quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Um discurso perigoso de Sarkozy

Num texto publicado no «Le Monde» (ver aqui), Nicolas Sarkozy pronuncia-se sobre a interdição dos minaretes na Suíça num tom ilusoriamente moderado e potencialmente perigoso. O perigo consiste em três confusões que fortalecem a extrema-direita.
Em primeiro lugar confunde a legitimidade do referendo em França sobre a Constituição europeia em 2005 com a legitimidade de um referendo sobre a construção de edifícios religiosos de uma minoria. E acusa os críticos do referendo suíço de «desconfiarem do povo». A minha resposta é simples: no primeiro caso os franceses pronunciaram-se sobre um texto que iria afectar a sua vida. No segundo caso a maioria dos votantes decidiu sobre a vida religiosa de outras pessoas. Invocar o povo para confundir os dois casos é desonesto. O povo deve decidir sobre o que lhe diz respeito. Pelas mesmas razões acharia bem, ainda que não seja costume, que o «povo» de uma religião (uma comunidade religiosa) decidisse por voto como é que devem ser construídos os seus edifícios religiosos. Absurdo é que decida como devem ser construídos os edifícios de outra comunidade menos numerosa.
Em segundo lugar expõe uma bizarra concepção de direitos humanos. Sarkozy escreve do seguinte modo o seu ponto de vista: «Les peuples d'Europe sont accueillants, sont tolérants, c'est dans leur nature et dans leur culture. Mais ils ne veulent pas que leur cadre de vie, leur mode de pensée et de relations sociales soient dénaturés. Et le sentiment de perdre son identité peut être une cause de profonde souffrance.» O direito humano que preocupa Sarkozy é o dos povos europeus conservarem a sua identidade naturalmente acolhedora e tolerante. Qualquer pessoa que estude a História da Europa na primeira metade do século XX, incluindo a do regime de Vichy, não conseguirá engolir esta visão. A tolerância europeia foi o resultado de uma Guerra Mundial, não brota como as flores nos prados. Pior ainda é Sarkozy não associar os sentimentos de perda de identidade e os sofrimentos respectivos às mudanças sociais, à crise económica, às mutações tecnológicas, mas referir a questão apenas do contexto da presença em França de minorias religiosas – neste caso um eufemismo para o islão.
Em terceiro lugar, a sua crítica à «ostentação e provocação religiosa» e o seu apelo a uma prática religiosa discreta esconde uma discriminação. Por que raio é que um minarete há-de ser «ostensivo» e uma peregrinação a Lourdes não? Sarkozy usa a «identidade nacional» da França para definir o que é religiosamente correcto. E para deslocar o debate de questões económicas e sociais para o da imigração e da relação com minorias religiosas. Onde é que eu já li isto?

3 comments:

Daniel Melo disse...

Esmiuçaste isso bem, caramba!

Só um pequeno àparte, lateral: independentemente da justa recusa de intromissão nos assuntos internos de cada comunidade, a questão dos edifícios pode ser debatida, tem a ver com a inserção no espaço urbano, que é de todos, e com regras urbanísticas, etc.. Daí eu ter-me envolvido na polémica do novo edifício do Troufa Real, acho que aquilo ali choca com o edificado envolvente e tem uma volumetria e altura excessivas, aliás isso mesmo disse-o o responsável pelo Plano de Urbanização do Restelo, o arq.º N. T. Pereira.

João Miguel Almeida disse...

Daniel,

Eu concordo contigo. A ideia da democracia é as pessoas decidirem sobre questões que lhes dizem respeito. É deturpar esta ideia pôr as pessoas a decidir sobre questões que não lhes dizem respeito. Mas a democracia exerce-se a diferentes escalas.
Eu acho legítimo que os lisboetas em geral e os habitantes da freguesia onde Troufa Real pretende construir a sua igreja se pronunciem sobre aspectos estéticos e urbanísticos do novo edifício. Não acharia legítimo era que se pronunciassem sobre os símbolos religiosos da igreja ou sobre os dias em que se deve celebrar missa.

Daniel Melo disse...

Eu diria mesmo mais, João Miguel, concordo contigo também.
Nada mais tenho a acrescentar, a não ser reiterar que acho o teu post muito oportuno e argumentado.