sábado, 27 de janeiro de 2007

Escolhe o teu esquerdista preferido

O meu primeiro post aqui no Peão vai ser sobre as eleições presidenciais em França (e palpita-me que não vai ser o último sobre o tema).
Há cinco anos Jean-Marie Le Pen conseguiu passar à segunda volta da eleições, ultrapassando Lionel Jospin. Apesar de gozar de uma boa imagem Jospin viu os votos da esquerda distribuídos por uma miríade de candidatos (o que não desresponsabiliza Jospin e p PSF da derrota). Este ano parece que o eleitorado "aprendeu" a lição e mais que provavelmente a candidata do PS, Ségolène Royal, vai beneficiar do voto útil, as sondagens apontam para mais de 30% à primeira volta, o que seria o dobro de Jospin em 2002.
A questão é de saber se os partidos à esquerda do PS "aprenderam" também alguma coisa, e quer-me parecer que não. A esquerda alternativa (quero dizer alternativa ao PSF) encontra-se num beco sem saída, se se verificarem as previsões das sondagens serão os grandes prejudicados pelo voto útil, se não for o caso arriscam-se a levar de novo a extrema-direita à segunda volta. A solução seria uma candidatura unitária que permitisse uma convergência dos vários partidos e movimentos de esquerda, que até já se vem desenhando desde o movimento anti-globalização. Seria uma excelente ocasião para o aparecimento de um novo movimento político à esquerda, com possiblidades de ter um expressão importante. Mas não foi o que aconteceu.
Alguns simplesmente apoiam Ségolène Royal, como Christiane Taubira (Parti Radical de Gauche), deputada guianesa que em 2002 ganhou muitos votos das Antilhas, e Nicolas Hulot apresentador de televisão ecologista que seria a figura mediática para uma candidatura dos "Verdes". No resto repete-se mais ou menos o cenário de 2002. Arlette Laguiller (Lute Ouvirère) decidiu candidatar-se pela sexta (!) vez às presidenciais, esteve desde início fora de qualquer possibilidade de convergência. O Partido Comunista (PCF) ainda tentou fazer crer que estaria interessado numa candidatura unitária. Foi lançada uma iniciativa conjunta com outros partidos e colectividades da sociedade civil para encontrar um candidato comum, fixou-se que seria um candidato de consenso e não eleito por simples maioria. O PCF recuperou os maus hábitos de comunistas, enviou militantes para as colectividades para tentar influenciar a escolha do candidato e forçou a mão. O PCF nunca esteve interessado numa candidatura conjunta, simplesmente quis aproveitar o movimento em benefício da sua própria candidatura, a de Marie-George Buffet. Nem quando viu que essa estratégia estava condenada desistiu, o resultado foi um estrondoso falhanço da candidatura unitária. Além de Buffet, que avançou sozinha, resultou deste falhanço também a candidatura Olivier Besancenot (Ligue Comuniste Révolutionaire), a candidatura dos Verdes, e muito provavelmente de José Bové. Pelos Verdes, com a retirada de Nicolas Hulot apresenta-se Dominique Voynet. José Bové, inicialmente tinha posto de parte uma candidatura por não ser consensual, mas neste cenário vai seguramente avançar. E espero não me ter esquecido de ninguém...
O que me incomoda nesta fragmentação é que uma esquerda que ser diz defensora de valores como a solidariedade e a tolerância não consiga viver com a diversidade. Vendo bem, todos estes candidatos se diferenciam muito pouco em termos do programa político, para o eleitor torna-se uma questão quase pessoal escolher entre um deles. Ainda assim, para mais sabendo que avançam para o suicídio político, continuam.
Mesmo sem acompanhar muito a cena política fora de Portugal e França, parece-me que não há muitos exemplos, se é que há de todo, de convergência entre a esquerdas alternativas como o Bloco de Esquerda em Portugal. Nitidamente o resultado é mais do que a soma das partes, mas é um exemplo que ninguém parece seguir, e em França está bem patente que não vai acontecer tão cedo.

11 comments:

Hugo Mendes disse...

Zé, e essa do Sarkozy andar a espiar a Ségolene, é mesmo verdade?

Daniel Melo disse...

Uma vez que a esquerda se atém mais a princípios (ou ideologias) e menos a interesses, tem mais tendência para a diversidade, para a cisão. O que ocorre um pouco por todo o lado.
Não obstante, o caso francês é capaz de ser, hoje, o mais 'suicida'. Nos anos 30 da Frente Popular não foi assim, e no tempo de Miterrand houve ministros do PCF. O que se passa agora, então?
Apesar da intenção frentista do BE, existem bloqueios históricos na esquerda lusa (decorrentes sobretudo do PREC) que nos aproximam do caso francês.
Além dum bloqueio decorrente de todo o sistema político luso: a impossibilidade duma coligação de esquerda perante o actual quadro político e social.

Hugo Mendes disse...

"Uma vez que a esquerda se atém mais a princípios (ou ideologias) e menos a interesses". Será? Falamos de que interesses?

Hugo Mendes disse...

Para ir directo ao assunto, a questao da cisao da esquerda francesa deriva do facto de nao ter havido neste pais um grande partido socia-democrata/trabalhista que agregasse e representasse os interesses dos trabalhadores como na maioria dos países europeus (Suécia, Inglaterra, Alemanha, etc.). Por isso durante décadas o PCF foi o maior partido comunista da Europa e a esquerda nao-comunista esteve eleitoralmente reduzida a 20 e tal por cento. Só em 1973, com o congresso de Epinay é que o PS renasce das cinzas e consegue agregar forças que à esquerda nao se reviam no PC; mas este processo tem uma marca: o PSF é um partido típico de classe média e alta, nao é um partido dos trabalhadores, que sempre se sentiram mais proximos do PCF. Ora, quando o PCF é ultrapassado pelo PS no final dos anos 70 e depois subjugado efectivamente em 1981, muitos dos seus eleitores nao passaram a votar em Mitterrand - cujo programa economico era e foi, naquela altura do campeonato, um flop - mas passaram directamente para Le Pen. Mitterrand e o PS passaram a ser vistos como uma cambada de vigaristas e os trabalhadores passaram do eurocomunismo para nacionalismo xenófobo Le Penista. O PCF foi perdendo força eleitoral, o PSF foi-se aguentando, mas a quantidade de gente (e de energia e militância política) que nao se identifica com o PCF nem com a política de classe média do PSF é imensa, e isso origina a fragmentação política à esquerda seja enorme. Isto nao é, em si, um problema incontornável; mas quando passamos à fase da estratégia politica, ou seja, quando passamos do espontaneísmo político para a fase em que é preciso olhar para a realidade política e saber o que é exequível e o que é impossível (e tantas vezes contraproducente), a fragmentação partidária é um problema. E para voltar à dialéctica entre o 'principios' e os 'interesses': advogar (mesmo que implicitamente) o purismo dos primeiros sem saber o que fazer com os segundos (e aqui nos 'interesses' está necessariamente subsumida a questão da 'estratégia') dá normalmente mau resultado.

Daniel Melo disse...

Quando referi 'interesses' queria referir-me a uma tendência da direita para um maior pragmatismo e, ligado a este, para uma maior aceitação do jogo económico, dos interesses que se movimentam no quadrante económico-financeiro, que segue movimentos frequentemente mais volúveis e dinâmicos do que as ideologias.
É óbvio que todos os partidos representam 'interesses' (ainda que diferindo na coerência programática), mais que não seja de maior apoio a certos grupos sociais, eleitorais ou político-económicos.
A esquerda cristaliza mais a sua ideologia: veja-se como grande parte dela continua refém de 'ismos', de sucessivos 'ismos' que supostamente superam os anteriores, numa lógica obsessiva de vanguairdismo filosófico/ ideológico. Porquê? Devido à sua matriz teleológica.
Por outro lado, é a esquerda que mais tenta ser coerente com o programa que apresenta aos eleitores, ao contrário do centro e da direita (esta tese é para outro debate, ok?).
Moral da história: eu não advogo purismo nenhum, estava até a tentar denunciar os bloqueamentos que cria no meu post anterior.
Julgo que para se construir uma alternativa progressista de esquerda, é necessário superar a lógica das ideologias e procurar uma convergência de princípios, valores, ideias-mestre. E para isso é necessário reflectir, debater e construir consensos.
Como por cá o debate é quase nulo, dá no que dá, um campo seco e quantas vezes desmobilizador.
Como em França há muito debate, eu fico algo perplexo como não há um esforço para uma maior convergência. Será porque a sociedade em si mesma é mais diversificada e faz questão de demonstrar isso em termos político-partidários? Mas então aqui voltamos ao início: as elites. As elites têm a obrigação de trabalhar mais: reflectir, debater e construir consensos mínimos.

Hugo Mendes disse...

Daniel, acho que discordamos num ponto essencial, que é mais de apuramento empírico do que de conclusão lógica (e indo um pouco além dos estereótipos do que é a esquerda e a direita): nao acho que a direita seja menos ideológica que a esquerda (prolongamento, parece-me, da infeliz velha inverdade que os intelectuais são de esquerda porque a direita é rasteira e só liga às questões pedestres, que funcionam - afinal de contas, existem vários "ismos" à direita); basta ver que a ideologia mais poderosa dos tempos actuais chama-se "neoconservadorismo", enquanto a(s) esquerda(s) estão, desde há pelo menos um quarto de século, à procura de algo que lhe forneça um paradigma progressista alternativo, capaz de agregar tantos interesses diferentes, e muitas vezes contraditórios.

Quanto à outra questão da existência de debate e possibilidade de convergência, parece-me que há aqui um trade-off necessário: quanto mais se debate, mais nos arriscamos a produzir dissidências. Isto ñão tem que ser assim, é logico, e nao há nenhum fatalismo aqui, mas é bom ter a noção de que debate e convergência não andam, a maior parte das vezes, de mãos dadas. Resta saber se em França, à esquerda, há "debate" político; a mim sempre me pareceu que os milhoes de gruops que existem sao - como cá - lutas intestinas entre velhos amigos que, quando se separam da seita anterior, criam um novo "ismo". Sem querer abusar do cinsnimo - isto é mais ironia -, a verdade é que à esquerda em França escreve-se e fala-se muito e debate-se muito pouco; fundamentalmente, debate-se com poucas bases de como funciona a política moderna, e sobretudo o que há muito tempo se chama em ciência política os "limites economómicos da política". A maior parte das ideias à esquerda sao economicamente impossíveis ou suicidas, e revelam um desfazamento entre os princípios ideológicos e o funcionamento do Estado e da economia contemporâneas. Estou a exagerar um pouco, mas é para ir directo ao problema crucial da esquerda, francesa e não só: o que alguem no final dos anos 70 chamava a "economofobia". Sobre isto podemos conversar longamente noutra oportunidade. Mas, para fazer um shortcut, é por isso que é importante que Ségolene seja eleita, porque parece-me que ela tem coragem de romper com um estatismo ortodoxo que em nada favorece os franceses (resta saber se, no caso de ser eleita, nao é 'engolida' pela máquina do PSF), e sobretudo nao favorece as classes baixas francesas. Nao esqueçamos o que escrevi no comment anterior: o PS é um partido de classe média, e média-alta, e é do interesse destes estratos que o Estado francês está refém (mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer de Portugal ;).

Hugo Mendes disse...

Agora desculpa lá, Daniel, mas continuamos amanhã que há um Belenenses-Benfica para ver no café mais próximo de casa, ali na Madragoa, que tem um símbolo do gigante do Belenenses pintado na parede e, ao lado, um foto do Salazar! E não é engano nenhum: o cão do estabelecimento também se chama Salazar!

Abraço

Daniel Melo disse...

Pois, discordamos nesse ponto, Hugo. Eu mantenho o que disse: independentemente da força duma suposta ideologia "neoconservadora", acho que no interior disso que chamas "neoconservadorismo" há muito mais pragmatismo do que na esquerda, por uma razão muito simples: a esquerda quer, tendencialmente, mudar/ transformar/ actuar na política para cortar/ atenuar os desequilíbrios e desigualdades, enquanto a direita, por norma, não tem uma pulsão tão forte nesse sentido.
Por isso, se o essencial da situação social ficar como está não preocupa tanto a direita como a esquerda.
Classe média, classe baixa, não vejo a coisa tão preto no branco. Mas isso fica para amanhã, hoje à bola!
PS: esse Salazar da foto é o cão ou é o outro?

Zèd disse...

Bom, estou a ver que o post deu origem a um verdadeiro debate.

Daniel e Hugo vocês fizeram uma excelente resenha histórica do problema, que se calhar escaparia a muita gente. De facto há também um paralelismo entre as cisões na esquerda portuguesa oriundas do PREC, e em França do pós Maio de 68. Há uma grande parte desta fragmentação que deriva de lutas intestinas e cisões como diz o Hugo, e isso tanto em Portugal como em França. Mas tudo isto, e é aí que eu quis chegar é extremamente anacrónico. Continuar nesta senda é, além de desastroso, patético.

É importante como vocês referem associar os princípios a uma estratégia pragmática. Aí acho que reside a virtude do BE, mesmo frentista, a sua própria génese é um acto de pragmatismo onde depois se tentam acomodar os princípios, o resultado obriga a cortar com uma série de dogmas e chavões que permite o aparecimento de uma nova esquerda. A partir pode começar a rever os programas e adoptar uma visão mais realista e mais actual.

Eu sou obrigado a concordar como o Hugo, também há uma ideologia à direita, mas como so referenciais são completamente diferentes é-nos difícil (à esquerda) reconhecê-la como ideologia, mas isto é de facto outro debate.

Respondendo à primeira pergunta do Hugo. É verdade que o Sarkozy mandou investigar membros da campanha da Ségolène, talvez até o seu irmão, através dos RG (Reinsegments Généraux) um tipo de serviços secretos que depende do ministério do interior, o Sarkozy lui-même. Furo jornalístico do Canard Encahinê, já confirmado pelos próprios RG. Sim, Sarkozy usas os serviços secretos do estado para investigar os seus adversários políticos, é o que isto quer dizer.

Essa associação, ainda que subliminar, entre o Belenenses e o Salazar é que não me agradou nada, fica já prometida uma resposta antes do fim do mês. Tenho provas documentais que o Belenenses não é um clube de direita.

Hugo Mendes disse...

Zèd, não fiques ofendido, limitei-me a reportar um facto, não entre no debate histórico-ideológico das afinidades políticas d'"Os Beleneneses"! (mas olha que há bons elementos para não duvidar dessa nao associação entre o Belenenses e o Estado Novo - mas venham essas provas documentais :)).
E, sim, Daniel, na foto está o dr.Oliveira Salazar, e à volta várias camisolas do Belensenses de diferentes épocas (a somar à pintura gigante do símbolo do clube). Ir lá ver um jogo do Beleneneses é, suponho, como ir ao Restelo (ou, for that matter, a qualquer outro estádio de futebol): ouvem-se coisas inacreditáveis sobre os jogadores, árbitros, etc. Mas sempre é mais quentinho do que o Restelo e pode-se beber uma cerveja calmamente. Melhor que tudo - lameno, Zé -, o Benfica ganhou (como de costume, sem saber ler nem escrever), por isso o sítio é talismã (é também o local público mais próximo de minha casa com televisão, por isso...).

Hugo Mendes disse...

Sbre o neoconservadorismo e as ideologias de direita: se existe pragmatismo aqui é porque há sempre uma dose valente de necessário realismo a quem pensa o mundo a partir de referentes idológicos mas que, ao mesmo tempo, dispõe de recursos - económicos, militares, etc - para o mudar. Nesse sentido elementar, é logico que o neoconservadorismo é pragmático, serve interesses, e tem uma estratégia. (naturalmente, isso nao signifique que nao tenha elementos delirantes e ou incapazes de compreender a complexidade do real, como se viu no Iraque; nesse sentido, a crítica de Fukuyama vai directamente à questão central: o neoconservadorismo abusa de um idealismo e de uma pureza ideológica própria do Leninismo e outras ideologias de esquerda do início do século XX, não fossem os criadores do neoconservadorismo nos anos 70 ex-trostkistas nos anos 30 e 40, ou seja, muda os valores políticos, mas mantêm-se boa parte dos métodos e tendência para achar que a realidade se molda à teoria/ideologia de forma excessivamente fácil).
A esquerda, como faltam muitas vezes falta os recursos, tanto políticos - não se detém o poder político, de Estado - como económicos - falta o capital -, ou seja, como faltam o elementos estruturantes do "princípio de realidade", é facil construir castelos de areia. Atenção, nao estou a dizer que isto é elemento necessariamente negativo nem que é marca de toda a esquerda; apenas estou a dizer que a tentação para cair nesta situação é forte, e quanto maior a fragmentação e/ou desorientação político-ideológica, maior o perigo de incorrer neste problema.

O facto de não saber com que recursos conta, como podem ser empregues, como eles definem os limites da acção, pode levar boa parte da esquerda a não ser capaz de responder à pergunta "COMO mudar a realidade de acordo com os princípios que compõem a nossa identidade política?". A direita, pelo menos a mais próxima do capital económico, está mais proxima tanto da pergunta como da resposta. E por isso pode construir ideologias e pô-las mais facilmente em prática.

Só mais um elemento. Escreves: "Por isso, se o essencial da situação social ficar como está não preocupa tanto a direita como a esquerda." Aqui penso que está mais um erro de diagnostico. Ninguem é hoje mais revolucionário - no sentido lato da palavra -, ou ofensivo do que a direita. A direita de identidade neo-liberal não está contente como as coisas estão, e por isso quer alterá-las radicalmente, em particular o equilíbrio entre o Estado e o mercado. Achar que só a esquerda está descontente é subavaliar a vontade de mudança radical expressada pela ideologia e pela prática neo-liberal (já reparaste nos títulos dos mais conhecidos blogues à direita?: 'Abrupto', 'Blasfémias', 'Insurgente'...radicalismo e descontentamento mais explícito nao há).

P:S: - "Classe média, classe baixa, não vejo a coisa tão preto no branco.". Desculpa o jargão, mas isso é ver quem vota em quem e perceber sem grandes ambiguidades quem são os públicos dos diferentes partidos, e quem tem possibilidade de moldar (e não unilateralmente determinar, atenção) as políticas postas em prática quando um dado partido vai para o governo.