sexta-feira, 20 de abril de 2007

Para que serve uma qualificação? (I)

1. O comentário que talvez mais vi difundido nos últimos dias em torno desta polémica da campanha do "Novas Oportunidades" reportava-se ao facto de que toda esta história da certificação reproduzir uma espécie de doença bem portuguesa de querer arranjar um “canudo” à força para mostrar ao vizinho, ou coisa do género.
Esta ideia é extremamente difundida, mas transpira senso comum preconceituoso, é verdadeiramente provinciana – quando pretende supostamente criticar o provincianismo… - e tem, infelizmente, a solidez argumentativa e empírica da esferovite. E digo infelizmente porque antes ela fosse real; bom seria que houvesse um stock considerável de qualificações. O que se passa é precisamente o inverso: é a não-objectivação dos saberes de uma larguíssima fatia da população que sabe muito mais – por aquilo que aprendeu, por vezes ao longo de muitos e muitos anos, no mercado de trabalho – do que o seu diploma de 4º classe ou 9.º ano diz.

2. Para ver o que esta situação envolve, imaginem uma economia onde as actividades informais fossem muito mais predominantes que as actividades formais. O resultado é que as trocas não seriam sancionadas pelo mercado, não seriam contabilizadas pelo Estado, e os salários seriam mais baixos, os impostos arrecadados também, as pensões idem, etc. Agora apliquem o mesmo raciocínio à educação: o que as pessoas está como que em estado eminentemente incorporado, tácito, não-codificado. Não apenas todas essas competências que o indivíduo acumulou pela experiência são, neste contexto, razoavelmente opacas para terceiros, como as pessoas correm o risco de verem o seu conhecimento real ser subavaliado por quem compra o direito a usar a sua força de trabalho. Existirá, então, um não-reconhecimento objectivo das competências do trabalhador – com reflexos potenciais, por exemplo, no seu salário ou possibilidades de progressão na carreira. Um trabalhador nestas condições está objectivamente desvalorizado. Do ponto de vista económico, isto gera um potencial subaproveitamento daquele capital humano. Do ponto de vista moral, isto é indigno (e isto responde à questão da suposta indignidade da campanha: é que esta questão não se resolve com elogios bonitos nos blogues ou noutros locais às tarefas árduas dos dedicados trabalhadores).

3. O “Novas Oportunidades” envolve um esforço para manter os jovens na escola e um esforço para fazer os adultos activos regressar a ela. Para os primeiros, incentiva-os a ficar na escola e, se pretenderem, seguir uma formação mais profissionalizante, à medida dos seus gostos e objectivos. Para os segundos, permitirá não apenas certificar os conhecimentos adquiridos ao longo da vida, mas também voltar à escola de modo a aperfeiçoar as competências que quiserem ou forem necessárias para a certificação. O programa envolve, por isso, uma componente de ensino e aprendizagem, em contextos diferentes, em benefício de jovens e adultos.

4. Mas agora imaginemos que o “Novas Oportunidades” não envolvia um esforço para manter os jovens na escola e um esforço para fazer os adultos activos regressar ao seu espaço. Imaginemos, então, que não existe a oportunidade efectiva de uns e outros melhorarem as suas competências; de ganharem mais confiança e eficiência no exercício das suas tarefas (presentes e/ou futuras); de se tornarem trabalhadores mais produtivos; de conhecerem outros trabalhadores e, via a concretização de interfaces entre a escola e as empresas, potenciais futuros empregadores, etc. Imaginemos, assim, na pior das hipóteses, que a certificação não envolve aprendizagem individual ou colectiva de nenhuma espécie: técnico-cognitiva, cultural, social, etc.. Seria como se, num dado guichet, entrasse o portfolio no qual o indivíduo lista as suas competências individuais e saísse, do outro lado da porta-giratória, o certificado. Mas, mesmo nesse caso limite, a certificação seria muito importante.

5. Porquê? Porque o mercado de trabalho está longe de funcionar de forma perfeita e concorrencial, estando antes repleto de incertezas e de incompletudes informacionais: um trabalhador que passou anos e anos no mercado de trabalho mas que não tem qualquer certificado dos seus conhecimentos terá dificuldade em “dizer” ao seu potencial empregador o que sabe; simetricamente, este terá sempre dificuldade em avaliar as competências do primeiro. (claro, há o CV. Mas a informação lá contida pode não reduzir muito a incerteza do potencial empregador e, na medida que funciona enquanto certificador da experiência, o CV tem limitações. Um certificado escolar é um documento muito mais universal). Para um mercado funcionar relativamente bem, tem que haver um ajuste decente entre a oferta e a procura; se o empregador A pretende comprar a força de trabalho do tipo X, e o trabalhador B só tem competência do tipo Z, então este desajuste é nefasto para os dois. É um bocado como comprar “gato-por-lebre”. No caso de A ter efectivamente contratado B apesar das dúvidas que tinha, o desajuste em causa pode provocar ineficácia desnecessária e levar mesmo a que a relação laboral seja terminada (mas isto depende das leis laborais, etc.) sem que nenhum deles tenha ganho muita coisa com o seu estabelecimento, etc.

6. Um certificado reduz a incerteza e emite um sinal do trabalhador para o empregador, diminuindo o estabelecimento de ligações laborais construídas sobre equívocos e faltas de informação. O que para o raciocínio preconceituoso não passa da “aquisição de um canudo”, para os indivíduos que certificam o seu saber trata-se de um “comportamento racional de investimento” no seu futuro, e para os empregadores uma garantia mínima dos saberes e competência na posse do trabalhador. Por isso, a existência de certificações - credíveis, claro - interessa tanto ao capital como ao trabalho.

7. Noutro dia volto a este tema, mas de outro ângulo de análise, menos devedor da economia e mais da ciência política e da história, e aí vou necessitar de vários posts. Passo a passo, espero mostrar porque é que a construção de um sistema de produção e certificação de saberes e competências profissionais eficaz e reconhecido é essencial para conseguirmos construir uma economia não apenas mais moderna, mas sobretudo menos dualizada e inigualitária. E mostrar também porque é que o projecto da esquerda passa de forma tão crucial por aqui (e não apenas, ou nem tanto, a nível nacional, pela multiplicação de pós-pós-doc's).

6 comments:

MPR disse...

Finalmente alguém que não se sente ofendido com o Pedro Abrunhosa, ou que fica com medo de dizer que é bom ter uma qualificação, que é MELHOR tê-la do que a não ter.

CLeone disse...

Agora digo eu: este (e outros) posts, pela elaboraçãoe extensão, ficavam bem no ladob. Mas quer lá quer aqui espero por esses posts sobre a esquerda não-dualista e menos pós-doc's e o supply side, etc.

L. Rodrigues disse...

Bom dia. Belo post.
Acho que vou ler mais coisas por aqui abaixo...

Anónimo disse...

O que está em causa, parece-me, não é nem a validade, nem os pressupostos, nem as intenções subjacentes à campanha; o que está em causa, parece-me, é a forma como uma, outros e outras foram materializados.
a) Esta forma... deforma os pressupostos, porque reduz o prosseguimento (ou a retoma) dos estudos a mero expediente economicista (do ponto de vista da chamada contabilidade de merceeiro).
b) Esta forma (ou maneira) de promover o regresso à escola inutiliza as intenções subjacentes à campanha, na medida em que é sociologicamente cabotina e intelectualmente terrorista: se não voltares aos estudos (se não comeres a sopa toda), de castigo vais passar a ferro (ou cortar relva).
c) Esta forma de conquistar, cativar, arregimentar e convencer - não pela motivação, mas pela ameaça implícita - invalida o próprio conceito básico subjacente ao processo de ensino-aprendizagem: obter melhor preparação para a vida.

A vida não é, necessária e obrigatoriamente, andar de Mercedes ou sair nas revistas cor-de-rosa. Estudar não serve exclusivamente para isso. Estudar mais não é o mesmo que deixar de ser um "fu**** looser"; ter deixado de estudar não significa a condenação às profundas do inferno e ao ferro de engomar; aqueles que terminaram, terminam ou terminarem os seus estudos não são implicitamente premiados com uma vida "muito fixe" e glamorosa.

Ou seja: mentindo, porque não existe a relação de causa e efeito em que se baseia, e insultando, porque apenas contrapõe dinheiro a falta de dinheiro, (a forma como se apresenta) esta campanha está condenada à partida. Condenada, porque mentir e enxovalhar são coisas condenáveis...
Mas não será surpreendente se, mesmo assim ou por causa disso mesmo, obtiver algum sucesso. A polémica ajuda muito, não é? E a polémica surge apenas porque a campanha é, por ordem crescente de gravidade, duvidosa, tíbia, cabotina, falaciosa, estúpida. Como dizia o outro, "numa palavra", é uma vergonha.
(Agradecimentos pelo tempo de antena.)

Hugo Mendes disse...

Caro JPG,

O tempo de antena é grátis, é para usar e abusar.
Relativamente ao seu comentário, eu não deixo de ficar espantado com a polissemia destas coisas, mas tudo bem :)

Não vejo como é que a campanha coloque o enfoque no "expediente economicista" - embora essa seja uma dimensão lógica da vida profissional, e quem não se preocupa é quem normalmente não tem movitos para o fazer; também não percebo como é que a campanha seja "sociologicamente cabotina e intelectualmente terrorista" - é que, meu caro JPG, não é a campanha que faz chantagem sobre os jovens: é o funcionamento do mercado de trabalho! Não é o Ministério da Educação que vai penalizar os miudos ou po-los de castigo: é a vida deles que vai sofrer até ao fim dos seus dias, e sabe que não estou a exagerar, se eles abandonarem a escola agora; quanto à ameaça implícita, é uma escolha comunicacional: estes assuntos são delicados, e a campanha para funcionar tem de tocar em zonas sensíveis, com uma mensagem de risco. De novo, não é o Governo que ameaça ninguém, mas é o jovem que vê o seu futuro ameaçado. Se quiser, isto é um aviso, nao é uma "ameaça".

"A vida não é, necessária e obrigatoriamente, andar de Mercedes ou sair nas revistas cor-de-rosa."

Francamente não percebo como é que as pessoas olham para a campanha e imaginam estas coisas. Isto vem a proposito do quÊ? De estar lá o Pedro Abrunhosa, é isso? Mas não é evidente que se estivesse alguém que não fosse uma figura pública conhecida por um miudo de 16 anos que não le jornais, não le livros, só vÊ TV, etc., não é evidente que tem de ser uma figura do mundo do espectáculo a transmitir a mensagem? È que acusam o Governo de não saber comunicar e eu pergunto se as pessoas sabem para quem é que esta campanha se dirige.

"aqueles que terminaram, terminam ou terminarem os seus estudos não são implicitamente premiados com uma vida "muito fixe" e glamorosa."

Não; têm apenas a possibilidade de ter uma vida melhor, por vezes muito melhor do que se tivessem abandonado a escola. Isso chega.

"Ou seja: mentindo, porque não existe a relação de causa e efeito em que se baseia, e insultando, porque apenas contrapõe dinheiro a falta de dinheiro, (a forma como se apresenta) esta campanha está condenada à partida. Condenada, porque mentir e enxovalhar são coisas condenáveis..."

Já viu as estatísticas? Perca 5 minutos a olhar para elas e depois chegamos à conclusão de quem mente e faz demagogia. É que falar de cor e chamar os outros de mentirosos é muito feio.

"esta campanha está condenada à partida".

É mesmo a vontade que as pessoas têm, não é? É que os miudos abandonem a escola só para os comentadores terem razão...Fico sempre estarrecido quando leio estas coisas.

"A polémica ajuda muito, não é?"

O Governo lançou a campanha, não a polémica. Mas se está a insinuar que o Governo lançou esta campanha porque sabia que ia, decididamente, dar polémica, então se calhar a sua estratégia de marketing não é assim tão má :)

Hugo

Anónimo disse...

Não insinuei nada, por uma questão de princípio e por outra de feitio.
Não compreendo - deve ser alguma dificuldade minha - o seu empenho pessoal em tão óbvio, patente, clarinho como água, aborto publicitário.
Não tenho absolutamente nada a ver com a forma como "as pessoas olham para a campanha e imaginam estas coisas". Quais coisas? E quem? Eu imagino coisas, porventura? Bem, talvez, mas não, seguramente, a respeito desta "coisa".
Não tenho nada a ver com "a vontade que as pessoas têm, não é". Não, não é. Falo por mim. Exclusivamente.
Faz-lhe assim tanta diferença que uma pessoa exprima a sua opinião, simplesmente? "Parece-me" (duas vezes, nem de propósito,) causa assim tanta estranheza?
Bem, não se incomode. Não se "estarreça", por amor de Deus, quem sou eu para causar tais incómodos.
"o Governo lançou esta campanha porque sabia que ia, decididamente, dar polémica, então se calhar a sua estratégia de marketing não é assim tão má".
Pois é. Exacto. Marketing. Educação. Duas coisas incompatíveis, na modesta opinião de um ex-professor, velho de mais para tolerar a falta de respeito, a petulância, a sobranceria. Para não dizer pior.
Cumprimentos.