quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A velhice: o fim do fardo de Sísifo, segundo Joan Margarit

Num belo poema do catalão Joan Margarit, a velhice é vista como «uma espécie de pós-guerra».

Em entrevista que passou na RTP2 («Bairro Alto»), o poeta desenvolveu esta ideia interessante, que eu nunca topara. Para Margarit, a velhice é como se fosse a interrupção do mito de Sísifo, pondo fim à condenação pelos deuses de ter de empurrar sem cessar uma rocha até ao cimo duma montanha, donde a pedra voltava a cair, e assim indefinidamente.

Para os velhos cessou a canseira, a canseira da guerra, ou seja, o fardo do futuro. Já pouco haverá de futuro, sobrando o presente e o pretérito. Como ele diz na entrevista: «Ser velho é a vida deixar-nos com muito passado e muito pouco futuro, e o futuro é onde estão as cargas. [...] Acaba-se o futuro, o peso do futuro, esse peso tantas vezes inútil que a pessoa jovem e madura é tantas vezes obrigada a carregar como a pedra de Sísifo [...] Há um momento em que essa pedra desaparece. Esta idade é maravilhosa». Quanto aos refúgios (ou casas da misericórdia), os verdadeiros são poucos, e um deles é justamente a poesia. A entrevista pode ser acompanhada aqui, o poema a que aludo no começo vem transcrito em baixo.

Ser Velho

Entre as sombras daqueles galos e cães
dos quintais e currais de Sanaüja,
há um buraco de tempo perdido e chuva suja
que vê os meninos ir contra a morte.
Ser velho é uma espécie de pós-guerra.
Sentados à mesa da cozinha
em noites de braseiro a escolher lentilhas
vejo os que me amavam.
Tão pobres que no fim daquela guerra
tiveram de vender a miserável
porção de vinha e o casarão gélido.
Ser velho é a guerra já ter acabado.
Saber onde estão os refúgios, agora inúteis.

Casa da Misericórdia, Ovni, 2009

6 comments:

jrd disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
jrd disse...

É quando a pedra desaparece que a vida deixa de rolar.

Daniel Melo disse...

Já calculava que houvesse opiniões diferentes quanto ao calhau e seu significado.
E quanto aos refúgios?

jrd disse...

Quanto aos refúgios. Um silêncio de pedra.

Paula Tomé disse...

Daniel, vi a entrevista que adorei, obrigada por divulgares. A pedra, é o que é, às vezes é bem bom andar com ela às costas. Mas gostei sobretudo da ideia dos refúgios, da diferença entre arte e entretenimento, da reflexão sobre poesia e literatura e sobre as dificuldades que a democracia encontra, porque em última instância a educação pode ser um direito de todos, mas a elevação intelectual é um esforço pessoal, solitário e difícil, exige muito mais do que a educação formal. Achei-o bastante platónico na busca de verdade, da Ideia, da essência que unifica o intérprete e o compositor. "Food for thought"...

Daniel Melo disse...

Embora atrasado, não quero deixar de dizer que também gostei do resto da entrevista.
Uma coisa que achei particularmente interessante foi ele ter considerado o leitor de poesia como um intérprete, integrando na sua leitura todas as suas experiências, saber e subjectividade, superando-se assim a mera recepção passiva que se costuma associar ao 'receptor' de bens culturais.