As políticas da memória voltaram ao debate público internacional, e isso devido a 3 motivos principais: ao apelo lançado pelo historiador Pierre Nora para travar os excessos das leis anti-negacionismo; à abertura dum inquérito judicial sobre a repressão franquista; e à condenação de dirigentes militares por assassinatos políticos perpetrados durante as ditaduras militares argentina e chilena.
O 1.º pretende evitar que os historiadores sejam criminalizados pelas suas interpretações do passado, e é uma resposta à decisão do Parlamento Europeu (de 2007) que propõe considerar como delito de "banalização grosseira" (ou de "cumplicidade na banalização") os implicados ou apologistas de "genocídios, crimes de guerra com carácter racista e crimes contra a Humanidade", passível de pena de prisão e independentemente da época dos crimes e da autoridade política, administrativa ou judicial que os tome como provados. O contexto principal desta controvérsia remete para França, pelo facto daí já existirem uma série de leis específicas: lei Gayssot (1990, contra o negacionismo do Holocausto nazi), lei do reconhecimento do genocídio dos arménios (2001) e a lei Taubira, que qualifica de crime contra a Humanidade o tráfico e a escravatura efectuados pelos ocidentais no contexto colonial (sobre o assunto vd. Jorge Almeida Fernandes, "Garzón e os historiadores em cólera", Público de hoje, p.10-P2).
Pese apenas conhecer os seus contornos, concordo com esta tomada de posição, que, porém, não apaga o facto de muitos países europeus já proibirem a organização e/ou difusão de ideologia racista e/ou fascista.
O 2.º caso já aqui foi referido, e prende-se com a consideração pela suprema instância judicial espanhola da sua competência para averiguar sobre os desaparecidos vítimas da repressão franquista, estimados em c. de 114 mil pessoas, e para se proceder à abertura dalgumas valas comuns onde foram enterrados.
Neste caso, os seus críticos sustentam que o juiz Garzón propõe-se fazer uma abusiva condenação retrospectiva de crimes políticos, pois a tipificação de «crimes contra a Humanidade» surgiu apenas com o julgamento de Nuremberga, no pós-II Guerra Mundial, para julgar os crimes nazis. Estes críticos estão errados. Não se trata de nenhum anacronismo, a repressão franquista continuou para além da derrota do Governo legítimo republicano espanhol, até 1952, portanto, já se enquadra naquela moldura. Depois, a Convenção de Genebra é dos anos 20 e também foi ignorada pelos insubmissos franquistas aquando da guerra civil. É pacífico que o lado republicano também cometeu atrocidades, e concordo que, nestes casos, as suas vítimas devem também ser consideradas vítimas e não apenas «falecidos», mas a questão não é essa, pois estes tiveram direito a enterro e a reconhecimento pelo Estado franquista. Já os do outro lado, não. São os seus familiares e outros cidadãos que se organizaram em associações cívicas de recuperação da memória para reivindicarem um direito legítimo e compreensível, o dos seus entes queridos terem o direito a um enterro condigno e ao reconhecimento da sua morte indigna. Em paralelo, uma parte da sociedade civil espanhola tem pressionado no sentido duma condenação oficial do regime franquista por causa da sua violência e ilegitimidade. As investigações judiciais poderão comprovar a existência duma política sistemática de perseguição e repressão política durante c. de 20 anos, e isso poderá levar a considerar o regime franquista como um regime genocida. Se assim for, qual é o drama? Não se deve procurar o esclarecimento sobre as maiores atrocidades? E a justiça, nem que seja simbólica?
Alegam os críticos que a lei da amnistia de 1977 proibiu condenações de abusos e crimes e que o Pacto de Transição pôs uma pedra neste assunto. Também não colhe. A lei da amnistia não englobou os «crimes contra a Humanidade», os quais não prescrevem, e não é a guerra civil em concreto que está em causa, ao contrário do que defende o historiador Santos Juliá, citado e secundado pelo colunista Jorge Almeida Fernandes no já referido artigo. E o pacto de transição, tal como o nome indica, foi um compromisso político conjuntural efectuado pelas elites, com vista a assegurar a legitimação política do novo regime democrático, mostrando como os espanhóis conseguiam criar e viver numa democracia estável e respeitadora, assim afastando definitivamente o fantasma agitado pelo franquismo durante décadas a fio. Essa conjuntura acabou, e já há muito que tal pacto foi rasgado, mais concretamente na campanha para as eleições de 1993, precisamente pelo PSOE. A Lei da Memória Histórica foi um destes marcos, mas muitos outros existem. Neste caso, Garzón limitou-se a corresponder a pedidos da sociedade civil organizada. Já tinha feito o mesmo no caso Pinochet. Nessa altura o coro de críticos foi bem menor. Estranho, não é?
O último assunto é a condenação de oficiais superiores de ditaduras latino-americanas militares, primeiro na Argentina, agora no Chile. Na Argentina, o gen. Luciano Menéndez foi condenado a prisão perpétua por crimes cometidos durante a ditadura, num dos maiores campos de detenção clandestinos da época (vd. aqui). Já no início do ano, haviam sido afastados de funções docentes e de assessoria oficiais almirantes da reserva Roberto Pertussio e Miguel Troitiño, e ao capitão da reserva Hugo Santillán, por envolvimento na repressão ilegal pela ditadura militar instaurada em 1976 (vd. aqui). Outras condenações se seguiram (vd. aqui). No Chile, o Supremo Tribunal de Santiago condenou o gen. Sérgio Arellano Stark a 6 anos de prisão por homicídio qualificado, devido ao assassinato sumário de militantes de esquerda (caso da «Caravana da morte»: vd. aqui).
Isto representou a condenação simbólica, política e judicial das antigas ditaduras militares, após muitos anos de resistências e bloqueios (de que é elucidativo o caso Pinochet, que morreu antes de se conseguir levar a julgamento, por desatinos e cumplicidades várias).
Uma democracia tem o direito, e o dever, de condenar regimes anteriores que tenham sido ditatoriais e que, por isso, tenham perpetrado repressão política, social e cultural, e de condenar e/ou criminalizar parte desses actos, de acordo com as leis em vigor, tanto nacionais como internacionais. Tal deve, aliás, fazer parte dum saudável exercício de pedagogia democrática. E é um imperativo ético.
O 1.º pretende evitar que os historiadores sejam criminalizados pelas suas interpretações do passado, e é uma resposta à decisão do Parlamento Europeu (de 2007) que propõe considerar como delito de "banalização grosseira" (ou de "cumplicidade na banalização") os implicados ou apologistas de "genocídios, crimes de guerra com carácter racista e crimes contra a Humanidade", passível de pena de prisão e independentemente da época dos crimes e da autoridade política, administrativa ou judicial que os tome como provados. O contexto principal desta controvérsia remete para França, pelo facto daí já existirem uma série de leis específicas: lei Gayssot (1990, contra o negacionismo do Holocausto nazi), lei do reconhecimento do genocídio dos arménios (2001) e a lei Taubira, que qualifica de crime contra a Humanidade o tráfico e a escravatura efectuados pelos ocidentais no contexto colonial (sobre o assunto vd. Jorge Almeida Fernandes, "Garzón e os historiadores em cólera", Público de hoje, p.10-P2).
Pese apenas conhecer os seus contornos, concordo com esta tomada de posição, que, porém, não apaga o facto de muitos países europeus já proibirem a organização e/ou difusão de ideologia racista e/ou fascista.
O 2.º caso já aqui foi referido, e prende-se com a consideração pela suprema instância judicial espanhola da sua competência para averiguar sobre os desaparecidos vítimas da repressão franquista, estimados em c. de 114 mil pessoas, e para se proceder à abertura dalgumas valas comuns onde foram enterrados.
Neste caso, os seus críticos sustentam que o juiz Garzón propõe-se fazer uma abusiva condenação retrospectiva de crimes políticos, pois a tipificação de «crimes contra a Humanidade» surgiu apenas com o julgamento de Nuremberga, no pós-II Guerra Mundial, para julgar os crimes nazis. Estes críticos estão errados. Não se trata de nenhum anacronismo, a repressão franquista continuou para além da derrota do Governo legítimo republicano espanhol, até 1952, portanto, já se enquadra naquela moldura. Depois, a Convenção de Genebra é dos anos 20 e também foi ignorada pelos insubmissos franquistas aquando da guerra civil. É pacífico que o lado republicano também cometeu atrocidades, e concordo que, nestes casos, as suas vítimas devem também ser consideradas vítimas e não apenas «falecidos», mas a questão não é essa, pois estes tiveram direito a enterro e a reconhecimento pelo Estado franquista. Já os do outro lado, não. São os seus familiares e outros cidadãos que se organizaram em associações cívicas de recuperação da memória para reivindicarem um direito legítimo e compreensível, o dos seus entes queridos terem o direito a um enterro condigno e ao reconhecimento da sua morte indigna. Em paralelo, uma parte da sociedade civil espanhola tem pressionado no sentido duma condenação oficial do regime franquista por causa da sua violência e ilegitimidade. As investigações judiciais poderão comprovar a existência duma política sistemática de perseguição e repressão política durante c. de 20 anos, e isso poderá levar a considerar o regime franquista como um regime genocida. Se assim for, qual é o drama? Não se deve procurar o esclarecimento sobre as maiores atrocidades? E a justiça, nem que seja simbólica?
Alegam os críticos que a lei da amnistia de 1977 proibiu condenações de abusos e crimes e que o Pacto de Transição pôs uma pedra neste assunto. Também não colhe. A lei da amnistia não englobou os «crimes contra a Humanidade», os quais não prescrevem, e não é a guerra civil em concreto que está em causa, ao contrário do que defende o historiador Santos Juliá, citado e secundado pelo colunista Jorge Almeida Fernandes no já referido artigo. E o pacto de transição, tal como o nome indica, foi um compromisso político conjuntural efectuado pelas elites, com vista a assegurar a legitimação política do novo regime democrático, mostrando como os espanhóis conseguiam criar e viver numa democracia estável e respeitadora, assim afastando definitivamente o fantasma agitado pelo franquismo durante décadas a fio. Essa conjuntura acabou, e já há muito que tal pacto foi rasgado, mais concretamente na campanha para as eleições de 1993, precisamente pelo PSOE. A Lei da Memória Histórica foi um destes marcos, mas muitos outros existem. Neste caso, Garzón limitou-se a corresponder a pedidos da sociedade civil organizada. Já tinha feito o mesmo no caso Pinochet. Nessa altura o coro de críticos foi bem menor. Estranho, não é?
O último assunto é a condenação de oficiais superiores de ditaduras latino-americanas militares, primeiro na Argentina, agora no Chile. Na Argentina, o gen. Luciano Menéndez foi condenado a prisão perpétua por crimes cometidos durante a ditadura, num dos maiores campos de detenção clandestinos da época (vd. aqui). Já no início do ano, haviam sido afastados de funções docentes e de assessoria oficiais almirantes da reserva Roberto Pertussio e Miguel Troitiño, e ao capitão da reserva Hugo Santillán, por envolvimento na repressão ilegal pela ditadura militar instaurada em 1976 (vd. aqui). Outras condenações se seguiram (vd. aqui). No Chile, o Supremo Tribunal de Santiago condenou o gen. Sérgio Arellano Stark a 6 anos de prisão por homicídio qualificado, devido ao assassinato sumário de militantes de esquerda (caso da «Caravana da morte»: vd. aqui).
Isto representou a condenação simbólica, política e judicial das antigas ditaduras militares, após muitos anos de resistências e bloqueios (de que é elucidativo o caso Pinochet, que morreu antes de se conseguir levar a julgamento, por desatinos e cumplicidades várias).
Uma democracia tem o direito, e o dever, de condenar regimes anteriores que tenham sido ditatoriais e que, por isso, tenham perpetrado repressão política, social e cultural, e de condenar e/ou criminalizar parte desses actos, de acordo com as leis em vigor, tanto nacionais como internacionais. Tal deve, aliás, fazer parte dum saudável exercício de pedagogia democrática. E é um imperativo ético.
2 comments:
Por que denunciamos os crimes do franquismo?
Durante 33 anos de democracia em Espanha, as elites politicas fixeron todo o posível para que os crimes do franquismo permanecesen ocultos. Eliminaron documentaçao, impediron que os investigadores accedesemos os arquivos da repressao e non deixaron que a voz das vítimas se escoitase en pé de igualdade cos que durante corenta anos de ditadura contaron uma e outra vez a súa historia. Por iso, avanzado o século XXI, a xeración dos netos da guerra civil, a primeira xeración plenamente democrática na historia de Espanha, organizada en ducias de asociacións da memoria histórica reclama da xustiza espanhola que se pronuncie sobre os milleiros de desaparicións forzadas, detencións ilegais, torturas, asasinatos masivos e sistemáticos producidos a partir do 17 de xullo de 1936. Sabemos que é moi tarde, pero a sociedade espanhola non estivo preparada antes para abordar un xuízo sobre os terribeis crimes do franquismo. É hora de que se faga
Obrigado, Ángel, pela recapitulação do essencial que está em questão.
E obrigado pelo vosso empenhamento cívico. As vítimas do franquismo merecem-no, em nome da dignidade humana.
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