terça-feira, 17 de abril de 2007

Sobre as "Novas Oportunidades" ou o síndroma do DIY Economics

A iniciativa "Novas Oportunidades" ameaça-se transformar numa comédia de erros de interpretação - por parte sobretudo de quem não precisa delas. O artigo de Vitor Malheiros hoje no "Público" é a prova de que as pessoas não percebem a raiz do problema, não percebem o que está em causa e continuam a viver, pensar e escrever a partir de histórias que ouviram em criança em vez de perder uns minutos a olhar para umas estatísticas e a perceber que o que dizem está ancorado no senso comum.
Primeiro é história do sacristão que é despedido da paróquia por não saber ler. Uma vez na cidade, consegue montar uma tabacaria e garantir alguma prosperidade económica.
Esta uma história é sem dúvida muito bonita - mas Vítor Malheiros tem formação científica suficiente para saber que as políticas públicas não se fazem de histórias que se contam às crianças antes de adormecer mas fazem-se sustentadas em estudos empíricos onde a componente quantitativa é central. A primeira pergunta que devemos fazer é: quantas pessoas tiveram a "trajectória de sucesso" do nosso sacristão? Se a sua expressão estatística for residual, então ela não serve de muito. O sucesso económico individual e nacional não se fazem de (a)casos individuais, mas de políticas e instituições credíveis e eficazes. Segunda: se o sacristão soubesse ler e escrever, não podia ter tido logo de antemão uma trajectória que lhe permitisse ter um emprego mais seguro e mais bem pago? E assim por diante.

A moral de se achar que esta história tem algum valor para orientada a tomada de decisão política é de que as pessoas - e falo de pessoas qualificadas que sabem que a política não vive propriamente de ideias que caem do céu ou que se baseiam na história do familiar de A ou do vizinho de B - não se informam mínima e devidamente antes de fazer um julgamento sério.

2. "A história tem várias morais e uma delas pode ser que nem a formação escolar é uma garantia de sucesso nem o empreendedorismo se aprende na escola."

Que sentido é que esta crítica faz quando precisamenteo o objectivo do programa é certificar as qualificações que se aprenderam FORA DA ESCOLA? Para além disso, os conhecimentos que o programa vai permitir aos alunos aprender, se necessitarem e/ou quiserem, terão um cariz eminentemente profissionalizante, facilitando a sua inserção presente e futura no mercado de trabalho.

3. Vitor Malheiros afirma ainda que "o desprezo pelo trabalho manual (que em Portugal é sempre visto como "não qualificado" ainda que o não seja), o desprezo pela manipulação material e a ideia de que a qualificação apenas existe nas profissões de "manipuladores de símbolos", a ideia de que a casta profissional a que se pertence é mais importante do que a competência que se possui no seu trabalho. São preconceitos que explicam em grande parte o atraso português".

Na medida em que é verdade que em Portugal existe um desprezo pelo trabalho manual, o que o "Novas Oportunidades" pretende é precisamente valorizar, ou mais propriamente, dar valor de mercado a esse trabalho manual. É que valorizar o trabalho manual não é dizer muito bem dele nos jornais, nas conversas de café e nas histórias para adormecer as crianças. É certificá-lo e, com isso, emitir sinais aos empregadores que aquela pessoa que possui o certificado de qualificações X, está em condições de cumprir a tarefa Y. Não estamos aqui na dimensão romântica da valorização do trabalho A ou B; estamos a tratar de questões essenciais da forma como funciona - ou não funciona - o mercado de trabalho; e quando este não funciona, os mais prejudicados são aqueles que, tendo experiência acumulada e não a tendo certificada, têm menos oportunidades para singrar no mercado de trabalho. É isto a que chamam "desvalorizar" o trabalho manual? Desvalorizado já ele está hoje na ausência da sua certificação!

4. "A campanha é, finalmente, tanto mais tonta quanto a formação escolar pouco ou nada garante em termos de emprego".

O que se pretende exactamente dizer com isto de "garantir" emprego? Se a formação escolar não "garante" emprego, ela coloca as pessoas numa posição muito mais favorável perante o mercado de trabalho. Isto é inequívoco e já mostrei isto várias vezes aqui no blogue (por exemplo, aqui).
Pelo contrário: a não formação escolar garante, essa sim, a permanência ao longo da vida em empregos mal pagos e - perante a queda do valor de mercado do trabalho não-qualificado em economias da OCDE - crescentemente instáveis. Ela aumenta a exposição dos trabalhadores ao desemprego. Esconder este facto não é apenas ignorância: é também irresponsabilidade das elites.

Dito isto, e porque as pessoas parecem não perceber para que serve uma uma qualificação, parece-me que é importante voltar ao ponto zero da discussão. Fá-lo-ei brevemente. A maioria das pessoas que pensam e escrevem coisas semelhantes às de Vitor Malheiros parece ter saltado este ponto essencial do problema. E enchido o lugar vago com o senso comum do costume, algo semelhante ao que John Kay chama de DIY (Do It Yourself) Economics: "the false propositions which people who have not studied economics know instinctively to be true".

A única coisa que me deixa tranquilo é que o (in)sucesso do programa não se medirá pela opinião que a nossa intelligentsia tem dele.

9 comments:

Sofia Rodrigues disse...

Hugo, deves achar que as pessoas transportam consigo um qualquer equivalente das páginas amarelas das estatísticas e que o consultam sempre que querem falar de determinado assunto! Às vezes as opiniões são mesmo resultado do empirismo e de histórias que se ouviu em criança e, lá por isso, até podem ser boas opiniões.
E não estou a defender o artigo do Público, que nem li, mas o meu direito a emitir uma opinião sem qualquer consulta prévia de gráficos, tabelas ou estatísticas!

Hugo Mendes disse...

Sofia, desculpa discordar. Quando se escreve um artigo de jornal (ou outra do genero), há uma coisa que se chama responsabilidade intelectual e social. se o Vitor Malheiros não consutou as estatísticas quando escreveu o artigo, então não fez o trabalho de casa. Acho estranha a ideia de que devemos aceitar esta leviandade, assim, calmamente.

É claro que todos têm direito a todo o tipo de opiniões. Depois têm é que saber responder por elas.

CLeone disse...

Não, em Portugal qualquer coisa vale. O drama é esse e por isso é que é a Justiça e não a economia o verdadeiro problema. (Hoje estou assim, até amanhã)

Sofia Rodrigues disse...

Não era para levar a sério...

Hugo Mendes disse...

Sim, Sofia, talvez, mas a verdade é que esta coisa é séria. Ou então sou eu que já perdi a paciencia com uma série de coisas :)

Luís Marvão disse...

Meu caro Hugo,

Todo o conhecimento começa na experiência...
No que toca às imaculadas estatísticas, creio que o Hugo padece de fetichismo...

"Não estamos aqui na dimensão romântica da valorização do trabalho A ou B"
Então agora querer dignificar a condição dos trabalhadores manuais é ser romântico?
Ai esta "esquerda" socrática...

Hugo Mendes disse...

"Todo o conhecimento começa na experiência..."

Luis, desculpa, está compeltamente, e não por uma questão "filosófica" (como a sua frase parece dizer), mas puramente por uma exigência de qualidade e exigência na tomada de decisão: ninguem toma medidas na base de "eu conheço um caso aqui, e outro ali"...E quem o faz, sujeita-se a que essa medida não tenha fundamento empírico nenhum. E a que seja uma péssima medida na base do "acho que..."

"Então agora querer dignificar a condição dos trabalhadores manuais é ser romântico?"

A "Valorização" faz-se, passe o pleonasmo, dando OBJECTIVAMENTE VALOR ao que os trabalhadores fazem e sabem. Não é andar por aí a dizer bem deles pela rua, o quão dignos são e etc.. Claro que eles são e pode fazê-lo. Mas isto em NADA melhora a vida dessas pessoas. Mas de certeza que acalma algumas consciencias.

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

"Todo o conhecimento começa na experiência..."

Luis, desculpe, está completamente enganado, e não por uma questão "filosófica" (como a sua frase parece dizer - o que o conhecimento é ou deixa de ser não é para aqui chamado), mas puramente por uma exigência de qualidade e responsabilidade na tomada de decisão: ninguém toma medidas na base de "eu conheço um caso aqui, e outro ali"...E quem o faz, sujeita-se a que essa medida não tenha fundamento empírico nenhum. E a que seja uma péssima medida, porque tomada na base do "acho que...". Mas alguém acha que a política se faz - ou se pode fazer - assim?...

"Então agora querer dignificar a condição dos trabalhadores manuais é ser romântico?"

A "valorização" faz-se, passe o pleonasmo, dando OBJECTIVAMENTE VALOR ao que os trabalhadores fazem e sabem. Não é andar por aí a dizer bem deles pela rua, o quão dignos são e etc.. Claro que eles são e pode fazê-lo. Mas isto em NADA melhora a vida dessas pessoas. Mas de certeza que acalma algumas consciências.