Continuando o post de ontem. O debate anda à volta do artigo publicado na revista Nature pela equipa de Jack L. Gallant, da U. C. Berkley. O artigo começa logo por declarar "A challenging goal in neuroscience is to be able to read out, or decode, mental content from brain activity." (um desafio central em neurociências é ser capaz de apreender, ou descodificar, conteúdo mental a partir da actividade cerebral), sem dúvida ambicioso. O artigo demonstra ser possível a partir de imagens de ressonância magnética funcional (fRMI) do cérebro de um indivíduo deduzir que tipo de imagens ele está a visualizar (isto numa determinada situação experimental). Dois indivíduos visualizaram uma série de imagens enquanto eram observados por fRMI, e a partir deste primeiro conjunto de observações elaborou-se um algoritmo que estabelece um padrão. Num segundo tempo os mesmos indivíduos são observados novamente por fRMI enquanto visualizam imagens que não tinham visto antes. Com o algoritmo tenta-se determinar que imagens estão a ser visualizadas. A eficiência, para um conjunto de 120 imagens foi de 92% num caso e 72% no outro, a probabilidade de acertar por acaso era de 0,8%. Isto quer dizer que com uma eficiência apreciável o algoritmo, analisando o fRMI, consegue determinar que tipo de imagem um indivíduo está a ver, sem ter que lhe perguntar (o que é, tanto quanto sei, um resultado muito inovador). Ou seja é possível olhando para um padrão de actividade cerebral deduzir as imagens que esse cérebro está a processar. Será isto uma imagem mental? Segundo a notícia no Público, de Ana Gerschenfeld, trata-se de facto de imagens mentais (e, a meu ver, bem).
Fernando Belo discorda:
"(...) não é possível dizer desta experiência que se trata de ‘fotografar imagens mentais’, só há imagens fotográficas exteriores e imagens de ecrã da actividade neuronal. E por conseguinte também não é possível, nem creio que fosse o intento dos autores, provar com ela que ‘há’ imagens mentais."
"(...)no cérebro o que há são células, química e electricidade iónica (que interage com a química). Palavras, músicas, imagens, tudo isso é exterior e ‘percebido’ por certos órgãos periféricos que os transformam em electricidade neuronal."
Sem querer transformar o debate numa mera questão semântica, parece-me que o significado da palavra imagem é central nesta discussão. Convém definir claramente o que se entende por imagem. Se entendermos por imagem uma representação visual de um objecto, então as imagens mentais existem. Uma fotografia de uma bola é uma imagem, a bola é o objecto. A fotografia, seja ela uma película de negativo, uma impressão em papel, ou um ficheiro JPEG é sempre uma imagem, é sempre uma representação do objecto. Então e se forem sinapses em vez de grãos de prata em película ou bytes em JPEG, é menos imagem por isso? Como Fernando Belo refere há a percepção do objecto que é exterior, até dada altura. A luz que é emitida pela bola e captada pela retina é exterior até precisamente ao momento em que é captada pela retina, mas até aí não há representação do objecto, apenas a primeira fase (por assim dizer) da percepção. E de cada vez que evocamos a imagem da bola sem que ela esteja à nossa vista, mas que conseguimos visualizá-la mentalmente há uma imagem (por maioria de razão) mental que se forma, tal como se fizermos duplo-clique no icon do ficheiro JPEG há uma imagem digital que se forma.
Sem surpresa a única coisa que Castro Caldas diz de interessante (cf. o post de ontem) é quando se digna argumentar: "Quando Fernando Belo diz que no cérebro só há células, química e electricidade, está a ser extraordinariamente reducionista." De facto a imagem de que no cérebro só há células, química e electricidade é algo redutora. É como dizer que o motor de um carro é só cilindros, porcas, parafuso, cambotas, óleo e gasolina. Sim é tudo isso, mas um motor parado é só isso, e um motor parado não nos interessa muito. O que nos interessa é perceber como funciona o motor, quando está em movimento. Assim também o cérebro é células, química e electricidade, mas é também os seus processos: a transmissão sináptica, a formação de sinapses, os potenciais de acção, etc... É isso que o artigo de Gallant consegue demonstrar pela primeira vez: que determinados padrões de actividade neuronal correspondem a determinadas imagens. Por isso o título da notícia de Ana Gerschenfeld "Cientistas fotografam imagens mentais" é tão certeiro. Uma fotografia, ou um padrão de actividade cerebral, podem ser uma imagem e um objecto ao mesmo tempo. Pode obter-se portanto uma imagem duma imagem (fotografar imagens). O artigo da equipa de Gallant mostra imagens de fRMI de imagens mentais, como muito pouca resolução obviamente (por enquanto). É como se se fizesse uma radiografia de uma máquina fotográfica para perceber como ela funciona, enquanto ela própria gera imagens fotográficas.
A argumentação de Fernando Belo é estimulante, e espero ter dado alguma resposta. Já este post de João Galamba, ainda sobre o mesmo tema, é-me mais difícil perceber. Parece-me uma recusa liminar de uma abordagem científica do estudo da mente, apenas porque sim. E porque não? Quais mistificações? Por que raio não há-se ser a mente passível deste tipo de abordagem? É um objecto de estudo como outro qualquer. Parece-me aliás bastante plausível que a actividade neuronal seja bem mais do que suficiente para explicar a mente humana, sem recurso a explicações metafísicas (sim, sou profundamente materialista).
Nota: A imagem é retirada do artigo da equipa de Gallant.
Fernando Belo discorda:
"(...) não é possível dizer desta experiência que se trata de ‘fotografar imagens mentais’, só há imagens fotográficas exteriores e imagens de ecrã da actividade neuronal. E por conseguinte também não é possível, nem creio que fosse o intento dos autores, provar com ela que ‘há’ imagens mentais."
"(...)no cérebro o que há são células, química e electricidade iónica (que interage com a química). Palavras, músicas, imagens, tudo isso é exterior e ‘percebido’ por certos órgãos periféricos que os transformam em electricidade neuronal."
Sem querer transformar o debate numa mera questão semântica, parece-me que o significado da palavra imagem é central nesta discussão. Convém definir claramente o que se entende por imagem. Se entendermos por imagem uma representação visual de um objecto, então as imagens mentais existem. Uma fotografia de uma bola é uma imagem, a bola é o objecto. A fotografia, seja ela uma película de negativo, uma impressão em papel, ou um ficheiro JPEG é sempre uma imagem, é sempre uma representação do objecto. Então e se forem sinapses em vez de grãos de prata em película ou bytes em JPEG, é menos imagem por isso? Como Fernando Belo refere há a percepção do objecto que é exterior, até dada altura. A luz que é emitida pela bola e captada pela retina é exterior até precisamente ao momento em que é captada pela retina, mas até aí não há representação do objecto, apenas a primeira fase (por assim dizer) da percepção. E de cada vez que evocamos a imagem da bola sem que ela esteja à nossa vista, mas que conseguimos visualizá-la mentalmente há uma imagem (por maioria de razão) mental que se forma, tal como se fizermos duplo-clique no icon do ficheiro JPEG há uma imagem digital que se forma.
Sem surpresa a única coisa que Castro Caldas diz de interessante (cf. o post de ontem) é quando se digna argumentar: "Quando Fernando Belo diz que no cérebro só há células, química e electricidade, está a ser extraordinariamente reducionista." De facto a imagem de que no cérebro só há células, química e electricidade é algo redutora. É como dizer que o motor de um carro é só cilindros, porcas, parafuso, cambotas, óleo e gasolina. Sim é tudo isso, mas um motor parado é só isso, e um motor parado não nos interessa muito. O que nos interessa é perceber como funciona o motor, quando está em movimento. Assim também o cérebro é células, química e electricidade, mas é também os seus processos: a transmissão sináptica, a formação de sinapses, os potenciais de acção, etc... É isso que o artigo de Gallant consegue demonstrar pela primeira vez: que determinados padrões de actividade neuronal correspondem a determinadas imagens. Por isso o título da notícia de Ana Gerschenfeld "Cientistas fotografam imagens mentais" é tão certeiro. Uma fotografia, ou um padrão de actividade cerebral, podem ser uma imagem e um objecto ao mesmo tempo. Pode obter-se portanto uma imagem duma imagem (fotografar imagens). O artigo da equipa de Gallant mostra imagens de fRMI de imagens mentais, como muito pouca resolução obviamente (por enquanto). É como se se fizesse uma radiografia de uma máquina fotográfica para perceber como ela funciona, enquanto ela própria gera imagens fotográficas.
A argumentação de Fernando Belo é estimulante, e espero ter dado alguma resposta. Já este post de João Galamba, ainda sobre o mesmo tema, é-me mais difícil perceber. Parece-me uma recusa liminar de uma abordagem científica do estudo da mente, apenas porque sim. E porque não? Quais mistificações? Por que raio não há-se ser a mente passível deste tipo de abordagem? É um objecto de estudo como outro qualquer. Parece-me aliás bastante plausível que a actividade neuronal seja bem mais do que suficiente para explicar a mente humana, sem recurso a explicações metafísicas (sim, sou profundamente materialista).
Nota: A imagem é retirada do artigo da equipa de Gallant.
1 comments:
Zéd,
Peço desculpa mas só vi este post agora. Eu não digo apenas "porque não". Se ler os meus posts com atenção e, sobretudo, os comentários vai ver que a minha posição é de outra natureza.
A mente é caracterizada por intencionalidade, o que faz com que ela não possa ser tratada como um objecto. A intencionalidade significa que ela é constituida por relações normativas de significado (algo totalmente diferente de relações causais) com o mundo que lhe é exterior, o que faz com que o paradigma interior-exterior deixe se ser uma dicotomia.
O problema da ciência é que ela pressupõe a noção de objecto (sem o qual não há ciência), e isso distorce a natureza da mente. Antes de se estudar o que quer que seja é necessario clarificar a ontologia subjacente ao nosso estudo. Ora isto é coisa que a ciência não faz nem pode fazer, pela simples razão que ela própria necessariamente pressupõe uma ontologia.
A discussão é longa, mas acredite que se há coisa que eu não faço é dogmaticamente dizer que não.
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