A segunda edição revista e aumentada de Um escritor confessa-se de Aquilino Ribeiro (1885-1963) foi publicada em 2008 e lida por mim ao sabor do centenário da I República. A primeira edição deste texto autobiográfico de Aquilino Ribeiro saiu, postumamente, em Junho de 1974. A intenção original do autor era publicá-lo em 1961 mas, no contexto da perseguição que a ditadura lhe moveu por causa do romance Quando os lobos uivam, decidiu adiar a saída do texto. Em 1963 despedia-se de uma vida que deixou muito por contar.
O seu relato termina em 1908, a sair de Lisboa rumo a Paris - «com a minha “valise”, o meu monóculo a armar ao janota, tomei o trem de luxo. Em Salamanca entraram um cardeal e um grande de Espanha. Passada a fronteira, lá para Bayonne, subiram duas bonitas francesinhas. Ao Diabo a sisudez e o medo da vida!»
A «confissão» de Aquilino é o relato da transformação de um bárbaro (a expressão é dele) vindo das Beiras no homem de letras que se licenciará em Filosofia em Paris e casará com a filha de um advogado e banqueiro alemão. Um trajecto escrito com linhas muito tortas: estuda para a «carreira eclesiástica» em Viseu e no seminário de Beja, desiste de ser padre e abraça as ideias do livre-pensamento e do republicanismo, vagueando pela plebe de Lisboa e pela aldeia dos pais. Ganha a vida escrevendo traduções que não assina. Em casa dos pais, na Beira, justifica a cama e a roupa lavada dedicando-se à caça. Em Lisboa adere à Carbonária, uma organização que conspirava para derrubar a monarquia, e conhece de perto os regicidas Buíça e Alfredo Costa. Dá-se também com conspiradores revolucionários que não passarão à História pois morrem quando montam bombas no quarto alugado de Aquilino e se dá uma explosão. Ojovem proletário das letras é preso. As peripécias do julgamento e da passagem pela prisão, donde foge, são contadas com minúcia.
Aquando da transladação dos restos mortais de Aquilino para o Panteão, criou-se uma polémica, pois há quem o considere um regicida, ou pelo menos, um cúmplice do assassinato de D. Carlos I. Aquilino não se acusa e não me parece que reescreva a sua história com medo das represálias. A propósito da identificação de um homem que julga implicado no homicídio do rei escreve: «Se ainda é vivo, pode dormir a sono solto. Já lá vão 54 anos. Prescreveu.»
Apesar da metaformose do «bárbaro» em «janota» parisiense, Aquilino recusa o olhar de superioridade sobre o povo e a sociedade portuguesa, característico de tantos intelectuais do seu tempo e de todos os tempos. Antes se compraz em enriquecer o texto com vocábulos populares, em acentuar que é feito do mesmo barro que todos os outros e se escapou do atoleiro foi porque «Valeu-me sonhar que é um modo de propiciar as coisas e abrir o caminho à vontade.» As suas venturas e desventuras são contadas num tom picaresco. O «monóculo a armar ao janota» é o disfarce de um Sancho Pança erudito e inteligente.
3 comments:
Palavras para quê? São dois artistas lusitanos, escritor e 'recenseador'.
Clap, clap, clap!
As Terras do Demo deram-nos um dos maiores escritores da nossa História.
Mais algumas notas sobre o «verdadeiro artista», o das Terras do Demo. Da vasta obra de Aquilino Ribeiro há dois livrinhos que são clássicos e bastante acessíveis: «O Malhadinhas» e «Romance da Raposa». Este último uma história infantil, o primeiro livro de Aquilino que li.
Aquilino ficcionalizou algumas peripécias da sua juventude em dois romances: «Via Sinuosa» e «Lápides Partidas». Fica a suspeita de que algumas estórias apresentadas como ficção nestes romances são factuais. E que algums diálogos de «Um escritor confessa-se», escritos mais de meio século depois de terem acontecido, são mais inventados do que recordados.
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