quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Capitalismo, uma história mal contada

É caixa-de-óculos, gordalhufo, usa jeans xxl e tem um andar desajeitado. Além disso, fala sobre coisas chatas como trabalho, dignidade, justiça social, desigualdades, etc.. Um cromo destes só pode ser um incómodo, claro.

Capitalism: a love story é o seu último filme. A recepção foi desigual, indiferente à adesão nos cinemas, urbi et orbi. Por mim, considero-o o melhor filme que vi em 2009, mais, um dos melhores de sempre.

Vou tentar explicar porquê. Um dos pontos mais fortes do documentário (sim, porque é um documentário, se virmos o género sem espartilhos tecnicisto-formais) é o ponto onde começa: Flint, berço do cineasta e satélite da todo-poderosa General Motors, que se torna cidade-fantasma mal esta sai de lá, por razões meramente economicistas. Foi por aí que Michael Moore começou a sua carreira, com Roger & me (sendo Roger o presidente da GM a quem ele nunca consegue chegar à fala), um documentário cru sobre a devastação da sua cidade-natal, assim qualquer coisa como uma cidade do tamanho de Aveiro. No presente Capitalism, vemos o pai de Moore a confessar-nos que, enquanto operário dessa multinacional nos idos de 50-70, o ambiente de trabalho era bom, tinha férias pagas, automóvel, casa, qualidade de vida, etc.. Hoje, tudo isso está em risco para esse e outros grupos sociais...

Para Moore, criado no ideal norte-americano, de terra de oportunidades para todos, de prosperidade (ainda que desigual), a actual situação de descalabro financeiro-económico, de engodo, de desigualdades extremas, é um autêntico pesadelo. É esta a tese central do filme: também ele, um tipo de esquerda, acreditou que a América era uma terra de esperança, e agora apercebe-se de que tinha acreditado numa mera encenação, numa grande ilusão. A crise financeira e económico-social recente é apenas um apropriado locus do dia: o problema é bem mais fundo. Wall Street e os seus interesses comandam as vidas de todos nós, prejudicando-nos; pior, eles manobram os próprios representantes do povo para beneficiar interesses privados, em detrimento do interesse público.

Além disso, o filme tem momentos inesperadamente dolorosos, mesmo para o mais impedernido dos cépticos, como o caso dos seguros sobre a morte de empregados de empresas (sim, o dinheiro do seguro de morte apenas revertia para essas empresas, @s viúv@s ficavam a ver navios).

3 comments:

João Miguel Almeida disse...

Também vi e até estava a pensar escrever sobre o filme, mas saiu-me uma coisa demasiado longa. Aproveito no entanto algumas ideias neste comentário e talvez num post com uma digressão que me suscitou essa história dos seguros de morte.
Algumas notas:
a) é curioso começares por falar no «cromo Michael Moore». É que por acaso recebi como prenda de Natal alguns DVD's com as primeiras temporadas da série «Columbo». Eu tinha uma vaga ideia da personagem do Columbo e do actor Peter Falk. Agora vi a série com outros olhos. Recomendo vivamente.
Michael Moore está para o documentário como o «tenente Columbo» para o género policial. É a mesma «persona» desajeitada a «fazer o seu trabalho» para descobrir a verdade e desmascarar as mentiras montadas para cobrir crimes cometidos por personagens vaidosas e prepotentes.
b) Achei piada o Michael Moore mostrar dois padres e um bispo a concordarem com ele. É uma visão inesperada do catolicismo norte-americano. Reconforta quem anda, como eu, a estudar, entre outras coisas, a História do catolicismo político porque mostra que o seu objecto continua activo e a desafiar as percepções, representações e teorias sobre ele.

Daniel Melo disse...

O detective Columbo, bem lembrado!!
Também já tenho essa caixa e gosto (já gostava da série na altura em que passou na tv).

A comparação com Moore está deliciosa.

Quanto aos sacerdotes progressistas, também apreciei e só demonstra que a igreja pode também ela ser plural, e, já agora, mais próxima das pessoas comuns.

Boas entradas!

João Miguel Almeida disse...

Boas entradas e bom 2010!