«Os biógrafos (e os historiadores) um dia irão aos arquivos das associações, de instituições particulares, oficiais ou oficializadas, socorrer-se-ão de testemunhos pessoais, dos arquivos da PIDE/DGS (se ainda existirem), devassarão múltiplas fontes. Irão, sobretudo, à Imprensa na busca de intervenções, artigos, entrevistas, reportagens sobre determinados acontecimentos sociais, públicos, políticos, culturais, relatos de conferências, colóquios. Pois bem. Os biógrafos quando pretenderem lançar mão dessas fontes ficarão desapontados com a rasura do nome de Carlos de Oliveira. E, no entanto, se em Portugal houve escritores empenhados na vida cultural, literária e política do país, um deles foi precisamente Carlos de Oliveira. Só que a sua actuação se desenvolveu quase silenciosamente. Diluía-se, corria de manso. Sem alardes ou ostentação. Não por medo, nem razão havia, em muitos casos, para isso. Um certo pudor, uma espécie de anti-evidência. Negava-se a entrevistas (duas em sua vida?); escusava-se a colóquios; escassíssimos os artigos que escreveu. E sempre que podia furtava-se ao contacto público, a menos que a sua presença fosse entendida como indispensável.
A forma do seu empenhamento cívico corria sob o disfarce da discreção».
A forma do seu empenhamento cívico corria sob o disfarce da discreção».
(Manuel Ferreira,
«Um firme empenhamento cívico»,
Vértice, n.º 450/1, 1982, p.596/7)
Soneto
Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.
Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.
Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.
A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.
Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.
Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.
Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.
A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.
Nb: a acompanhar pelo poema «Colagem», de 1968.
2 comments:
RECADO PARA O CARLOS
Foram vários a partir,
vários a abandonar hábitos
máscaras aspirinas, o deserto
sem lacuna dos dias.
Lá onde estás, chegaste antes de mim.
O sítio deve ser mais asseado,
Guarda-me um lugar perto de ti.
21.X.82
Eugénio de Andrade
(Vértice, n.º 450/1,1982, pag.606)
Comovente evocação!
Não sabia que o Eugénio fora amigo próximo do Carlos de Oliveira.
Pensando bem, a referência às coisas elementares, há algo de 'naturista' (panteísta?) em ambos. Bem como de humanista.
Obrigado por essa recordação, jrd.
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