quarta-feira, 16 de abril de 2008

Ainda as imagens mentais II

Continuando o post de ontem. O debate anda à volta do artigo publicado na revista Nature pela equipa de Jack L. Gallant, da U. C. Berkley. O artigo começa logo por declarar "A challenging goal in neuroscience is to be able to read out, or decode, mental content from brain activity." (um desafio central em neurociências é ser capaz de apreender, ou descodificar, conteúdo mental a partir da actividade cerebral), sem dúvida ambicioso. O artigo demonstra ser possível a partir de imagens de ressonância magnética funcional (fRMI) do cérebro de um indivíduo deduzir que tipo de imagens ele está a visualizar (isto numa determinada situação experimental). Dois indivíduos visualizaram uma série de imagens enquanto eram observados por fRMI, e a partir deste primeiro conjunto de observações elaborou-se um algoritmo que estabelece um padrão. Num segundo tempo os mesmos indivíduos são observados novamente por fRMI enquanto visualizam imagens que não tinham visto antes. Com o algoritmo tenta-se determinar que imagens estão a ser visualizadas. A eficiência, para um conjunto de 120 imagens foi de 92% num caso e 72% no outro, a probabilidade de acertar por acaso era de 0,8%. Isto quer dizer que com uma eficiência apreciável o algoritmo, analisando o fRMI, consegue determinar que tipo de imagem um indivíduo está a ver, sem ter que lhe perguntar (o que é, tanto quanto sei, um resultado muito inovador). Ou seja é possível olhando para um padrão de actividade cerebral deduzir as imagens que esse cérebro está a processar. Será isto uma imagem mental? Segundo a notícia no Público, de Ana Gerschenfeld, trata-se de facto de imagens mentais (e, a meu ver, bem).

Fernando Belo discorda:
"(...) não é possível dizer desta experiência que se trata de ‘fotografar imagens mentais’, só há imagens fotográficas exteriores e imagens de ecrã da actividade neuronal. E por conseguinte também não é possível, nem creio que fosse o intento dos autores, provar com ela que ‘há’ imagens mentais."
"(...)no cérebro o que há são células, química e electricidade iónica (que interage com a química). Palavras, músicas, imagens, tudo isso é exterior e ‘percebido’ por certos órgãos periféricos que os transformam em electricidade neuronal."

Sem querer transformar o debate numa mera questão semântica, parece-me que o significado da palavra imagem é central nesta discussão. Convém definir claramente o que se entende por imagem. Se entendermos por imagem uma representação visual de um objecto, então as imagens mentais existem. Uma fotografia de uma bola é uma imagem, a bola é o objecto. A fotografia, seja ela uma película de negativo, uma impressão em papel, ou um ficheiro JPEG é sempre uma imagem, é sempre uma representação do objecto. Então e se forem sinapses em vez de grãos de prata em película ou bytes em JPEG, é menos imagem por isso? Como Fernando Belo refere há a percepção do objecto que é exterior, até dada altura. A luz que é emitida pela bola e captada pela retina é exterior até precisamente ao momento em que é captada pela retina, mas até aí não há representação do objecto, apenas a primeira fase (por assim dizer) da percepção. E de cada vez que evocamos a imagem da bola sem que ela esteja à nossa vista, mas que conseguimos visualizá-la mentalmente há uma imagem (por maioria de razão) mental que se forma, tal como se fizermos duplo-clique no icon do ficheiro JPEG há uma imagem digital que se forma.

Sem surpresa a única coisa que Castro Caldas diz de interessante (cf. o post de ontem) é quando se digna argumentar: "Quando Fernando Belo diz que no cérebro só há células, química e electricidade, está a ser extraordinariamente reducionista." De facto a imagem de que no cérebro só há células, química e electricidade é algo redutora. É como dizer que o motor de um carro é só cilindros, porcas, parafuso, cambotas, óleo e gasolina. Sim é tudo isso, mas um motor parado é só isso, e um motor parado não nos interessa muito. O que nos interessa é perceber como funciona o motor, quando está em movimento. Assim também o cérebro é células, química e electricidade, mas é também os seus processos: a transmissão sináptica, a formação de sinapses, os potenciais de acção, etc... É isso que o artigo de Gallant consegue demonstrar pela primeira vez: que determinados padrões de actividade neuronal correspondem a determinadas imagens. Por isso o título da notícia de Ana Gerschenfeld "Cientistas fotografam imagens mentais" é tão certeiro. Uma fotografia, ou um padrão de actividade cerebral, podem ser uma imagem e um objecto ao mesmo tempo. Pode obter-se portanto uma imagem duma imagem (fotografar imagens). O artigo da equipa de Gallant mostra imagens de fRMI de imagens mentais, como muito pouca resolução obviamente (por enquanto). É como se se fizesse uma radiografia de uma máquina fotográfica para perceber como ela funciona, enquanto ela própria gera imagens fotográficas.

A argumentação de Fernando Belo é estimulante, e espero ter dado alguma resposta. Já este post de João Galamba, ainda sobre o mesmo tema, é-me mais difícil perceber. Parece-me uma recusa liminar de uma abordagem científica do estudo da mente, apenas porque sim. E porque não? Quais mistificações? Por que raio não há-se ser a mente passível deste tipo de abordagem? É um objecto de estudo como outro qualquer. Parece-me aliás bastante plausível que a actividade neuronal seja bem mais do que suficiente para explicar a mente humana, sem recurso a explicações metafísicas (sim, sou profundamente materialista).

Nota: A imagem é retirada do artigo da equipa de Gallant.

1 comments:

Joao Galamba disse...

Zéd,

Peço desculpa mas só vi este post agora. Eu não digo apenas "porque não". Se ler os meus posts com atenção e, sobretudo, os comentários vai ver que a minha posição é de outra natureza.

A mente é caracterizada por intencionalidade, o que faz com que ela não possa ser tratada como um objecto. A intencionalidade significa que ela é constituida por relações normativas de significado (algo totalmente diferente de relações causais) com o mundo que lhe é exterior, o que faz com que o paradigma interior-exterior deixe se ser uma dicotomia.

O problema da ciência é que ela pressupõe a noção de objecto (sem o qual não há ciência), e isso distorce a natureza da mente. Antes de se estudar o que quer que seja é necessario clarificar a ontologia subjacente ao nosso estudo. Ora isto é coisa que a ciência não faz nem pode fazer, pela simples razão que ela própria necessariamente pressupõe uma ontologia.

A discussão é longa, mas acredite que se há coisa que eu não faço é dogmaticamente dizer que não.