terça-feira, 5 de outubro de 2010

Não se poderia evocar a República sem ser com maniqueísmos?

Poderia, mas não era a mesma coisa. Para muitos dos intelectuais da direita portuguesa, a efeméride do centenário republicano tem sido um fantasma incómodo (vd., p.e., J. Pacheco Pereira, V. Pulido Valente e J. Manuel Fernandes [JMF] no Público). Depois do PREC, a revolução de 1910 tornou-se na nova bête noire dos neo-conservadores de plantão. No subtexto, parece estar a intenção de rejeitar qualquer menção positiva a tudo o que cheire vagamente a decorrências da revolução e do espírito progressista.
Os legados não são para ser pensados na sua complexidade, mas sim naquilo que podem ajudar a um exercício de crítica do governo vigente e de recusa de ganhos políticos, sociais ou culturais susceptíveis de ser partilhados com a esquerda.
Sem preocupações de exaustividade, vejamos alguns marcos positivos do legado da I República e do republicanismo:
1) instauração do Estado laico, com a separação deste em relação à Igreja católica, aspecto que hoje já começa a ser valorizado até por eclesiásticos (D. Carlos Azevedo: "A República deu à Igreja mais liberdade"), mas não pelos neo-cons, que apenas tocam a tecla dos excessos anti-clericais;
2) instauração das liberdades fundamentais (de reunião, associação, imprensa, etc.), que, apesar dalguns excessos repressivos (censura militar durante a «Grande Guerra», assalto a redacções, suspensão de jornais, etc.) era um salto qualitativo face ao passado, e, mesmo reduzindo demagogicamente a questão à liberdade de imprensa, esta não foi «mais livre» na monarquia constitucional, como defende JMF – basta estudar um pouco o período, ou acompanhar os bonecos do Rafael Bordalo Pinheiro, para se perceber como a esfera pública era bem mais limitada;
3) legislação social, desde a lei do divórcio à jornada laboral de 8 horas diárias;
4) mesmo no sector educativo, a verdade é que, se há defeito a apontar à I República, não é o de ter primado pelo «facilitismo» (numa espécie de precursora das Novas Oportunidades) mas sim pela complexidade, ampliando os curricula do ensino primário e o n.º de anos, o que encareceu o ensino e reduziu o universo de habilitações.
Dito isto, houve aspectos muito negativos, a começar pelo regime eleitoral restrito, passando pela perseguição ao movimento operário e acabando nos excessos nacionalistas, como a participação na I Guerra Mundial, a obsessão colonial e a desnacionalização de cidadãos (súbditos alemães e seus aliados).

Podia ainda falar na questão da desistência quanto a uma organização político-administrativa mais próxima das comunidades, deixando cair bandeiras do republicanismo histórico como o federalismo (e a regionalização) aquando da nova constituição. Mas esses são aspectos que a direita portuguesa prefere não abordar, pois também está de acordo com um Estado centralista que é um dos entraves a uma maior democratização do país.

É caso para dizer: as elites conservadoras mudam menos que a própria sociedade.

E fico-me por aqui, pois também me apetece ir festejar. O lado positivo, claro.

2 comments:

jrd disse...

Tudo o que assinalou, não passa de "detalhes" para os que, por muito que dissimulem, não conseguem negar a sua condição de bastardos do antigo regime.
Festejemos pois!

Daniel Melo disse...

Para alguns, a história é apenas um entretém para os seus jogos de poder.
Isto é só fumaça, como diria o inefável Pinheiro de Azevedo.