segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Citações fora de contexto ainda é c'm'ó outro, agora truncadas é que é mais grave...

Há o essencial e o acessório. Nesta estória do papa Ratzinger e da Universidade La Sapienza o essencial é a questão da liberdade de expressão. O Vasco Barreto, o Joao Pinto e Castro, o Daniel Oliveira e o Rui Tavares (e provavelmente outros mais) disseram o que havia dizer sobre o essencial: não foi a Universidade que retirou o convite, foi Ratzinger que recusou, se quisesse expressar as suas opiniões podia tê-lo feito. O acessório é a questão do processo de Galileu, ou melhor o discurso de Ratzinger de 1990 sobre esse processo. Também se tem escrito na blogosfera sobre o assunto mas há ainda sumo para espremer.
Foi com grande surpresa que soube estes dias que Ratzinger houvera citado Feyerabend (disclaimer: de longe o meu filósofo de ciência preferido) para legitimar a sua leitura do processo de Galileu. Não podia eu imaginar duas posições mais distantes. Como diz Rui Tavares, é o anti-relativista Ratzinger a socorrer-se das palavras do mais radical dos relativistas, Feyerabend. Graças aos bons ofícios de João Pinto e Castro encontrei o tal discurso de Ratzinger em 1990, e a sua citação de Feyerabend.

“The church at the time of Galileo was much more faithful to reason than Galileo himself, and also took into consideration the ethical and social consequences of Galileo’s doctrine. Its verdict against Gaileo was rational and just, and revisionism can be legitimized solely for motives of political opportunism.”

Esta citação soava-me a familiar. No livro "Contra o Método" (Relógio d'Água, 1993) Feyerabend usa precisamente o caso de Galileu para exemplificar as suas teorias epistemológicas. Lá fui desencantá-lo da prateleira. No início da cada capítulo o Feyerabend usa, em estilo de epígrafe, um resumo das ideias chave desse mesmo capítulo, uma ou duas frases. Encontrei isto como resumo do capítulo 13:

"A Igreja na época de Galileu não só se manteve mais próxima da razão tal como esta era ao tempo e, em parte ainda hoje é, definida: levou também em conta as consequências éticas e sociais dos pontos de vista de Galileu. A sua condenação de Galileu foi racional e só o oportunismo e a ausência de perspectiva podem reclamar a sua revisão"

A primeira coisa que salta à vista - porque eu tive o cuidado de usar o negrito e aumentar o tamanho da letra - é uma pequena discrepância entre a minha edição portuguesa do "Contra o Método" e a citação no tal discurso de Ratzinger. E faz muita diferença? Oh se faz! Naquela pequena sequência de palavras, que Ratzinger omite, Feyerabend RELATIVIZA a sua afirmação. Quando diz que a Igreja fez uso da razão e é justa, remete para o universo da Europa do século XVII quando a Inquisição fazia ainda lei. As consequências sociais que refere era precisamente destabilizar o poder da Igreja e da Inquisição. Será esse universo que Ratzinger quer tormar absoluto? Para perceber a argumentação de Feyerabend, no seu contexto, o melhor é mesmo ler o capítulo 13 do "Contra o Método" (e de caminho o resto do livro), e/ou mais este post de João Pinto e Castro (não há 2 sem 3).

E para colocar mesmo Feyeradend no seu contexto nada como o resumo da Introdução de "Contra o Método", e digam-me se ele alinha pelo mesmo diapasão que Ratzinger.

"A Ciência é um epreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teórico é mais humano e mais susceptível de encorajar o progresso do que as alternativas respeitadoras da lei e da ordem"

4 comments:

L. Rodrigues disse...

Ou como diria Von Braun:

"Research is what I'm doing when I don't know what I'm doing."

Daniel Melo disse...

Só mesmo tu, Zèd, para descobrires estes detalhes.
Detalhes decisivos,
como nos policiais...

Zèd disse...

Dis-se-ia que não tenho mais nada para fazer :-)

Afonso Mesquita disse...

Bem observado.