segunda-feira, 28 de abril de 2008

Ainda as imagens mentais (IV)

Embora me pareça que as nossas posições sejam diferentes, e estejam bem patentes, tenho ainda alguns comentários a fazer ao excelente post de Fernando Belo a respeito das imagens mentais. Correndo o risco que repetir alguns argumentos, não podia deixar de responder.

Primeiro tenho que reconhecer que o artigo de Gallant e colaboradores, de que temos estado a falar, não constitui uma demonstração formal da existência de imagens mentais. O artigo demonstra que, utilizando imagens de ressonância magnética e algoritmos apropriados, é possível modelizar com uma grau de aproximação muito apreciável os padrões de actividade cerebral quando o cérebro está a processar imagens que os olhos estão a ver. As imagens de ressonância magnética mostram apenas padrões de actividade cerebral. Fernando Belo prefere chamar-lhes, e bem, imagens cerebrais. No entanto, não sendo uma demonstração formal de que as imagens mentais existem, e menos ainda a visualização dessas imagens mentais. Se as imagens de ressonância, devidamente auxiliadas por um algoritmo, revelam ou não a existência de imagens mentais é uma questão de interpretação. Pela minha parte penso que os resultados são coerentes com a existência de imagens mentais. Se não o posso prová-lo, tampouco alguém o pode refutar formalmente, com base em observações empíricas. Estamos portanto no terreno do desconhecido, onde a especulação faz parte do processo de interpretação. É bom que se saiba, e que seja afirmado claramente, e as precauções necessárias devem ser tomadas. Isto é apenas uma opinião, ninguém tem que acreditar.

Apetece-me evocar aqui - desviando-me brevemente da discussão - a descoberta científica que, na minha humilde opinião, mais implicações filosóficas tem: princípio da incerteza de Heisenberg. Demonstra esse princípio que o observador não pode ter a percepção do 'verdadeiro' objecto, mas apenas a percepção da sua interacção sobre esse objecto. O observador não é portanto neutro, e altera forçosamente o próprio objecto. O exemplo em questão não podemos ver grande coisa do cérebro humano, a não ser que o alteremos, por exemplo com contrastantes que depois podem ser detectados por ressonância. A nossa observação não é neutra, é o resultado duma manipulação. E as conclusões que tiramos são necessariamente o resultado duma interpretação. Mas convém ter o princípio da incerteza presente também no momento de definir o próprio conceito de imagem, e de imagem mental.

Quanto à questão 'há' num automóvel, e aquilo que o automóvel é estamos de acordo (e daí..., talvez haja umas nuances). Na minha visão materialista uma coisa e outra estejam tão intimamente ligados que talvez se confundam. Aquilo que o carro 'é' resulta daquilo que nele 'há', mas aquilo que 'há' num carro tem que se constituir num processo coerente para que se transforme naquilo que o carro 'é'. Não basta ter porcas e parafusos, cilindros e cambotas, gasolina e explosão, combustão e piloto. Todos estes elementos, montados aleatoriamente dificilmente darão um carro que verdadeiramente o 'seja'. Aquilo que 'há' tem que constituir de uma determinada forma, coerente, que permita um encadeamento preciso de acontecimentos, os processos, que leve ao funcionamento do automóvel. As componentes encaixam-se segundo um plano preciso. O mesmo se passa com o cérebro. Não há apenas neurónios e sinapses, neurotransmissores e impulsos iónicos, há-os organizados de como uma série de processos coerentes, ou se preferirem de um modo funcional. A diferença entre o cérebro e o automóvel é que este é uma criação da mente humana, é fácil partir das partes, aquilo que 'há' perceber como se organizam e funcionam, é fácil perceber a coerência dos seus processos uma vez que foi o homem quem os criou. Já quanto ao cérebro não conhecemos o plano, temos que partir da nossa percepção daquilo que ele 'é' para tentar perceber aquilo que nele 'há' para depois ainda tentar perceber como as suas partes se organizam numa entidade funcional, aquilo que ele 'é'. Isto num constante vai-e-vem entre uma coisa e outra, aprofundando o nosso conhecimento passo a passo. E isto que digo não muito diferente, parece-me, do que diz Fernando Belo (parágrafo 5 do seu post).

Voltanto à questão inicial, as imagens de ressonância magnética mostram a actividade cerebral não as imagens mentais. No entanto, na minha opinião, as imagens mentais existem, são o produto dos tais processos coerentes que constituem o funcionamento do cérebro, e estão subjacentes à actividade cerebral que é possível ver nas imagens de ressonância magnética.

Tomemos o exemplo dado Ana Matos Pires (quando se debateu esta questão no 5dias): os amputados continuam a sentir o membro que perderam. Sentem-no porque os terminais nervosos que antes transmitiam ao cérebro a sensação desse membro continuam a fazê-lo mesmo que o membro não esteja lá. Isto demonstra que no cérebro existe uma representação desse membro. Não é uma imagem, no sentido visual de uma imagem captada pelo sentido da visão, mas é uma representação resultante da propriocepção. O membro esse não existe mas a representação mental desse membro é bem real, como o atestam as dores que sentem os que foram amputados. A representação mental de um objecto percebido pelo sentido da visão funciona de modo análogo.

Fernando Belo dá-me aliás um excelente argumento quando diz que as únicas imagens mentais são os sonhos. Ora acontece que, tanto quanto sei (que reconheço, é pouco nesta matéria) o cérebro processa as imagens dos sonhos e outras quaisquer imagens - as que evocamos de memória por exemplo - da mesma maneira. Se umas são imagens mentais, então as outras também são.

No fundamental onde eu acho que estou em desacordo com Fernando Belo é na ideia de que o conceito de mente seja o herdeiro do conceito de alma. A alma, no sentido religioso, é uma entidade metafísica superior ao corpo, e que lhe sobrevive. A mente é o resultado do funcionamento dos processos "superiores" do cérebro (consciência, abstracção, etc...), há mente enquanto houver um cérebro com os seus processos superiores em funcionamento. A mente é bem material está alojada no corpo, mais precisamente no cérebro, e não lhe pode, por maioria de razão, sobreviver. Não estou certo que este minha posição seja uma defesa do "dualismo cérebro / mente" mas quanto às reservas de Fernando Belo sobre "irredutibilidade metodológica entre o acesso ao neuronal com a aparelhagem laboratorial e o acesso a esta estruturação psíquica, por via do discurso (ou da introspecção)" tendo a considerar todas as limitações das aparelhagens laboratoriais não como limitações fundamentais e inultrapassáveis, mas apenas como circunstanciais. Naturalmente que esses aparelhos nos dão uma imagem limitada, como o nosso conhecimento será sempre limitado e incompleto. Novas máquinas e novas técnicas permitir-nos-ão de ver um pouco melhor, e o nosso conhecimento do cérebro avançará um pouco mais, sempre parcial e incompleto mas um pouco melhor. Não me parece irredutível, e pelo contrário a via do discurso e da introspecção avançará a par das aparelhagens laboratoriais.

Ou dito de outro modo, onde eu estou em desacordo com Fernando Belo é na oposição entre o real e o mental, ideia de que o "ser-no-mundo" esteja nos "antípodas do mental" (parágrafo 4 do mesmo post). Do ponto de vista da actividade cerebral um e outro são processados do mesmo modo, utilizando as mesmas redes neuronais. O mental é tanto uma representação do real (o "ser-no-mundo"), tal como uma representação de outros reais possíveis.

P.S. - Num post anterior deixei uma provocação a João Galamba, que entretanto respondeu (por sinal com bastante mais elegância do que a minha provocação) na caixa dos comentários. Aproveito, porque é o direito de resposta, e sobretudo porque é mais uma interessante contribuição para o debate, e transcrevo aqui o comentário de João Galamba (com quem estou obviamente em desacordo):

Peço desculpa mas só vi este post agora. Eu não digo apenas "porque não". Se ler os meus posts com atenção e, sobretudo, os comentários vai ver que a minha posição é de outra natureza.

A mente é caracterizada por intencionalidade, o que faz com que ela não possa ser tratada como um objecto. A intencionalidade significa que ela é constituída por relações normativas de significado (algo totalmente diferente de relações causais) com o mundo que lhe é exterior, o que faz com que o paradigma interior-exterior deixe se ser uma dicotomia.

O problema da ciência é que ela pressupõe a noção de objecto (sem o qual não há ciência), e isso distorce a natureza da mente. Antes de se estudar o que quer que seja é necessário clarificar a ontologia subjacente ao nosso estudo. Ora isto é coisa que a ciência não faz nem pode fazer, pela simples razão que ela própria necessariamente pressupõe uma ontologia.

A discussão é longa, mas acredite que se há coisa que eu não faço é dogmaticamente dizer que não.

6 comments:

Anónimo disse...

Só aqui cheguei agora, Zèd, depois de umdia inteiro de trabalho. Volto amanhã para ler com mais atenção e, quiçá, para te desafiar a um desenvolvimento deste tema.
Ana

Zèd disse...

Eu é que te devia desafiar. Aliás, estás desafiada! O que pensas das imagens mentais?

Anónimo disse...

Tenho uma posição muito próxima da tua, Zèd. Também acho que a sede física da mente é o cérebro - e não me parece que faça de mim uma defensora do dualismo mente/cérebro, bem pelo contrário. Claro que é discutível se o termo "imagens" foi uma boa escolha, reporta muito para o sentido da visão, mas a verdade é que não encontro outro melhor. Aquilo de que falamos é a maneira como já é possível avaliar o armazenamento de uma memória imagética cerebral, se quiseres.

Ando com muito pouca disponibilidade, o que me irrita, porque este assunto interssa-me imenso. Deixa ver se me arrumo e voltamos a pegar nele.

Só mesmo antes de terminar, tens razão relativamente ao que dizes sobre os sonhos e acrescento que não são o único exemplo materializável - das ditas imagens, mesmo imagens, imagens mentais -, as alucinações visuais, a pareidolia (ilusão fantástica) ou os falsos reconhecimentos (tão em voga com a saída do livro que fala do Síndrome de Capgras)são outros exemplo.

xatoo disse...

(Heisenberg) "Demonstra que o observador não pode ter a percepção do 'verdadeiro' objecto, mas apenas a percepção da sua interacção sobre esse objecto. O observador não é portanto neutro, e altera forçosamente o próprio objecto"

Isso é válido para uma escala infinitesimamente pequena (Nunca ninguém viu um quark) mas à nossa escala de bicho macro, que é o universo que frequentamos, o que conta são os principios de Newton. Se levares uma mócada de um bastão de policia a imagem mental com que te assoas é a de sempre: ficas a "ver estrelas". Realmente não fico "neutro" mas isso não altera em nada a filosofia que tinha antes.

Zèd disse...

Xatoo, se vicas a ver estrelas é porque houve uma interacção com o objecto, e que interacção, as estrelas são o resultado dela. Foi o que eu disse, o princípio é válido também à macro-escala, há inúmeros exemplos, eu é que não tenho tempo...

xatoo disse...

também não tenho muito tempo, só para lembrar que, não sei se reparaste que pegas numa expressão figurativa que pus entre aspas "ver estrelas" e a tomas por realidade. Esse é o grande (e)feito do pensamento pós moderno que pretende pôr as classes exploradas a "ver coisas" que não existem