sábado, 14 de junho de 2008

O escritor em construção

Vi e gostei de ver a exposição sobre José Saramago, «A Consistência dos Sonhos», aberta ao público no Palácio da Ajuda. Organizada pelo comissário Fernando Gómez de Aguilera, da Fundação César Manrique, consegue atingir um bom equilíbrio entre a cobertura dos anos hiper-mediáticos do prémio Nobel da literatura e os longos «anos obscuros» em que Saramago era uma figura secundária da cultura portuguesa.
Saramago é um escritor que suscita reacções extremadas na sociedade portuguesa, dividindo os fãs incondicionais e os detractores biliosos. Não me encontro em nenhum dos extremos. Aprecio alguns dos seus romances, sem colocar o Memorial do Convento num pedestal e preferindo O Ano da Morte de Ricardo Reis. Como poeta não se destaca no panorama português e muitas vezes dá entrevistas falando como o ensaísta que não é.
Esclarecido o meu ponto de vista, interessei-me particularmente pela primeira parte da exposição, que mostra o «escritor em construção» na sua penosa, laboriosa e incerta luta pelo reconhecimento. O visitante depara-se com as limitações, os obstáculos que Saramago tem de enfrentar e que documentam uma sociedade, um meio literário.
Os materiais expostos são valiosos auxiliares neste processo de conhecimento: fotografias; uma reconstrução da mesa de trabalho do escritor; manuscritos e páginas dactilografadas, inclusive de livros nunca publicados. As fichas temáticas e os planos para escrever romances como O Memorial do Convento ou O Evangelho Segundo Jesus Cristo introduzem-nos, produzindo um certo fascínio, na «oficina» do escritor. As agendas abertas permitem-nos ter uma noção do dia-a-dia de Saramago nos anos 80. Alguma correspondência mostra as relações de amizade ou de cumplicidade com outros escritores. Entrevistas televisivas gravadas, um vídeo de um filme adaptado de uma história infantil ou gravações de obras adaptadas a ópera multiplicam os pontos de vista sobre uma obra complexa. Todos estes elementos são apresentados com coerência graças à estrutura cronológica da exposição.
Aspectos negativos, em meu entender, são as «instalações» de grande aparato tecnológico que raramente vi a realizar as intenções anunciadas e explicadas nas legendas. Estas legendas são outro ponto fraco da exposição: encontram-se escritas em letra demasiado pequena e quase nunca colocadas à altura dos olhos de um português de estatura média, dificultando a sua legibilidade.
Causou-me uma certa decepção o processo de escrita de Ensaio sobre a Cegueira, em minha opinião o melhor romance de Saramago, se encontrar pouco documentado. Este ano estreia-se o filme, sobre o qual Fernando Meirelles, o realizador, manteve um blogue aqui. Será um pretexto para voltar a falar de um romance que Saramago imaginou e escreveu no rescaldo do desmoronamento da utopia soviética, criando uma fábula e metáforas que se tornam de novo actuais num momento em que o optimismo liberal do «fim da História» se afundou e não cessam de aparecer novas crises desvelando cegueiras secretas.

Post-scriptum: Decidi abandonar a blogosfera, pelo menos a blogosfera genérica e de comentário da actualidade, por tempo indeterminado. Em coerência com esta decisão vou sair do Peão, por motivos alheios à dinâmica deste blogue. Mas, parafraseando John Donne, nenhum blogue é uma ilha e tenho de me concentrar noutro tipo de escritos. Fico em dívida para com o generoso convite de escrever aqui e faço votos de que os outros peões continuem a postar muito e bem.




2 comments:

Daniel Melo disse...

Bons trabalhos, então, e até ao teu regresso (a propósito, os teus comentários oportunos continuam a ser bem-vindos ;).
Um abraço,
Daniel.

João Miguel Almeida disse...

Bom trabalho. Vou continuar a ler e, pontualmente, a comentar o Peão durante o meu período de «pousio» da blogosfera.
Abraço,
João Miguel