quarta-feira, 18 de abril de 2007

Qualificação e mérito

Quanto a esta polémica sobre a campanha em torno do programa ‘Novas Oportunidades’, estou basicamente de acordo com o Hugo. De facto, o importante de toda esta história é que os níveis de qualificação aumentem generalizadamente na população e, sobretudo, nos estratos mais desfavorecidos. No entanto, convém sublinhar um ponto que para mim é o mais problemático desta questão. E formulo-o desta forma: haverá uma correspondência linear e directa entre o aumento de qualificação e o acesso a melhores oportunidades que se reflicta numa efectiva mobilidade social ascendente?
Numa sociedade, com a nossa, em que a cultura do mérito não é devidamente valorizada (penso que isto é relativamente consensual ou, pelo menos, há a noção generalizada de que é assim), o resultado de um elevado investimento na qualificação pode sofrer um forte enviesamento e gerar enormes frustrações pessoais (na medida em que o que na realidade acaba por valer é a posição social de origem do indivíduo e não o seu efectivo mérito), que poderão repercutir-se em conflito social. No fundo, o que quero dizer é muito simples: considero importante que se invista na qualificação apontando para um objectivo preciso (melhores empregos, melhores condições de vida…), mas entendo que se esta medida não for devidamente acompanhada por uma mudança profunda nos procedimentos de avaliação, reconhecimento e certificação do mérito, corremos o risco de criar um hiato entre as expectativas legítimas e a concretização dos resultados.
Ou seja, corre-se o risco de criar mais uma ilusão. Portanto, a mensagem da campanha não deveria só incidir na qualificação mas no esforço e na capacidade que se deposita na actividade profissional (i.e. no mérito), que, por seu turno, deverá ser devidamente reconhecida (socialmente e institucionalmente).

16 comments:

Victor disse...

Será que essa frustração eventualmente criada pelo aumento das qualificações e não “compensada” por uma melhoria de posição e de ordenado não pode criar um movimento social para impor práticas premiando o mérito? Ou seja o argumento das frustrações (e dos efeitos perversos) não será um falso argumento – Renato, não digo que é o que tu pensas - para não fazer nada e não lutar contra as desigualdades que existem de facto ?

Hugo Mendes disse...

"haverá uma correspondência linear e directa entre o aumento de qualificação e o acesso a melhores oportunidades que se reflicta numa efectiva mobilidade social ascendente?"

Depende do que quiseres dizer com "linear", mas a resposta é, do ponto de vista prorabilístico, inequívoca: sim.

"considero importante que se invista na qualificação apontando para um objectivo preciso (melhores empregos, melhores condições de vida…), mas entendo que se esta medida não for devidamente acompanhada por uma mudança profunda nos procedimentos de avaliação, reconhecimento e certificação do mérito, corremos o risco de criar um hiato entre as expectativas legítimas e a concretização dos resultados."

De acordo: mas aqui voltamos ao problema do costume. É que se nenhuma das partes avançar, as outras não avançam, porque não há incentivos ou pressões institucionais para tal. Não se fazer nada à espera que os outros façam o resto é que não dá mais nada senão paralisia generalizada.

"corre-se o risco de criar mais uma ilusão."

Os intelectuais, se tivessem um pingo de responsabilidade, e se soubessem o que dizem as estatísticas e como funcionam a economia moderna (e digo isto porque duvido francamente que saibam estas coisas elementares) davam confiança às pessoas e às instituições, não andavam prái a levantar fantasmas. Tu recordas-te do que disseste do caso da Finlândia: quão importante foi a confiança individual e institucional para ultrapassar a crise. Isto é contrario que eu vejo as pessoas bem-pensantes a fazer. Em vez de dizer que se as pessoas não estudarem têm os seus horizontes cada vez mais fechados - é que aqui estudar já nem é um luxo, é uma questão de sobrevivência futura, caramba -, não, andam a levantar fantasmas, e a dizer que "não garante emprego a ninguém" e etc. Entre as palas de burro e a ilusão fantasista (que ninguém quer criar, basta que as pessoas encarem a questão como ela é, de um ponto de vista não da certeza do sucesso, mas de um ponto de vista PROBABILISTICO), há um discurso que é absolutamente essencial neste caso, que é o da confiança. É que não podemos andar aqui a dizer que há muitas desigualdades perante a escola e a bater na escola como mecanismo reprodutor e LOGO A SEGUIR, quando alguém tenta fazer algo para contrariar os pesados mecanismos estruturais, vir para o outro lado e dizer, "Ah, mas agora convém nao iludir as pessoas". Quer dizer, entre o fatalismo e a ilusao há qualquer coisa de realista no meio.
Agora, cada um escolhe de que lado está: se alimenta convenientemente o movimento do pêndulo entre o critica do fatalismo e a critica da ilusão, ou se está do lado de quem constroi medidas que são desenhadas para agir nos nódulos chave da estrutura do sistema de ensino para estancar a dinâmica de insucesso. E é aqui que as esquerdas se separam.

Desculpa o tom, não é contigo, mas
e porque estou zangado com esta história toda - e porque ela revela tanta, mas tanta coisa. E uma delas é que há malta que não consegue ter outra postura senão a do ser do "contra". E passa a vida, respira, depende ontologicamente disso. Quando isso vai escandalosamente contra os princípios que eles dizem defender (e que por acaso são os mesmos que eu defendo), eu perco a paciência. É por isso que eu acho inconcebíveis as coisas que à esquerda se têm escrito sobre isto. À direita estou-me borrifando, estou à espera da discordância ou indiferença. Mas à esquerda eu acho isto incrivelmente responsável. É a mesma esquerda que anda para aí muito preocupada com a "morte dos intelectuais", não é? Pois então pensem no suicídio quotidiano que cometem.

Hugo Mendes disse...

Nem mais, Victor!

Renato Carmo disse...

Mas isso é uma suposição. E se o tal movimento ou pressão não acontecer ou, pelo menos, não alterar substancialmente as práticas vigentes?
A ideia central do post é chamar a atenção para o perigo que existe em conceber o aumento das qualificações como um fim em si mesmo. Ou seja, a ideia de que o mero investimento em qualificação gerará, só por si, mais desenvolvimento.
Nunca referi que face a este risco não se deve fazer nada, pelo contrário, deve-se fazer muito mais.

Hugo Mendes disse...

"A ideia central do post é chamar a atenção para o perigo que existe em conceber o aumento das qualificações como um fim em si mesmo."

Ninguém parte desse princípio - é que as qualificações abrem portas que dantes estavam fechadas. É só ísso que está em causa. E isso para para quem se está a falar (que não é o Daniel Oliveira, et al.) isso é, pode vir a ser, imenso.

"Ou seja, a ideia de que o mero investimento em qualificação gerará, só por si, mais desenvolvimento."

É uma condição necessária, não suficiente, porque nada funciona "só por si", mas em articulãção com outras coisas. Agora, isso não é alibi para não se fazer nada.

Hugo Mendes disse...

"Mas isso é uma suposição."

Não é Renato, isto não é astrologia.

Renato Carmo disse...

Hugo, parece que não percebeste o que quis dizer. A questão da valorização do mérito é a meu ver essencial. Enquanto as pessoas tiverem a sensação (e a expereiência) de que quem entra em tal cargo é o filho do Sr Dr. X, apesar de este ter uma média final de curso de 11 valores, enquanto o filho do Sr. trabalhador manual, que teve 17 valores no mesmo curso ainda anda à procura de emprego, não há confiança que valha.
Quanto as tuas referências sobre uma tal esquerda, já disse que estava no essencial de acordo, portanto, não reincidas nos mesmos argumentos.

Renato Carmo disse...

Hugo, a 'suposição' não era para ti, era para o comentário do Victor. Vê lá se te acalmas!

Hugo Mendes disse...

Os comentários sobre a esquerda não foram para ti, foi para explicar o meu tom.

"Enquanto as pessoas tiverem a sensação (e a expereiência) de que quem entra em tal cargo é o filho do Sr Dr. X, apesar de este ter uma média final de curso de 11 valores, enquanto o filho do Sr. trabalhador manual, que teve 17 valores no mesmo curso ainda anda à procura de emprego, não há confiança que valha."

Mas claro que há: é aumentar a pressão institucional para as regras objectivdas e as qualificações valham crescentemente mais do que esses mecanismos particularistas. É isso que é preciso fazer, e se não vamos acabar NUNCA com os favorecimentos e os amigismos, etc., o que mais faltava é que esse argumento servisse de crítica séria às políticas que pretendem fazer com que a certificação do mérito seja cada vez mais uma realidade. Queres acabar com os amiguismos permitidos pelo mau capital social (à la Bourdieu)? Então encontra formas de reforçar a validade e qualidade dos mecanismos objectivados que conferem capital cultural/profissional/vocacional.

Hugo Mendes disse...

Mas a questão não é para quem é o comentário. É que eu já ouvi essa da "suposição" de muita gente. É como se as pessoas formulassem políticas assim no escuro, à sorte, sem quaisquer referências empíricas. Como se não houvesse fortes probablidades da estratégia Y dar X. Certezas nunca há claro, mas há políticas que são claramente melhores e outros piores. E há as não-políticas, alimentadas por aqueles que são "profissinalmente do contra".
(de novo, isto não é para ti)
É contra eles que eu escrevo - porque são incrivelmente irresponsáveis.

Renato Carmo disse...

Precisamente! E eu meu entender o reforço do capital escolar deve ser acompanhado por uma maior democratização no acesso ao capital social. Senão, aí sim, corre-se o risco de não sair do mesmo circulo vicioso, só que a uma escala de qualificação mais elevada.

Hugo Mendes disse...

"Senão, aí sim, corre-se o risco de não sair do mesmo circulo vicioso, só que a uma escala de qualificação mais elevada."

Mas não é logico que uma qualificação mais elevada, sobretudo se conseguida num ambiente profissionalizante (e que não cultive uma distância entre o saber académico e o mundo profissional real), inscrita na dinâmica real do mercado do trabalho, vai fazer crescer o capital social entre empregadores e trabalhadores? É que a qualificação não é o papel do certificado. Ela faz parte, e permite a pessoa increver-se numa rede de actores que pode precisamente criar os círculos virtuosos de que estamos à procura.
Portanto não podemos pensar que a qualificação existe assim, a pairar no ar. Como bem sabes, ela está embedded - e quanto mais proximidade entre a escola, a formação vocacional e as empresas, melhor para o sucesso profissional das pessoas, mais embedded está.
Claro que isto para muitos é um sacrilégio, porque acham que a escola deve ser um refúgio do mundo mau do mercado de trabalho. Depois claro, os miúdos abandonam a escola porque o saber que lá aprendem é excessivamente escolástico e passam do (falso) refúgio que era a escola directamente para o mercado de trabalho, transformado agora sim no inferno porque falta capital social e faltam qualificações para eles se poderem defender.

Renato Carmo disse...

"Mas não é logico que uma qualificação mais elevada, sobretudo se conseguida num ambiente profissionalizante (e que não cultive uma distância entre o saber académico e o mundo profissional real), inscrita na dinâmica real do mercado do trabalho, vai fazer crescer o capital social entre empregadores e trabalhadores?"

Não sei se é lógico. Depende de um conjunto de factores. Se nesse ambiente profissionalizante não se avaliar devidamente o mérito e as competências, não é liquido que as consequências sejam as da tua previsão.

Hugo Mendes disse...

É suficientemente expectável para legitimar as medidas implantadas. E está na direcção certa. É fazer a revisão da literatura.

Agora, certezas, ninguém dá.

Hugo Mendes disse...

De qualquer forma, Renato, a par das dúvidas legítimas que possam surgir, este nível de discussão não tem nada a ver com o resto. Aqui a questão é, se quiseres, de modelo, de estratégia, de paradigma de acção. Quando escrevi acima que era a "direcção certa", era a isto que me referia. A estratégia para a qualificação e para a modernização da economia tem em conta os vários factores que bem mencionas. Se estamos a discutir elementos e questões da sua coordenação interna a esse modelo, tudo bem, podemos afunilar a discussão, e pretendo escrever um post longo sobre isso. A discussão no interior de um quadro estratégico de reflexão e acção é muitíssimo bem vinda.
(Agora, para as bocas avulsas de quem não tem estratégia nenhuma, é que não há paciência - e sabes de novo que não me refiro a ti).

Victor disse...

Sim, Renato, a minha pergunta era uma suposição. Tal como, pelo o que percebi, o teu post (essa frustração também podia não acontecer). Essa frustração – se existisse - pode de facto não dar nascimento a nenhum movimento social – sei que há um grande debate sobre as frutrações nas origens dos movimentos sociais, revoluções, etc. – mas era uma suposição que não me parecia descabida (por exemplo a frustração dos capitães como origem do 25 de abril). E a melhoria das qualificações poderia induzir uma mais importante “empregabilidade” dos empregados menos qualificados. Essa melhoria podia permitir aos menos qualificados de mudar de vida, de horizontes, de não ficar presos aos empregos deles, isso é, essa melhoria poderia permitir uma melhor fluidez do mercado de trabalho. Acho que é sempre melhor poder mudar de emprego (para melhor, obviamente) ou de patrão (com as ditas qualificações) que não ter nenhuma alternativa e ter que enfrentar a dureza das condições de trabalho e os fracos ordenados.