terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A democracia musculada (duas interpretações)

Tinha prometido no final deste post uma cronologia dos acontecimentos na minha universidade, mas fui não fazendo, não fazendo, até a coisa se diluir um bocado no meu espírito. E também na realidade: desde a semana passada a vida em Rennes 2 voltou à normalidade, por meio de uma nova espécie de "democracia musculada": a maioria, que já se tinha manifestado em referendo, entrou nas partes ocupadas da universidade por uma minoria, e foi-se reapropriando delas, sem violência, ao longo de vários dias. Se tiverem curiosidade, podem ler os inúmeros comunicados da presidência da instituição, que dão uma ideia do que foi acontecendo, a partir, claro, de um ponto de vista específico. Desde que o bloqueio terminou, passou a ser possível um debate crítico na universidade sobre a nova lei.

Entretanto, ontem o nosso Sarkozy foi a Argel e fez um belo discurso pós-colonial, cheio de trabalho da memória, reparação das injustiças e o diabo a sete. É o mesmo que na semana passada, e a propósito dos tumultos em Villiers-le-Bel, voltou a usar a retórica dos "voyous" (vadios, marginais), como já tinha usado a da "racaille" (escória) quando era ministro das polícias.

(O que critico aqui, como já tinha feito o Zèd ali em baixo, não é a perseguição dos responsáveis pelos crimes cometidos; é o facto de essa ser sempre a única resposta para um problema que vai continuar depois das expeditas prisões e condenações; e é o facto de a linguagem insultuosa de Sarkozy se dirigir implicitamente, como toda a gente sabe, a toda uma parte da população. Enquanto não há culpados apurados pela justiça, enquanto os inquéritos ao conjunto dos incidentes não estão feitos, o presidente-crs vai lançando insultos que se dirigem não só aos autores de crimes mas a toda a população lumpen, etnicamente discriminada, dos subúrbios)

Ontem foi pós-colonial o nosso Sarkozas! Quando nos últimos anos tem vivido de alimentar o ranço neocolonial.

Qual será o verdadeiro Sarkozy? O de Argel ou o amigo das interpelações de rua a jovens negros ou com cara de magrebinos? Ou será ele esquizofrénico? Ou seremos nós os esquizofrénicos por não o sabermos/podermos combater?


PS: A propósito, sobre o assunto da discriminação em França, de etnias e de classe, recomendo um livro muito bom, muito justo e ponderado, muito explicativo (não justificativo, é para compreender mesmo...). De Robert Castel, saído há pouco, "La discrimination positive". É este aqui

2 comments:

Zèd disse...

Será o nosso Sarkozy o do discurso racista em Dakar, Julho passado (http://www.liberation.fr/rebonds/dicoursdesarkozyadakar/270247.FR.php) Ou será o que no discurso da vitória eleitoral afirmou que o arrependimento histórico (na altura foi assim que se referiu ao dever de memória) é uma forma de ódio de si, que é como quem diz da pátria?

André quer-me parecer que não levas do Sarkozas de Argel muito a sério pois não? Eu também não.

Zèd disse...

Tinha-me esquecido, o Sarkozy também apoiou aquela lei que falava do "papel positivo da colonização" que gerou tanta confusão que foi retirada.