O badalado documentário de Kusturica sobre Maradona teve ante-estreia em Portugal no passado sábado, quase a fechar o DocLisboa.
O realizador sérvio avisa no filme que vamos ver 3 Maradonas, o profe da bola, o cidadão anti-Bush e o homem de família. Faltou aditar um 4.º Maradona: o Maradona-Kusturica. De facto, no início teme-se o pior: uma ego-trip do cineasta, como se fosse um documentário sobre uma relação e não sobre uma pessoa. Aos poucos, o realizador-entrevistador vai dando mais espaço ao protagonista, mas ainda assim exagerando na sua presença (não só física, também 'espiritual', através de constantes comentários off e on e de excertos de filmes seus inscrutados no documentário, à guisa de paralelo com a vida de Maradona).
Esta atitude vai a contracorrente da filmografia kusturicana, centrada nas personagens, em muitas personagens, e toda ela ficcional. Tal contraste contraproducente acaba por penalizar este filme. Nota-se que Emir, como lhe chama Maradona, não está à-vontade no documentário, e que quis imitar um mestre do género, Michael Moore. Erro óbvio: Moore é assumidamente provocador e não faz Biografias (nesse particular, limita-se a dar a voz às histórias que as pessoas lhe querem contar). Por outro lado, descuidou a pesquisa, cuja lacuna mais evidente é a falta de referências à passagem de Maradona por Nápoles, afinal uma das partes mais importantes da sua vida e carreira. Uma visita recente de El Pibe a Nápoles é o único registo, e, ainda assim, focando-se na recepção alucinada de tiffosi e simpatizantes.
Dito isto, o documentário tem vários motivos de interesse, sobretudo na ligação entre futebol e política. Desde logo, permite rever alguns dos melhores golos da história do futebol à luz do enquadramento dado pelo entrevistado. Aqui, destaca-se a vitória da selecção argentina sobre a Inglaterra no Mundial de 1986, apresentada como a desforra simbólica dos mais fracos sobre os poderosos, os imperialistas. O mote está dado. A mensagem de Maradona é muito política, vem de ter vivido entre os pobres, mas também de ter visto as injustiças no mundo, entre nações. É curioso verificar, porém, que a Guerra das Malvinas a que alude deveu-se ao delírio nacionalista duma sanguinária ditadura militar, por muito compreensível que fosse a reivindicação desse território por parte da Argentina e por muito brutal que tenha sido a resposta inglesa.
El Pibe condensa um certo imaginário latino-americano de esquerda e anti-imperalista, e admite-o abertamente, o que é raro entre os futebolistas de hoje. Fã de Che Guevera e Fidel, de quem fez tatuagens no corpo, diz que este último é o único político decente que conheceu, pela defesa firme que faz do seu povo. O Maradona cívico surge ainda ao lado de Chavez e Morales, numa grande manifestação anti-Guerra do Iraque. E na chamada de atenção para o marco de viragem que foram os motins no Mar de Plata, contra os acordos ALCA. O ataque cerrado contra a política belicista e unilateralista do consulado Bush aproxima-o de Kusturica, lixado com a política ocidental quanto à questão do Kosovo, apesar de se assumir como pró-ocidental (no contexto duma Sérvia belicosa e eslavófila, mas também abalroada por uma geopolítica implacável).
Já o Maradona íntimo foi mais difícil de abordar. A sua viciação na cocaína e as recaídas implicaram o seu alheamento parental e marital, algo apresentado como uma mágoa e frustração irreversível. O que é dito e mostrado a este respeito evidencia como os ídolos também são feitos da mesma massa do comum dos mortais. Neste aspecto, a parte relativa à Igreja Maradoniana é, sobretudo, um pretexto para parodiar os excessos das mitomanias, das idolatrias.
No fim, vem um dos melhores momentos do filme, Manu Chao cantando a Maradona a vida deste ("Si yo fuera Maradona"), e, também, cantando para nós todos - "La vida es una tómbola"... No fim, fica um homem cujo dom para a arte da bola, e cujo temperamento e personalidade, o tornaram uma fonte de sonhos para muitos outros. Capaz de os fazer sonhar, capaz de os tirar da normalidade rotineira e alienante do dia-a-dia dos nossos tempos.
Ao fim de 3 atribulados anos, Kusturica conseguiu acabar o documentário sobre um dos seus ídolos. Ao fim de muitos mais conseguiu Maradona realizar um sonho antigo: o de ser seleccionador nacional da Argentina, notícia hoje dada pelos media. Boa sorte para ele, desde que não vença Portugal (se lá chegarmos, claro).
2 comments:
Salve, Daniel.
Bela análise. Infelizmente, o filme ainda não pousou aqui em Pindorama. Fico a espera. Só um detalhe: por seu comportamento meio que libertário, creio que não será um bom selecionador. Aguardemos, pois.
Por aqui, também ainda faltarão umas semanas para entrar no circuito comercial.
Quanto ao Maradona-mister da Argentina, concordo contigo, vai ser imprevisível, até pela sua experiência como treinador: em 23 encontros que orientou no Mandiyú (em 1994) e no Racing Avellaneda (1995), apenas venceu 3, tendo obtido 12 empates e 8 derrotas. A ver vamos se os deuses o ajudam, e o Carlos Bilardo, também...
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