sábado, 17 de abril de 2010

A história no congelador

O caso Garzón, que aqui referi na etapa de começo de julgamento e subsequente mobilização cidadã em sua defesa, é um lamentável folhetim já com algum lastro, como daqui se pode depreender.

Agora, são vários os jornalistas, comentadores e políticos que condenam o mesmo juiz Garzón que antes hiperbolizavam pelo seu afã contra o ditador Pinochet (terá sido diferente de Franco?), o terrorismo basco ou contra a corrupção. Não estava à espera que um jornalista como Nuno Ribeiro, que aprecio e costumo ler, se juntasse (com este comentário) a esse coro dos conformistas no apelo inaudito à congelação da história. Vejamos porquê.

Os críticos do juiz Garzón sustentam que este se propõe fazer uma abusiva condenação retrospectiva de crimes políticos, pois a tipificação de «crimes contra a Humanidade» surgiu apenas com o julgamento de Nuremberga, no pós-II Guerra Mundial, para julgar os crimes nazis. Estes críticos estão errados. Não se trata de nenhum anacronismo, a repressão franquista continuou para além da derrota do Governo legítimo republicano espanhol, até 1952, donde, já se enquadra na moldura dos crimes contra a Humanidade. Depois, a Convenção de Genebra é dos anos 20 e também foi ignorada pelos insubmissos franquistas aquando da Guerra civil que eles mesmos provocaram.

É pacífico que o lado republicano também cometeu atrocidades, e concordo que, nestes casos, as suas vítimas devem também ser consideradas vítimas e não apenas «falecidos», mas a questão não é essa, pois estes tiveram direito a enterro e a reconhecimento pelo Estado franquista. Já os do outro lado, não. São os seus familiares e outros cidadãos que se organizaram em associações cívicas de recuperação da memória para reivindicarem um direito legítimo e compreensível, o dos seus entes queridos terem o direito a um enterro condigno e ao reconhecimento da sua morte indigna. Em paralelo, uma parte da sociedade civil espanhola tem pressionado no sentido duma condenação oficial do regime franquista por causa da sua violência e ilegitimidade. As investigações judiciais poderão comprovar a existência duma política sistemática de perseguição e repressão política durante c. de 20 anos, e isso poderá levar a considerar o regime franquista como um regime genocida. Se assim for, qual é o drama? Não se deve procurar o esclarecimento sobre as maiores atrocidades? E a justiça, nem que seja simbólica?
Alegam os críticos que a lei da amnistia de 1977 proibiu condenações de abusos e crimes e que o Pacto de Transição pôs uma pedra neste assunto. Também não colhe. A lei da amnistia não englobou os «crimes contra a Humanidade», os quais não prescrevem, e não é a guerra civil em concreto que está em causa, ao contrário do que insinua o editorial do Público de hoje.

E o pacto de transição, tal como o nome indica, foi um compromisso político conjuntural efectuado pelas elites, com vista a assegurar a legitimação política do novo regime democrático, mostrando como os espanhóis conseguiam criar e viver numa democracia estável e respeitadora, assim afastando definitivamente o fantasma agitado pelo franquismo durante décadas a fio. Essa conjuntura acabou, e já há muito que tal pacto foi rasgado, mais concretamente na campanha para as eleições de 1993, precisamente pelo PSOE. A Lei da Memória Histórica foi um destes marcos, mas muitos outros existem. Neste caso, Garzón limitou-se a corresponder a pedidos da sociedade civil organizada. Já tinha feito o mesmo no caso Pinochet. Nessa altura o coro de críticos foi bem menor. Estranho, não é?
Quanto à adesão popular a esta questão, importa dizer que na sequência da abertura do processo ao franquismo por Garzón, o El País fez uma sondagem on line aos seus leitores, que teve quase 20 mil aderentes, tendo 70% apoiado a posição do super-juiz (vd. aqui). Também o El País criou, então, um oportuno dossiê temático sobre a memória histórica, que pode ser consultado aqui.

4 comments:

Shyznogud disse...

Caso não tenhas lido ainda, Daniel:

http://jornal.publico.pt/noticia/17-04-2010/os-kaczynski-e-o-juiz-garzon-19191277.htm

jrd disse...

Querem branquear a História em nome de uma 'Paz' sem Memória.

Daniel Melo disse...

Shyz,
obrigado pelo link.

Li o texto entretanto: nada tenho a emendar, embora concorde que este é um tema difícil. Jorge Almeida Fernandes, que escreve textos de qualidade respaldado em leituras de diversas fontes, já tinha escrito sobre o tema, e nada adianta (já a crónica de hoje de Vasco Pulido Valente é um texto inesperadamente mais sobrepesado que o de JAF, não omitindo o contexto histórico próximo e distante).
A comparação com o caso polaco parece-me despropositado.
Os argumentos dele, se bem que bem sintetizados, não me convencem nem vejo preocupação da parte dele para debate os do campo oposto.
Até a opinião do historiador Santos Juliá é repetida de há uns anos atrás (vd. o meu post http://avezdopeao.blogspot.com/2008/10/histria-memria-poltica-e-justia.html), confundindo que não se trata de impor uma memória colectiva oficial mas sim de honrar a democracia, a sua memória e a dos que a defenderam, sobretudo quando foi derrubada, destruída, amesquinhada e vilipendiada durante tanto tempo e por tantos.
Sim, as sociedades democráticas são feitas de conflito político. Foi o PSOE que inscreveu o tema na agenda.
No final, uma citação apressada de P. Ricoeur, «a decisão cabe ao cidadão». Nem mais.

Dito isto, tudo o que ajude a debater este tema parece-me importante, mesmo que sejam só recapitulações. Há sempre modo de aprofundar os argumentos, aditar informação ou derivar por novos ângulos.

Daniel Melo disse...

jrd, é isso e um pouco mais (sendo o 'pouco mais' o julgamento como advertência dissuasora para não se agitar certos assuntos que incomodam certos poderes).