São as ideias republicanas que sublinham as contradições da I República em Portugal: apoiou-se no povo para derrubar a monarquia, mas dispensou-o na institucionalização da República; separou as igrejas do Estado, mas não o Estado da Igreja Católica que tentou controlar, usando alguns dos meios que recebeu da monarquia constitucional; permitiu uma enorme proliferação de ideologias, algumas irremediavelmente datadas, outras que iriam marcar grande parte do século XX e continuar a ecoar no século XXI e, exceptuando o «interregno presidencial» de Sidónio Pais, a vida política do regime foi hegemonizada pelo Partido Republicano Português.
Algumas correntes monárquicas reformularam-se a partir das contradições ideológicas do republicanismo. Quando o integralismo lusitano rompeu com D. Manuel II, Hipólito Raposo justificou esta tomada de posição afirmando que a legitimidade residia na Nação e não na pessoa do Rei. Após o 28 de Maio de 1926, alguns monárquicos colocaram a hipótese de plebiscitar o regime, hipótese que foi recusada quer por D. Manuel II, quer por monárquicos como Alfredo Pimenta, o qual escreveu em Nas Vésperas do Estado Novo: «Um Rei plebiscitário é um Rei da Democracia, é um Rei do Sufrágio, é um Rei da Urna – quer dizer é um Rei dum partido, o partido que o elegeu. (…) A Monarquia plebiscitária é uma República». Os monárquicos actuais que criticam a República «porque não foi escolhida pelo povo» e defendem a restauração da monarquia por referendo deviam meditar nestas palavras. Estão a prestar, inconscientemente, homenagem aos ideais republicanos. E não esclarecem um ponto: se a monarquia fosse restaurada por referendo, por que não, passados alguns anos, submeter o regime a novo referendo que restaurasse a República? Hoje a propaganda monárquica, para ser credível junto da opinião pública portuguesa, tem de admitir a possibilidade de escolha do chefe de Estado pelo povo e da renovação dessa escolha. Ou seja, tem de defender princípios republicanos.
Há quem pense e escreva que o vigente Estado republicano, garante de uma sociedade plural, não se filia na I República. Teria nascido de geração espontânea na Revolução dos cravos ou nas primeiras eleições do actual regime. Não estou de acordo. O actual regime que garante uma sociedade plural não é a materialização de um puro projecto político, mas o resultado de um processo histórico que teve uma primeira etapa falhada na I República. O pensamento dominante dos revolucionários republicanos era positivista e previa o desaparecimento das religiões em poucas épocas. Como os católicos militantes de então esperavam a conversão de todos ao catolicismo. Uns e outros – republicanos e católicos, além da minoria que partilhava as duas identidades – tiveram de aprender a distinguir entre «tese» e «hipótese» e que o campo da cidadania teria de ser o de uma coexistência legitimada pela «hipótese». A I República foi um regime em que o PRP nunca perdeu o predomínio, mas teve católicos e monárquicos no parlamento e no senado. A Igreja Católica perdeu privilégios e direitos. No entanto, distinguindo entre a obediência aos poderes constituídos e a crítica à legislação injusta, pôde organizar-se politicamente para defender os seus direitos e interesses. A «desconfessionalização» do Estado significou a «legalização» de crenças não católicas, como o protestantismo e o judaísmo, e do direito a não ter qualquer crença religiosa. As forças políticas anarquistas e marxistas-leninistas não chegaram ao parlamento e foram objecto de repressão, mas não ilegalizadas.
A democratização e o carácter inclusivo da República, a ideia-chave do actual regime, não se baseia na negação dos princípios da I República, mas antes na vontade de evitar os seus erros. Colocar a crítica e o conhecimento ao serviço da renovação do poder e da cidadania – eis um dos mais fortes ideais republicanos.
3 comments:
Bom texto, João Miguel, assino por baixo.
Gostei particularmente da oposição entre projecto e processo histórico, dos legados, do acento no pluralismo, na crítica e no conhecimento.
Apenas um aparte, para dizer que houve alguns momentos (ainda que breves) além do sidonismo em que governaram outros partidos ou arranjos além do PD.
Uma análise excelente num texto notável.
Ainda bem que gostaram.
Abraços republicanos.
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