sábado, 15 de janeiro de 2011

Mistérios de Lisboa - o livro

O filme Mistérios de Lisboa de Raul Ruiz conduziu-me para as páginas de Mistérios de Lisboa, o romance de Camilo Castelo Branco. A adaptação do livro acentua os aspectos fantásticos e oníricos que estão mais presentes neste título do que noutros, mas não de uma forma evidente. Menos fantástico do que o filme, o livro consegue ter um enredo mais mirabolante, personagens mais trágicas e um negrume com laivos de humor.

Na polémica tradicional entre «camilianos e «queirosianos», Camilo é por vezes apresentado como um autor passional contra um Eça de Queirós «cerebral». O que não é exacto, pois os primeiros e grandes romances de Eça, O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio são bastante passionais, romances de amores funestos onde se mata ou morre por excesso de amor ou de crueldade. A grande diferença é que as personagens de Eça – mesmo as mais trabalhadas como o padre Amaro ou a criada Juliana – dão um corpo a tipos sociais. Sabemos donde eles vêm e quando caem a sua trajectória é em grande parte explicada por razões sociológicas e psicológicas. A origem de muitas personagens de Camilo é obscura e pode sempre surpreender-nos. E a vida das personagens está sujeita a constantes mudanças interiores e exteriores. A qualquer momento podem enriquecer, cair na miséria, apaixonar-se, naufragar, mudar de nome e de profissão, converter-se ou perder-se. Eça pretende ser «objetivo», realista, na análise dos males da sociedade. Camilo usa a sua imaginação prodigiosa para exprimir os tormentos de múltiplas personagens indissociáveis de um mal estar social. Eça coloca-se acima das suas personagens. Camilo declara que as conhece do inferno – o que é metafórico – ou da prisão – o que foi por vezes factual.

Mistérios de Lisboa foi publicado em 1853, aos 29 anos, pelo autor que escreveria, em 1862, Coração, Cabeça e Estômago. A obra de 1953 é um expoente da fase do coração, que é uma das suas imagens recorrentes: «A suprema desgraça é o coração grande, a riqueza dos brios, o instinto do sublime, quando estes generosos sentimentos, esterilizados no embrião da pobreza, são como se não existissem.» (Livro Segundo, Capítulo II); «O que devia decidi-lo não eram os conselhos paternais do velho ministro de Luís XVIII; mas o coração, motor despótico de todas as molas da máquina humana, esse sim.» (Quarto, XII).

Eça podia, inicialmente, achar que era mais moderno do que Camilo por estar mais a par da filosofia, da política e da civilização europeia do seu tempo. Hoje sabemos que a modernidade de ambos está na suspeição precursora das verdades inquestionáveis acerca do homem e do seu papel na sociedade. Declara o padre Dinis, personagem de Mistérios..., à volta da qual se desenvolvem todos os enredos: «- Quem sou!...Duquesa, essa pergunta é-me feita há mais de cinquenta anos, tenho-me consultado para responder a ela, e nunca respondi ao meu próprio desejo de saber quem sou…» (Quarto, X). E interroga-se Alberto Magalhães, um dos nomes de uma personagem que finta sempre o destino até à tragédia final: «Quem eu sou? Pergunte-o à sociedade, e adopte a explicação que mais lhe convenha. Se me obriga a responder, por mim, digo-lhe que sou um misto de virtudes e de crimes.» (Quarto, XX)

1 comments:

Daniel Melo disse...

Além de bom crítico de cinema, também crítico literário? O que te falta? Escrever um romance?

Mais um excelente texto, que nos faz querer ir à fonte. Que mais se pode pedir?

Só um detalhe: também já li nos media sobre essa divisão entre queirosianos e camilianos, mas ignoro se isso tem correspondência quanto à perspectiva dos estudiosos de literatura.