidade de saber, tem paladar que faz lembrar a áqua pé (sem qualquer desprezo pela água pé, que - como todos sabemos - não é vinho), se for bebido imediatamente após resrolhar a garrafa. Se se deixar respirar umas horas já se tem algo que se assemelha vagamente a vinho (se se deixar respirar uns dias tem um vinagre bastante suave de um paladar muito agradável, apropriado sobretudo para saladas).

sábado, 17 de novembro de 2007

A gripe pneumónica: porquê o silêncio?

Retomando a pneumónica de 1918/19, o silêncio que sobre ela se abateu em todo o mundo (tanto por parte dos seus contemporâneos como por estudiosos) foi uma perplexidade recorrente no colóquio específico ontem findo.
José Sobral preconizou que as suas vítimas teriam sido remetidas para o espaço da memória familiar, enquanto as vítimas da I Grande Mundial teriam sido lembradas pelos Estados (dias comemorativos, monumentos, placas, etc.), por se tratar do reconhecimento pela participação num esforço colectivo de índole nacional. David Killingray aludiu a outros silenciados pela academia até há pouco tempo: os pobres, as mulheres, os negros, etc.. Estas são linhas explicativas pertinentes.
Quanto ao caso português, na minha comunicação procurei alertar para o contexto político, social, cultural e científico, em particular para a conturbada conjuntura político-social então vivida. Aquelas limitaram grandemente a reflexão e combate à epidemia. A situação económico-social dos desfavorecidos era então grave: elevada subnutrição e más condições de vida facilitaram muito a difusão do vírus e o seu efeito mortal. É verdade que este tipo de doença teria um alcance interclassista, mas as assimétricas condições de vida ter-lhe-ão conferido um efeito classista. Não há muitos dados sobre isto, mas da minha pesquisa em dezenas de livros de memórias e de estudo, e na Internet, apenas consegui detectar algumas vítimas das classes médias e alta. Esta situação terá sido extensiva a outros contextos em que a maioria da população vivia em piores condições de vida: p. e., Espanha, América Latina, África do Sul, Índia e China.
Na altura, o deficiente sistema de saúde pública pouco pôde fazer. Eram poucos os hospitais, médicos e enfermeiros, não havia vacina (ainda não há...); a maioria das pessoas faleceram em suas casas, incluindo pessoas como o pintor Amadeu de Sousa Cardoso (que ainda mudou de casa, mas sem sorte). Era uma morte privada, distante dos outros e evitada por estes. A situação agravou-se com o não fecho atempado de fronteiras (a doença veio para Portugal via Espanha) e a desmobilização de milhares de soldados para as suas terras (ao arrepio das directivas da Direcção Geral de Saúde), espalhando a doença por todo o país. O governo sidonista aumentou os preços dos produtos agrícolas, agravando o acesso a bens de 1.ª necessidade. A partir daqui pouco se pôde fazer, a não ser informar sobre medidas preventivas, que nem chegavam a todo o lado, e algum auxílio social (reforço oficial da «sopa dos pobres», apoio da sociedade civil). A impotência foi, por isso, a nota dominante.
Por outro lado, a doença foi limitada no tempo e com breves picos fulminantes, tendo em Portugal atingido picos em Outubro/ Novembro e, com menor impacto, em Janeiro e Abril/ Maio. Ora, esta efemeridade dificultou a sua assimilação.
A própria imprensa foi condicionada pela censura política (instaurada pelo Presidente da República Sidónio Pais em Abril de 1918) e pela actividade do reputado epidemologista Ricardo Jorge que, em regulares notas informativas emanadas da Direcção Geral de Saúde, relativizava a situação ("surto conhecido e transitório"; ainda assim foram 14 meses e c.100 mil mortes). Ademais, a imprensa de referência era então dominada pela agenda político-partidária do establishment e pouco sensível à agenda social. A doença afectou sobretudo a população entre os 15 e os 40 anos: o sistema político e intelectual gerontocrático não foi afectado.
A impotência (dos médicos, políticos e da população), a relativa efemeridade da doença, a gerontocracia, a conjugação com a epidemia do tifo, a grande conflitualidade política e social (com repressão da oposição republicana anti-sidonista e do sindicalismo, as greves e o assassinato de Sidónio), o recolhimento junto da Igreja, a resignação e o avanço de ideias messiânicas (que Sidónio encarnou), a selecção histórica feita posteriormente pela ditadura (valorizando Sidónio e um certo país político, mas olvidando o país social e o resto), foram terreno fértil para o esquecimento, primeiro, e o silenciamento, depois. Eis um quadro que aqui deixo para reflexão. Pode não explicar tudo, mas ajuda a compreender o contexto.
Nb: imagem de mendigo pedindo esmola na beira da estrada (s.d., fotógrafo não identificado, AFML).

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

As coisas que os cientistas descobrem

Um grupo de investigadores de Cleveland, Ohio, nos EUA, produziu uma estirpe ratinho transgénico com uma capacidade física fora do comum, conforme o artigo que publicaram a 9 de Novembro no Journal of Biological Chemistry (a imagem ao lado é a capa do número da respeitada revista científica em que o artigo foi publicado). O dito transgénico, como é normal, tem um nome esquisito: PEPCK-Cmus. O PEPCK-Cmus contém nos seus músculos níveis muito mais elevados do que o normal de uma enzima envolvida na produção do açucar glucose (a Fosfoenolpiruvato Carboxiquinase, ou PEPCK para os amigos). Neste caso essa produção de glucose é feita essencialmente transformando gordura em açucar, que depois pode ser utilizado como fonte de energia. O resultado é que os ratinhos PEPCK-Cmus tem uma actividade muito superior aos animais controlo (sete vezes mais activos), conseguem correr distâncias até 6km, quando os controlos correm 200m (ver o filme abaixo), comem 60% mais embora tenham metade da massa corporal e um décimo da gordura. Até aqui, embora a performance seja impresssionante, não é propriamente inesperado que aumentando a respiração celular nos músculos, devido à maior abundância de açucares, aumente a capacidade física. Bastante mais supreendente é a descoberta que estes transgénicos têm também uma longevidade bastante superior aos controlos. Até aqui toda a investigação em envelhecimento indica que quanto maior e mais intensa for a actividade, quanto mais calorias forem queimadas, mais rápido é o envelhecimento. Vai ser interessante ver as consequências destes resultados na estudo do envelhecimento. Outro aspecto surpreendente (ou nem tanto) é o sentido do humor dos investigadores, como se pode ver não só na capa da revista mas também no vídeo que foi colocado on-line juntamente com o artigo.


quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Asa, o pequeno falcão ioruba

Nascida em Paris e criada em Lagos,
Nigéria, Asa (pronuncia-se Asha em
ioruba e significa pequeno falcão)
lançou o seu primeiro disco no final do
mês passado, na França. Com delicado
suingue na voz e uma mistura bem dosada
de vários ritmos, seu pop tem um

sabor bem particular, onde o acústico e
o elétrico se fundem sutilmente.
Sem mais comentários,
veja aqui.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

As outras globalizações: a gripe pneumónica de 1918/19

Em 1918 eclodiu uma devastadora gripe pneumónica, que rapidamente se tornou planetária. Esta pandemia foi das piores da História da humanidade: em 14 meses tirou a vida a c. de 40 milhões de pessoas, mais do dobro dos vitimados da I Guerra Mundial e c. de 1/3 da mortandade causada pela peste em 6 séculos. O médico Ricardo Jorge chamou-lhe então o "maior flagelo epidémico dos tempos modernos". Em Portugal levou entre 70 a 100 mil vidas.
No entanto, esta gripe permaneceu grandemente esquecida, tanto pelos seus contemporâneos como pelos estudiosos.
Agora esse olvido está sendo resgatado, e para isso irá contribuir o Colóquio Internacional «Olhares sobre a Pneumónica», uma iniciativa conjunta ICS e ISCTE que decorre amanhã e depois na sala polivalente do ICS-UL. Vão lá estar historiadores, antropólogos, sociólogos, médicos, etc.. Toda a informação sobre o evento está disponível aqui. Eu também falarei, amanhã de manhã. Aproveitem!
Nb: na imagem, brigada da Cruz Vermelha Portuguesa no terreno, [1918] (Arq.º Histórico da CVP).

terça-feira, 13 de novembro de 2007

1001 posts

Só para dizer que o post anterior, do Manolo, foi o milésimo post publicado aqui no Peão.

Por que te callas, Hugo Chávez?

Um assunto bastante recorrente nestes últimos dias é o bate-boca entre o rei da Espanha, Juan Carlos, e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, durante a 17ª Cimeira Ibero-americana, encerrada sábado passado em Santiago, Chile. Não vou aqui me deter sobre a polêmica em questão, pois tudo foi dito (prós e contras) sobre o sonoropor que no te callas” do rei espanhol. Que Chávez se faz de fanfarrão e personifica a imagem do político latino falastrão também não é novidade pra ninguém. O que me intriga de fato é o que o “teórico” do “socialismo do século 21” (???) não diz.

Antes de se tornar o presidente da Venezuela pelo voto direto, em 1998 (se bem que a sua primeira tentativa foi através de um golpe frustrado, em 1992), Chávez era tenente-coronel reformado do Exército, patente que conquistou por ser um soldado disciplinado, dedicado e ordeiro, requisitos básicos pra quem quer avançar na carreira militar. E como militar de alta patente também sabe o que pode e que não pode dizer aos subordinados no campo de batalha para levantar-lhes o moral.

Durante a 4ª Cimeira das Américas, realizada em Mar del Plata, Argentina, em novembro de 2005, enquanto Chávez sepultava a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) com discursos inflamados e sob o slogan “Alca, Alca, al carajo", o seu ministro da Energia e o presidente da estatal PDVSA (Petróleos da Venezuela S/A) negociavam com empresários norte-americanos a compra de 80% da produção de petróleo venezuelano. Apesar de ter mandado a Alca para o caralho, lucrou naquela altura bilhares de dólares com o desespero dos diablitos yankees [1]. Em outras palavras: ele pode negociar com os EUA, mas os demais países da América Latina não.

Chávez é propositadamente um chefe de Estado ambíguo. Depois de acabar com a Alca, começou a defender em seus discursos-efervescentes o fortalecimento dos blocos econômicos da América Latina. Chegou até formalizar o pedido de inclusão de seu país no Mercosul, na véspera do início da 16ª Cimeira Ibero-americana, realizada ano passado, em Montevidéu, no Uruguai. Pedido que foi acolhido por todos os chefes de Estados dos países-membros (mas que precisaria ser ratificado pelos respectivos Parlamentos). No dia seguinte, enquanto dava tapinhas de bom amigo nas costas do “compañero” Lula, os seus ministros de Estado se reuniam na calada da noite (bem ao estiloquinta coluna”) com o espanhol Zapatero para negociar a aquisição pela Venezuela de 20 jatinhos. Detalhe: os aviões espanhóis são mais caros e bem inferiores tecnologicamente aos produzidos pela Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica). E nessa, o Brasil ficou a ver navios .

Outra coisa que não consigo compreender em Hugo Chávez é a rapidez e o silêncio com que ele vem se armando. Tudo começou com a compra de 100 mil fuzis de assalto Kalashnikov AK-103 e AK-104, de fabricação russa. A partir daí, Chávez tem recorrido ao mercado global bélico com um apetite voraz (mas sem muito falar). Acertou com a Espanha (do rei do cala-boca) a compra de oito navios de guerra e armas leves. Da China comprou radares móveis. O pacote bélico de Chávez inclui ainda helicópteros, submarinos, mísseis terraar. A aquisição mais valiosa foi feita em meados do ano passado, quando comprou 24 caças russos Sukhoi, os aviões mais poderosos que qualquer outro hoje existente na América do Sul. Segundo o último relatório (2006) do Instituto Internacional de Pesquisas sobre a Paz de Estocolmo (Sipri), a Venezuela foi pelo segundo ano consecutivo o país da América do Sul que mais aumentou o seu gasto militar: 20% em termos reais, ou seja, recursos que ultrapassam a casa dos US$ 4 bilhões. Chávez não se cansa de repetir que quer uma América do Sul unida e forte, mas faz tudo isoladamente e às escondidas das principais lideranças do continente. Pior, tumultua todas as reuniões pra que decisões políticas importantes e pertinentes não sejam tomadas. O que ele quer na verdade (mas não diz) é trazer pra si a hegemonia regional.

Como reflexo, alguns países da América do Sul falam em reforçar os recursos para a compra de armas. São os casos específicos do Brasil e do Chile. A presidenta chilena, a socialista Michelle Bachelet, fala em passar de 3% pra 5% do PIB o seu investimento militar Por outro lado, o governo brasileiro anunciou no mês passado medidas para aumentar o potencial bélico do país (como, por exemplo, dar sequência à construção do submarino nuclear pela Marinha). O presidente Lula passou também a considerar prioritária a retomada do programa FX de compra de 12 caças modernos para a Força Aérea. Além disso, ele estuda a alocação de cerca de US$ 2 bilhões para reforçar o potencial de fogo nacional. Como se , Hugo Chávez, em nome do seusocialismo do século 21” (???), está levando a América do Sul a uma corrida armamentista sem precedentes, quando mais de 50 milhões de pessoas teimam em se manterem vivas, sem, sequer, terem acesso à água potável para as suas necessidades mais básicas. Será que este dinheiro gasto com armas não resolveria muitos problemas sociais dos latinos-americanos? Que coño, hombre! Por que te callas quando sabes bem que quem não tem petróleo está trocando comida, educação e investimentos em infra-estrutura por chumbo nesta insana corrida bélica disparada por ti. As superpotências produtoras de armas agradecem. Principalmente el diablón Bush.
..........

[1] Com o acirramento da crise diplomática entre os dois países nestes dois últimos anos, as exportações de petróleo venezuelano ao mercado americano passaram agora para 45% do total vendido ao exterior. Isto porque Hugo Chávez está tentando de todas as maneiras uma aproximação com a China, pra onde está exportando cerca de 500 mil barris diários.

Nb. Na imagem, o símbolo do Memorial da América Latina de São Paulo projetado por Oscar Niemeyer