«Chegámos a Lisboa na manhã tépida, de céu ambarizado por um sol que há cinquenta anos a esta parte era raro faltar à cidade que deixou de ser de mármore e granito para ser, no seu maior dimensional, de tijolo mal cozido e cimento roubado. E, conduzidos por Costa Nunes, fomo-nos hospedar no Hotel Portugal, que fazia esquina para o Largo do Pelourinho. O meu quarto era no terceiro andar. Eu via com olhos, não pasmados, que nunca soube o que era pasmo, mas abertos à compreensão, as grandes e amarelas tartarugas dos carros eléctricos vir rolando dos lados do Terreiro do Paço, tilintantes e pletóricas de gente. Logo após vinha o carro do Chora, com o automedonte de longos bigodes retorcidos a reger de chicote vivaz o tiro de três machos pimpões, o condutor de boné de pala, e atropeladamente naquela arca de Noé peixeiras, vendedeiras de hortaliça e de coelhos mansos, operários com suas ferramentas, em suma, segundo o termo das Ordenações Manuelinas, os misquinhos duma capital. O bulício ficava muito aquém do sonhado, embora me desse uma ideia numérica de disparidade em comparação com as ruas Formosa ou Direita, de Viseu. Mas a Câmara de tão bela frontaria, o pelourinho especioso, coroado pela esfera armilar, os prédios de roqueira solidez, incutiam a noção de capital dum reino, batida pelo tempo, com a velha epopeia impressa em suas pedras e arruados. Todavia não pressenti o sumptuoso, nem o deliquescente duma urbe meridional, de que os poetas e romancistas faziam cavalo de batalha nas suas especulações cantarizadas. Antes havia nela, nos habitantes, no céu, nas coisas, uma sobriedade afável que era grata de sentir. E por isto tudo, por essa desilusão literária, e porque representava para mim um degrau montante na escala dos conhecimentos, fiquei a adorar Lisboa desde esse dia.»
Aquilino Ribeiro, Um Escritor Confessa-se, Lisboa, Bertrand Editora, 2008, pp. 46-47.
2 comments:
Ele ficou a adorar Lisboa e Lisboa, a que lia, ficou a adorá-lo.
E a quem está desterrado, o texto bonito enche de saudades!
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