domingo, 22 de abril de 2007

Notas sobre as eleições francesas

A primeira volta das eleições francesas não trouxe, felizmente, grandes supresas. À distância, alguns comentários:

1. A França deu uma verdadeira lição de participação democrática. Os números dos que foram votar (à volta dos 85%) são impressionantes.

2. Le Pen foi derrotado. Convincentemente derrotado. Este não pode deixar de ser um dos elementos mais positivos deste escrutínio.

3. Ségolène centrou o seu discurso em torno da ideia de "confiança". Se ganhar as eleições, os franceses bem vão precisar de confiança se quiserem fazer reformas que confiram coerência ao regime e as instituições de política económica. O problema em muitas áreas do funcionamento da economia francesa não é facto de ser excessivamente rígida, mas de ser incoerente, e de as complementaridades instituicionais de que depende um bom desempenho macroeconómico funcionarem mal. Perante esta incoerência que é resultado da multiplicação de corporativismos tanto no sector público como no sector privado, há duas saídas. Uma, a da liberalização. Essa será a saída de Sarkozy, mas é improvável que ele consiga liberalizar coerentemente a economia perante a constante ameaça de conflitualidade social. A outra é a da coordenação das instituições, em particular as que sustêm o funcionamento do mercado de trabalho. O PS e Ségolène estarão, em teoria, em melhor posição para negociar com os sindicatos uma reforma do mercado de trabalho que acabe com a multiplicação irracional de contratos laborais que alimentam a dualização - e obviamente, o aumento das desigualdades - entre os insiders e os outsiders. Isto não é a mesma coisa que acabar com a precaridade, como erradamente Ségolène disse ("mettre fin aux insécurités et aux précarités"). A segurança do sector público de antigamente vai, tem de acabar, e não vale a pena medir a segurança laboral futura a partir dessa referência. O que deve ser feito é o que a esquerda historicamente sempre procurou fazer: redistribuir os riscos no mercado de trabalho, neste caso criando protecções inteligentes para o sector exportador, que é o que alimenta qualquer economia globalizada (e em particular o sector público, convém não esquecer) e que é o que mais sofre(rá) de incerteza crónica. Era muito importante que os sindicatos do sector público percebessem isto e fossem capazes de redistribuir os riscos entre o público e o privado, coordenando as suas políticas de aumento dos salários com um eventual Governo socialista e auxiliando este na criação de emprego e crescimento macroeconómico - de forma a provar que a liberalização, mais ou menos brutal, não é a única saída. Reformar o sistema de relações laborais e as instituições de mercado de trabalho é dos desafios mais importantes que o futuro governo terá pela frente. Vamos ver como é que os sindicatos se portam. No caso de esse ser um governo-presidência socialista, era bom que deixassem de lado os delírios "transformacionistas" e a lógica da "resistência"- que não levam a lado absolutamente nenhum, senão ao fraco desempenho macroeconómico, desemprego elevado e ao aumento das desigualdades - para colaborarem inteligentemente para uma mudança que conferisse mais atenção aos que mais dependem do funcionamento do mercado - porque é este o público, e não a mítica "classe operária" que já não existe (ver o ponto 5.), a que esquerda contemporânea deve prestar atenção, porque é o que mais (vai) precisa(r) de protecção em função da crescente globalização das trocas mercantis.

4. Pelo que ouvi dos (e li sobre os) discursos de Sarkozy e Ségolène, as referências à Europa foram, se não nulas, muitíssimo escassas. Ouvi-los falar da "República" e da "Nação" francesa como se a França não fizesse parte de um dos maiores espaços económicos do mundo (e como se não ganhasse ao fazer dele parte), e com o qual partilha, pelo menos idealmente, um conjunto de valores e princípios civilizacionais e políticos é estranho e negativo. Depois admiram-se com coisas do género como o que aconteceu no referendo ao Tratado Constitucional Europeu em 2005.

5. O PCF já foi o maior partido comunista da Europa Ocidental. Hoje, a sua candidata, Marie-George Buffet, recebeu, pela informação que tenho agora, cerca de 1,9% dos votos. Os números dizem tudo da sua decadência eleitoral - mais do que justa face à sua bancarrota ideológica. Infelizmente, a influência de elementos afectos ao partido à frente de várias instituições francesas, para além dos problemas de efectiva representatividade que coloca, continua a comprometer o desempenho dessas instituições e a capacidade destas em participar do tão badalado rassemblement que ambos os candidatos mencionam. Enquanto continuar a haver esta fractura de representação (entre membros de instituições e os seus líderes), por um lado, e problemas sérios de coordenação de dinâmica política (entre os líderes das instituições e os representantes do poder político, sobretudo o executivo), por outro, as reformas que todos anseiam levar a cabo ficam, estrutural e organizacionalmente, bastante comprometidas - dado que o poder de "veto" das instituições estará, nesses casos, praticamente assegurado. (aliás, este diagnóstico relativo à discrepância entre o peso eleitoral do PC e o seu poder no interior de certas instituições, corpos profissionais ou movimentos podia ser aplicado a muitas situações em Portugal. Um deles é claramente este.)

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