Li o teu artigo no "Público" de hoje. Fico desiludido que à esquerda as pessoas tenham estas opiniões e aproveitem pequenas coisas que possam merecer discórdia legítima (quem está no cartaz, em que posição, em que sítio) para atacar o núcleo de uma medida que é absolutamente necessária para o país.
Reconhecendo apesar de tudo a "boa vontade" que subjaz à realização da campanha, escreves que "a campanha tem um fundo pernicioso que vale a pena comentar". Qual é ele?
"Poderia começar-se por considerar que ela é contaminada por uma cultura que usa a celebridade como medida de todas as coisas. Nessa cultura, os estudos aparecem como meramente instrumentais na obtenção do "sucesso", como para as crianças a sopa é apenas a provação a que são forçadas pelos pais para poder chegar à sobremesa. O pior, como sabe qualquer pai ou mãe, é que as crianças são rápidas a arranjar contra-exemplos. Então que tal o Cristiano Ronaldo que não acabou os estudos (e vai ser o jogador de futebol mais bem pago do mundo)? E o José Saramago que não acabou os estudos (e é só o Prémio Nobel da Literatura)?"
Rui, tu criticas a estratégia de comunicação mas, agora sinceramente: achas que se fosse alguém não conhecido alguém olhava para o cartaz? Imagina que era um trabalhador anónimo, e um slogan do género “Não desistas, fica na escola” (ou outro do género). Achas que a campanha tinha algum impacto? A resposta parece-me óbvia. O Pedro Abrunhosa está lá porque todos o conhecem, e é o facto de ser uma celebridade que pode emprestar força à mensagem. É só isso. Não vale a pena extrapolar e começar com moralismos do género que a celebridade é “a medida de todas as coisas”. Quanto aos contra-exemplos, eles existem claro. Mas é precisamente por isso que a campanha existe – já chega o que as crianças pensam e dizem sobre os Cristianos Ronaldo deste mundo. É preciso mostrar-lhes que esses casos são excepções. E era mais interessante e útil que as pessoas que sabem que eles não passam de excepções – como tu sabes – sublinhassem essa mensagem.
Escreves ainda que: "No nosso tempo e no nosso país o que não falta é gente que acabou os estudos e que desempenha trabalhos mal pagos e mal considerados. Há-os às dezenas em cada call-center, essa espécie de manjedouras onde são despejados depois da universidade e trabalham à comissão pela venda de cartões de crédito. Inevitavelmente, esta falsa promessa de sucesso através dos estudos é para eles uma memória amarga".
Talvez seja verdade para alguns, mas então o que fazer? Teria sido melhor que eles tivessem abandonado a escola antes para trabalhar em empregos porventura mais exigentes fisicamente (eu sou daqueles que considera um avanço "civilizacional" ter que pegar num telefone num call center em vez de carregar pedregulhos de 40 quilos na construção civil)? Ou, mesmo que fosse para fazer o mesmo emprego, para ficar toda a vida sem um nível de escolaridade que lhes permitisse ter outros horizontes, concretizáveis se calhar não no par de anos a seguir a terminar o 12.º, mas no futuro próximo? Atenção: tu dás o exemplo relativo às pessoas que acabaram a universidade e trabalham num call-center, mas o público desta medida não é esse (admito que te tenhas enganado, mas esse lapso pode mostrar o teu preconceito subliminar quanto à relativa irrelevância da melhoria das qualificações em geral, falemos de que nível de ensino for). Como já escrevi várias vezes neste blogue, as nossas elites (da qual eu e tu fazemos parte) preocupam-se com o desemprego (ou sub-emprego) qualificado como se fosse uma tragédia nacional - quando a verdadeira tragédia nacional é o abandono escolar em vários momentos precoces do ensino secundário. A modernização progressiva da economia será capaz de absorver muitos que hoje trabalham em call-centers, porque as suas qualificações permitem-lhes ter outros horizontes. Não hoje, não amanhã, mas num futuro próximo. E falo da maioria, não de todos (e tu sabes como é fácil fazer reportagens sobre esta questão a partir de um grupo de pessoas que não representa a maioria). Isto não é wishful thinking; é o que se passa, com um grau elevado de probabilidade, em qualquer economia moderna. Se olhares mais para as estatísticas e menos para os casos que conhecerás pessoalmente, verás que tenho razão. Inversamente, a modernização progressiva da economia deixará para trás os que não têm o 9.º ou o 12.º. Eles ficarão muito mais expostos ao desemprego, e os seus salários sofrerão uma pressão enorme. A precariedade, que eu sei que te preocupa, encontrará neles os primeiros alvos. A mensagem que passas, apoiando-se em alguns factos reais hoje (e todas as teses erradas têm um elemento de verdade, precisamos é de saber avaliar a sua relevância, empírica e normativamente), é a errada para o futuro. Era isso que era preciso que as pessoas percebessem e interiozassem. Dizer ou passar a imagem implícita que estudar não compensa é dar o sinal errado, porque é contribuir para que as pessoas não valorizem o elemento mais valioso na construção do seu percurso profissional. Eu gostava que reflectisses sobre isso.
Terminas escrevendo que: "Ao apresentar o estudo como mero instrumento da profissão, a profissão como mero instrumento do sucesso, e o sucesso medido pela cultura de celebridade, acabamos a degradar tanto o conhecimento como o trabalho e a realização pessoal".
Mas, Rui, essas pessoas não são o público dessa campanha. As que gostam de estudar e se realizam pelo brio e pelo drive intelectual-profissional não precisam dela. Ainda bem que eles existem. Mas o público desta campanha é aquele que acha que não vale a pena estar na escola porque, acham eles, estudar não vale a pena, porque aconteça o que acontecer, eles vão acabar como serralheiros, mecânicos, seguranças, ou empregados da construção civil. A campanha pretende mostrar que eles podem fugir a esse quase-destino sociológico se souberem valorizar aquilo que deve ser valorizado. E se o fizerem, se tiverem qualificações que lhes permitam ter outros horizontes e oportunidades profissionais, mais probabilidades têm de fazer algo que gostam - ou que possam vir a gostar.
Que esses jovens, a partir das fronteiras do seu "mundo-da-vida", não compreendam isso, eu percebo. Que pessoas inteligentes que passaram a vida a estudar e que devem em larguíssima medida o que são hoje a esse capital acumulado não percebam, isso já me deixa deveras espantado.
Por fim, o que prova ainda esta polémica em torno da iniciativa (e da campanha) "Novas Oportunidades"? A minha hipótese é que as elites não percebem que quando se fala para jovens que estão a ponderar sair da escola no fim do segundo período e a acabar o 9.º ano sequer, os códigos e o conteúdo da mensagem tem de ser diferente. Que tu ou muitas outras pessoas que escrevem nos jornais, altamente qualificadas e habituadas a pensar, escrever, e manipular símbolos e livros todos os dias, achem a campanha ridícula, acaba por ser (infelizmente) natural. É que ela não foi feita para ti nem para os outros intelectuais do nosso país.
Seu ;),
Hugo
P.S. - "Até pode ser que o governo tenha uma imbatível estratégia de comunicação. Mas se assim for, fica por explicar como é que o próprio governo põe nas ruas uma campanha sobre a importância de acabar os estudos no auge de uma polémica sobre os estudos do Primeiro-Ministro". As campanhas, com todos os prazos e custos humanos e financeiros, demoram tempo a planear, e não podem ser suspensas assim de um dia para o outro sem razão de maior. Era o que faltava suspendê-la pelo caso em questão.
terça-feira, 17 de abril de 2007
Caro Rui,
Posted by Hugo Mendes at 20:02
Labels: Novas Oportunidades, qualificações, Rui Tavares
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3 comments:
Acompanhar esta polémica assim à distância é curioso, dá-lhe um toque surreal. Afinal Portugal não é tanto um país de perguiçosos (com dizia o José Manuel Fernades outro dia) como é o país de pobres mas honrados, diria mesmo pobres E honrados, como se ser pobre fosse uma condição essencial da dignidade. Quando o governo faz uma campanha para lembrar essa evidência que é que ter pouca educação, baixos niveis de formação e ser mal pago é indesejável cai o Carmo e a Trindade. Que o discurso do pobre mas honrado venha de uma direita reaccionária não me espanta, mas que venha da esquerda que se quer igualitária é que já me surpreende mais. Esse romantismo "da gente que trabalha uma vida inteira" é apenas um equívoco, é contra isso que a esquerda deveria lutar.
Qual é a dignidade ou a honra de se trabalhar uma vida inteira, mal pago, sem sequer ter usufruido de um dos direitos fundamentais que assiste a um cidadadão: o direito à educação? O que é que deve ser valorizado pela esquerda?
Zèd, garanto-te uma coisa, isto é surreal mesmo aqui, no olho do furacão...
As medidas, quando são boas, devem ser apoiadas, venham elas donde vierem. E esta é uma boa medida, sem dúvida. Estudar é sempre importante, seja para exercer uma profissão de pedreiro, de pintor, ou qualquer outra, sem despreso por nenhuma das profissões que exigem mais o físico do que o intelecto. Pois, mesmo para essas, que não vão deixar de existir, porque são muitíssimo importantes, é necessário que a pessoa tenha alguma formação, educação e disciplina, se quer fazer bem o seu trabalho. É muito diferente falar para uma pessoa que não tem estudos, e para outra que os tem. A compreensão é mais rápida, o trabalho é feito com mais brio, e em menos tempo. Para "assentar" uma tijoleira é preciso saber mais do que o que é uma pá de trolha...
Vivam as medidas de alfebetização!!! São sempre bem vindas. Engrandecem o país e fazem-no progredir.
Teresa
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