quarta-feira, 11 de abril de 2007

Sobre a universidade, as "ideias", e os diplomas etc.

«Há qualquer coisa no ideal universitário que o torna difícil de explicar, apesar de ser tão simples. O ideal universitário são as ideias. Ideias sobre como são as coisas, sobre como funcionam, sobre como deveriam funcionar, ideias sobre ideias. Algumas dessas ideias são conhecimento, outra são comentário, outras criatividade, a maior parte delas um pouco disso tudo. Mas é difícil explicar aos alunos, ou até ao resto da sociedade, que dentro daquelas paredes (metafóricas: pode ser cá fora, na esplanada, no trabalho de campo, na visita de estudo) essas ideias devem ter precedência sobre tudo o resto. Se os alunos querem um diploma e os pais pagam por um bom emprego, não é fácil dizer-lhes que por agora a única coisa importante é o que escreveram alguns mortos de há mais de cem anos, ou como se comporta a partícula x, ou que interpretação dar à arte de y. Só depois de ganhar verdadeiro interesse ou paixão por tais coisas chega a altura de se poder começar a tratar de notas, de diplomas e de empregos (...)»

Estas são palavras do Rui Tavares, escritas num artigo do "Público" ontem. O Miguel Vale de Almeida transcreveu-as e adicionou: "Nunca esquecer isto quando se é bombardeado pelo actual ar do tempo em relação à universidade. Nem que se tenha que tapar os ouvidos, dizer a alta voz "lá-lá-lá-lá" e ouvir interiormente este mantra".

Esta é uma discussão muito importante nos tempos que correm. Idealmente, eu não discordo do Rui, mas porque entre as ideias e os contrangimentos da realidade vai sempre um fosso sempre excessivamente grande, discordo do implícito desprezo - que não deixa de ser o que está realmente dito nas entrelinhas - pelas notas, pelos diplomas e pelos empregos. É que, inversamente, parece não ser fácil para a grande maioria dos pais e dos alunos explicar aos professores universitários que, primeiro, está a perspectiva de terem um futuro onde o diploma que passaram anos a tirar conte efectivamente para a realização de um percurso profissional decente e minimamente adequado às suas expectativas. E, infelizmente, para a maioria estas não passam pelo conhecimento do que "escreveram alguns mortos de há mais de cem anos, ou como se comporta a partícula x, ou que interpretação dar à arte de y" - doa o que doer aos professores unversitários. Tapar os ouvidos, como aconselha Vale de Almeida, não resulta em absolutamente nada - a não ser a dar razão àqueles que acham que os professores universitários, self-professed autistas, "não vivem neste mundo".

Não que o desemprego de licenciados seja a catástrofe nacional que por vezes se pinta, ou que universidade seja a única responsável pelos potenciais desajustes entre o titre e o post. Não é, e não é disso que se trata. O problema é que o que o discurso do Rui tem aquele travo amargo da intemporalidade, como se o pudéssemos manter independentemente do contexto, e como se fosse indiferente estarmos no século XIII, no XVIII ou no XXI. Mas ter as "ideias" como a única ou a grande prioridade da universidade é esquecer que, entretanto, o mundo, e sobretudo a economia, mudou - e que a universidade ocupa, e vai ocupar cada vez mais, uma posição de formação de profissionais nas mais variadas áreas. O problema é confundir esta função crescente da universidade - o que para mim representa uma grande vantagem do nosso presente e futuro em relação ao passado - com a ideia de que esta vai ser a única função da universidade. Isto é falso, e é fácil ver porquê. Nunca, no futuro, teremos tanta gente a fazer investigação, tanta gente entregue o mais possível às "ideias" e ao conhecimento desinteressado. Simplesmente, isso não vai acontecer ao mesmo nível de ensino que no passado.
E se isto representa um déclassement relativo dos professores universitários, convém não esquecer o outro lado: o do upgrade cognitivo e social de uma larga fatia da população que dantes não passava do ensino primário ou secundário (que era, obviamente, and please don't sweep it under the carpet, o que permitia à universidade e os seus profissionais dedicarem-se às "ideias" e desprezar a função social e profissional dos diplomas: quando apenas ensinamos as elites, podemos dar-nos ao luxo de esquecer o mundo lá fora e de considerarmos a mera questão "para que é que 'isso' - a nota, o diploma, etc. - serve?" verdadeiramente secundária). E este upgrade é, parece-me, muito, mas muito mais importante que qualquer "corporativismo do universal" (para citar essa expressao particularmente feliz de Bourdieu: ou direi infeliz, dado que ele considerava-o um ideal merecedor de defesa a todo o custo).

Eu admito que não seja deliberado, mas este tipo de platonismos tem sempre o risco de resvalar para um elitismo, à esquerda, particularmente desnecessário e perverso.

17 comments:

CLeone disse...

Apoiado. E só discordo (levemente) quanto ao «déclassment» professoral; melhor será, como faz no post, ver o processo como uma reclassificação interior à própria carreira universitária - e perguntar por que motivos resiste ela tanto? Não me parece que sejam motivos de tipo universalista.

Hugo Mendes disse...

Sim, quando mencionei o "déclassment" devia adicionado "se isto representa um déclassment", dado que não é certo que o seja - talvez o seja por referência a uma imagem idealizada do que devia ser ou fazer um professor universitário, mas isso dos mitos, já sabemos, costumam nestas coisas fazer mais parte do problema do que da solução.

Os motivos da resistência serão variados, mas não me parece que haja grande mistério aqui; um dia podemos discutir isto mais longamente. Mas deixo duas pequenas comparações: os médicos passaram pelo mesmo processo quando passaram a ser obrigados a ter que atender pacientes que não vinham das classes altas; e ainda hoje muitos professores do upper secondary, sobretudo os mais velhos, estão saudosos dos tempos em que os que lá chegavam eram quase todos meninos inteligentes e bem comportados.
A massificação tem destas coisas: tende a transformar os politicamente progressistas em profissionalmente convervadores.

Zèd disse...

Oh Hugo,
Eu não concordo nada. O função da Universidade (e até de todo o sistema de ensino) é precisamente ensinar. O emprego não é uma condição automática de se obter um grau académico, nem é legítimo esperar que assim seja. O objectivo é ensinar, e se o aluno aprendeu alguma coisa no tempo que andou na Universidade então vai ter um nível de conhecimentos que o vai habilitar a desempenhar uma função. Por isso é até normal e desejável que quando um licenciado concorre a um emprego sejam aferidos os seus conhecimentos por entrevistas, testes, etc... Não basta ter obtido um grau académico. Do mesmo modo as políticas de investimento no Ensino Superior deve ter por objectivo fomentar o conhecimento, as tais ideias de que fala o Rui Tavares. O objectivo não é produzir individuos detentores de um grau académico, isso em si mesmo não vale rigorosamente nada se não corresponder a um aumento dos conhecimentos.

Dito de outra maneira, as consequências socio-economicas são apenas consequências indirectas de devem ocorrer se a Universidade cumpriu a sua função primeira (unica?) que é a de gerar e transmitir conhecimentos.

Hugo Mendes disse...

Renato, vamos separar as coisas. Este texto não é sobre a Independente; é sobre as funções da Universidade.

Quando dizes:
"dificilmente conseguirá desmentir o facto de que a escolha desta universidade teve a ver mais com a facilidade dos procedimentos para rapidamente concluir o curso, do que um interesse pela formação em si e pelo conhecimento das tais ideias de que fala o Rui".

Mas quem disse que o Sócrates foi para a UIndependente por amor ao conhecimento? E porque é que tinha de ir? Há algum mal em cumprir uma obrigação - real ou virtual - de ter um canudo? E se não foi por amor ao conhecimento - como duvido que tenha ido, ou que isso seja sequer relevante para toda esta história (o PM não tem que ser o filósofo-rei, já que brincamos aos platonismos :)) -, a qualidade do seu diploma não tem a ver se teve 4 ou 5 cadeiras ali ou acoli, mas pela própria reputação que a UInd já tinha antes deste caso. Toda a gente sabia que vir da UInd ou do Técnico não é a mesma coisa, mesmo que a administrativamente a UInd funcionasse de forma impeável (como não era o caso).

"Parece-me que em Portugal para muitas universidades privadas essa foi a sua função primordial e,ainda por cima, para proveito próprio de parte considerável da nossa elite política (tanto à esquerda com à direita)."

Muito provavelmente, esta é uma boa hipótese, sim. Mas atenção: isso em nada acrescenta ou retira valor ao diploma de José Sócrates.
Quanto aos favores...não conheces casos de ninguém que tenha feita uma ou cadeiras do última ano, a tese com o mesmo professor, que depois "deu" a esse aluno trabalho logo que acabou a licenciatura? Olha, eu conheço vários. Inclusive, isso aconteceu comigo. Até tive notas lançadas fora de época e etc. Agora imagina que isto vem para os jornais um dia, se se justificasse. Provava o quê, afinal?
Não há nada mais fácil do que começar a levantar suspeitas a partir de práticas institucionais que toda a gente sabe que existem. Elas podem estar dentro ou fora de lei: se estão fora, ponha-se fim a elas. Elas podem revelar mais ou menos competência ou qualidade: aqui, quem paga é o aluno, porque qq empregador sabe que o aluno vindo da universidade X não tem a mesma qualidade que o vindo da universidade Y. A sanção é a do mercado de trabalho, não tem de ser dos media.

Hugo Mendes disse...

"O emprego não é uma condição automática de se obter um grau académico, nem é legítimo esperar que assim seja."

Verdade; simplesmente, 99% (desculpa se exagero na percentagem) das pessoas vão para uma universidade para ter um emprego, não pela beleza das ideias. Se a universidade não está atenta a este elementar facto, então não presta um bom serviço ao seu público, independentemente do brilhantismo do seu corpo docente.

"Do mesmo modo as políticas de investimento no Ensino Superior deve ter por objectivo fomentar o conhecimento, as tais ideias de que fala o Rui Tavares."

Não tenho nada contra o conhecimento, pelo contrário. Mas tenho quando o enamoramento intelectual pelo conhecimento nos faz esquecer de tudo o resto, e, que nos caso da universidade, é o mais importante para a esmagadora maioria dos públicos da universidade.

"as consequências socio-economicas são apenas consequências indirectas de devem ocorrer se a Universidade cumpriu a sua função primeira (unica?) que é a de gerar e transmitir conhecimentos."

Isto era muito simples que fosse assim...Mas infezlimente as coisas são muitissimo mais complicadas, como se o alinhamento entre o ensino universitário e o funcionamento e requisitos do mercado de trabalho fosse automático! "Ensinar", aqui, é uma caixa negra (pode ser ensinar matemática pura ou marketing de biscoitos: ambas as coisas podem ser ensinadas, mas a sua utilidade pode ser completamente diferente). Não está em causa que universidade tem de ensinar; é tudo uma questão de o que é que se ensina em nome do que, e em função de que objectivos e prioridades.

Francamente, não percebo como é que alguém possa ler o meu texto e concluir que o objectivo da universidade não seja ensinar. O que eu digo é que o conteúdo do ensino tem que ser em boa medida útil para o futuro desempenho do actual aluno/futuro profissional; (nem percebo como é que se lê que a universidade deve apenas certificar conhecimentos que não ensinou! Ou melhor, percebo, é que eu estava a falar da universidade em geral, e não da polémica Socrates-UInd)

CLeone disse...

Pois, o problema é que falar da Universidade em geral não interessa muito, atrapalha até. mais vale fuçar no suposto Caso Sócrates. E sempre em nome da maravilhosa universidade que já existe, até fazemos um favor ao MIT em recebê-los...

vallera disse...

Por um lado, a falta de interesse manifesto pelos cursos de ciências sociais e humanas, tem que ver com o que o Hugo escreveu. Os cursos não souberam re-estruturar-se e adaptar-se.
Por outro lado, tenho muitas dúvidas que essa re-estruturação passe pelo fim daquilo que o Hugo chama platonismo.
Não me parece que grande parte dos professores universitários sofra de autismo, precisamente porque estão activamente a tentar perceber o que está a acontecer.

Hugo Mendes disse...

Eu até admito que haja um "caso Sócrates". Mas no meio de tantas não-notícias, pseudo-notícias e notícias falsas, e depois de ter feito a revisão da literatura, eu ainda não consegui perceber exactamente o que é que está em causa que seja realmente reprovável, para além do comportamento normal - os economistas diriam "adaptativo" - de uma pessoa a regras institucionais que permitem um "slack" excessivo.
Tudo isto dá uma excelente conversa de café, até uma tese de doutoramento (a hipótese lá atrás do Renato merece aprofundamento); mas dá para operar uma "character assassination"?

Hugo Mendes disse...

"Não me parece que grande parte dos professores universitários sofra de autismo, precisamente porque estão activamente a tentar perceber o que está a acontecer."

Eles têm o meu mais que justificado benefício da dúvida - desde que não se comportem como o Miguel Vale de Almeida aconselha: "tapar os ouvidos, dizer a alta voz lá-lá-lá"

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

"tenho muitas dúvidas que essa re-estruturação passe pelo fim daquilo que o Hugo chama platonismo".

Eh pá, em matéria de filósofos-para-a-universidade, fazia bem ao Platão (e aos platonistas) privar um pouco mais com o John Dewey: teríamos menos constatação e mais experimentação. E experimentação não tem nada a ver com submissão naive ao mercado; e tem tudo a ver com aquilo que o Zèd chamava "ensinar".

Zèd disse...

Hugo,
"99% (desculpa se exagero na percentagem) das pessoas vão para uma universidade para ter um emprego"

Podem até ir para a Universidade para arranjar namorada/o :-), o importante é o que é que a Universidade tem para lhes dar. Mas repara podem ir para a Universidade para melhorar os seus conhecimentos, e assim arranjar emprego. As coisas não são incompativeis.

Contudo acho que fazemos uma leitura diferente do text do Rui Tavares. Ele critica é a transformação da Universidade num negocio (e refere a máfia da UInd, mas não Sócrates). Não me parece que ele defenda o "amor pelas ideias" sob um ponto de vista autista, mas simplesmente a Universidade como veiculo do conhecimento e local de aprendizagem da reflexão critica.

E não concordo quando dizes "Nunca, no futuro, teremos tanta gente a fazer investigação, tanta gente entregue o mais possível às "ideias" e ao conhecimento desinteressado." Sinceramente acredito que a procura do conhecimento é hoje tão desinteressada como sempre foi, pelo menos em séculos mais recentes, ou seja não excessivamente desinteressada. E mais uma vez, na minha leitura, não é isso que Rui Tavares defende. O que dizes e o que ele diz não é talvez assim tão diferente quanto isso, presumo que ele concorde que "o conteúdo do ensino tem que ser em boa medida útil para o futuro desempenho do actual aluno/futuro profissional"

vallera disse...

O ensino e debate de ideias é precisamente isso, Hugo: Experimentação.
Se há platónicos que acham que as ideias andam por aí a pairar e têm uma existência ontológica, também há os analíticos que defendem que não é assim.
Se é ou não é assim, não interessa. Ambos são thought experiments e maneiras diferentes de entender o mundo.

Hugo Mendes disse...

"Mas repara podem ir para a Universidade para melhorar os seus conhecimentos, e assim arranjar emprego. As coisas não são incompativeis."

Não, não são - tal como não são de ajuste automático. Mas o que mais me preocupa é o que parece advir da atitude/discurso de muitos professores, que acham que isso do emprego e do diploma é coisa de somenos. E, como bem sabemos, só é coisa de somenos para quem tem outros apoios que a tornam de somenos. Para os outros (a maioria), é o objectivo central que os leva a frequentar uma instituição de ensino superior. Esse é objectivo central (o de arranjar namorado/a às vezes vem com o pacote ;)), e parece-me que por vezes este facto elementar escapa a muitos professores

"Sinceramente acredito que a procura do conhecimento é hoje tão desinteressada como sempre foi, pelo menos em séculos mais recentes, ou seja não excessivamente desinteressada."

Não estava a fazer julgamentos individuais ou comunitários, mas a referir-me a questões institucionais que podem facilmente mensuráveis (por exemplo, investimento em investigação), e que atestam facilmente o que eu havia escrito.

Hugo Mendes disse...

"O ensino e debate de ideias é precisamente isso, Hugo: Experimentação."

Hmmmmm, se o nosso ensino superior já está tão avançado no uso dessas boas práticas, então não deve precisar de nenhuma reforma :))

rui tavares disse...

Oi pessoal do peão! Olá Hugo! Fico contente por ver que a discussão sobre o meu texto pegou por aqui. Eu já tinha escrito um início de comentário mas carreguei aqui numa tecla por engano e a coisa perdeu-se. Ainda por cima devia estar a trabalhar, em vez de blogar, porque estou com a guilhotina de um prazo em cima, mas aqui vai:

Em primeiro lugar, a universidade não esgota a realidade nem a sociedade, e também não esgota os âmbitos de intervenção de uma pessoa. Como eu digo no texto, tudo o resto (encontrar emprego, pôr comida na mesa, etc.) é importantíssimo. O problema é que quando a universidade é tida como um mero canal de acesso às nossas expectativas sociais acaba por não conseguir desempenhar bem nem a sua função primária, nem a secundária que nós lhe atribuímos. O caso da UnI é um extremo: de tanto ser entendida por toda a gente (proprietários, alunos, professores, pais, politicos, sociedade em geral) como um mero acesso ao mercado de emprego, acabou por implodir e nem os diplomas daquela "fábrica de diplomas" têm valor algum. Como só os diplomas interessavam, os diplomas não valem hoje o papel em que foram carimbados.

Não me parece que a minha posição possa ser entendida como "platonismo", pelo contrário, até me parece uma posição pragmatista e bem deweyana por sinal. Deixei isso bem explícito não só na passagem "negativa" em que preciso o sentido do "idealismo" que uso no texto ("não falo da doutrina filosófica do mesmo nome mas do projecto e da experiência histórica de haver um lugar inventado pelas ideias e só para as ideias") mas também na passagem "positiva" sobre o que considero serem as ideias na universidade ("Ideias sobre como são as coisas, sobre como funcionam, sobre como deveriam funcionar, ideias sobre ideias"). Aquele "como deveriam funcionar", por exemplo, está lá precisamente para cobrir o âmbito do pensamento sobre a sociedade. Dizer que a universidade é, em primeiro lugar, um lugar para as ideias não me parece solipsista, a não ser que o conhecimento do mundo exterior possa ser entendido como solipsista (como é evidente não pode).

Tem isto consequências sociais? Tem, mas ao contrário de ti, acho que são globalmente positivas. Embora a coluna não me tenha chegado para falar deste assunto (provavelmente voltarei) se escavarmos um bocadinho nestes escândalos das UnIs e quejandas vamos sempre acabar por encontrar o monstro do costume: a precariedade. Mas é uma precariedade que não tem nada a ver com devaneios platónicos e tudo com uma mutação maligna (mas previsível) do entendimento instrumental da universidade. Eu próprio conheço gente que tem anos de salários em atraso na UnI (anos! não é axagero...). Mas isso acontece precisamente porque a UnI foi entendida como fábrica de diplomas. Se o seu principal objectivo é conferir um carimbo às expectativas de emprego das pessoas, é que os professores saem déclassés - ou se prestam a ser os facilitadores desse carimbo ou são descartados. E podem ser descartados porque o seu papel filosófico (de gente que leva as ideias a sério) deixou de ser considerado.

Pelo contrário, na minha proposta política (evidentemente é uma proposta política) aquilo que dizemos à sociedade é o seguinte: o trabalho na universidade é com as ideias, o que significa (entre outras coisas) ter professores bem preparados e economicamente livres (ou seja, pagos com dinheiro e não com expectativas) para esse trabalho. Se nos preocuparmos em fazer o melhor trabalho com as ideias que se pode fazer, esta universidade será uma boa universidade. Por isso, os diplomas dela valerão e os seus alunos, que trabalharam com ideias num lugar onde elas eram o mais importante, serão gente esperta terão boas hipóteses de arranjar bons empregos se for essa a vontade deles (pode não ser). Mas isso só acontecerá se nos esquecermos disso por um bocadinho e nos entusiasmarmos aqui a discutir ideias, experiência sem a qual a universidade não faz qualquer sentido.

JÁ AGORA: aproveito para dizer que a partir do momento em que deixamos substituir o discurso sobre a universidade-enquanto-universidade pelo discurso do mercado de emprego já estamos a perder. Pode parecer um discurso "de esquerda", "sociológico", "realista", "sobre a realidade concreta em que as pessoas vivem", etc. mas na verdade já é um discurso mercadológico e anti-intelectual. Essa é uma das razões para termos perdido a guerra das propinas, até entre os intelectuais de esquerda: se admitimos que o papel da universidade é dar acesso aos bons empregos, admitimos que quem faz a universidade o faz por razões económicas, e portanto é natural que faça o esforço de pagar mais caro. Se dissermos que a universidade é para quem gosta de aprender estaremos a ser mais honestos com toda a gente. Há empregos bem pagos fora da universidade, há universitários subempregados, e no entanto os primeiros não pagaram propinas para ter uma cadeia de restaurantes e os segundos pagaram para fazerem traduções mal pagas a recibos verdes.

A minha proposta é que se diga: a universidade é absolutamente necessária e é cara, e só assim pode ser entendida. Se a levarmos a sério como lugar de ideias, o país será melhor, a economia será melhor, os empregos serão melhores. Mas tudo isso virá por acréscimo e DEPOIS de a termos levado a sério como lugar de ideias. Queimar etapas deixa-nos sem uma coisa (as ideias) nem as outras (os empregos, a ascensão social, o desenvolvimento).

UAU QUE TESTAMENTO DO CARAÇAS! MAs isto não aconteceria se eu estivesse antes preocupado com a minha realidade concreta (um prazo para cumprior e comida para pôr no prato) em vez de estar tão interessado em discutir ideias convosco.

Hugo Mendes disse...

Olá Rui, obrigado pela réplica. Colocadas as coisas dessa forma, eu não tenho muito com que discordar, porque nestas coisas é tudo, ou quase tudo, uma questão de ênfase.

Há várias pontas soltas que dariam pano para mangas - ou para outros posts futuros -, mas há algumas que vale a pena mencionar agora:

- as "ideias", seja lá o que isso for, fazem, têm de fazer parte do que o projecto da universidade, sem dúvida. E, se quisermos colocar a questão no caso da UInd, é légítimo duvidar que elas lá tivessem grande importância. Mas para além das "ideias", o que faz falta tanto às universidades privadas como, espero não estarei a cometer nenhuma injustiça global, às públicas, é uma gestão decente, competente, que saiba compatibilizar a dimensão intelectual com a financeira sem que uma canibalize a outra. Na UInd a segunda canibalizou a primeira; provavelmente em muitos casos de universidades públicas a primeira - ou algo vagamente parecido com a dimensão "intelectual", que muitas vezes se reduz a um sebentismo ortodoxo - canibaliza a segunda. É preciso por fim a isto.

- a dimensão instrumental da universidade será sempre e cada vez mais a sublinhada pelos alunos. Não é realista pensar o contrário. Isto não significa que os professores deixem de atribuir importância às ideias ou que quem gere as universidades o faça; significa encontrar outras formas e outros espaços de discutir ideias, de investigar, de saber reconstruir essa dimensão, mesmo sabendo que a concepção instrumental da universidade tenderá - mais nuns sitios do que noutros, claro - a ser hegemónica. E será hegemónica porque a maioria dos alunos quererá o canudo, e estará a marimbar-se para o resto. O espaço de manobra dos intelectuais está por reiventar, mas um sentido realista quanto a esta dificuldade é absolutamente indispénsável hoje para encontrarmos estratégias não de "resistência", mas de "reinvenção".

- ora, eu acho que esta geração está muito mais preparada para essas duas coisas que parecem incompatíveis: ao contrário dos insiders, mais velhos e mais "encostados", parece-me que a geração, mais nova, a da precaridade, é também a geração mais estimulante e mais bem preparada do ponto de vista intelectual. Como é que estas duas coisas se compatibilizam num mesmo tecto institucional, não sei muito bem. Concordo com a tua ideia de que uma boa universidade é uma universidade cara. Resta saber de onde vem o dinheiro - algum será público; algum terá que ser privado; e algum poderá vir do terceiro sector - e com que regras se cozerá uma universidade cara, sobretudo tendo em conta que, no futuro, essa universidade correrá, por razoes demográficas, o risco de ter ainda menos alunos do que hoje. E menos alunos significa menos professores.

- Mas discordo quando dizes: "Mas tudo isso virá por acréscimo e DEPOIS de a termos levado a sério como lugar de ideias".
Eu acho que isto é um convite involuntário à paralisia. Se estivermos à espera disso, não vamos avançar nada. As ideias brotam das condições institucionais, e precisamos de sair hoje de um daqueles dualismos típicos de uma sociedade como a nossa: passe a imagem, um ensino superior dividido entre as "torres de marfim", onde moram os insiders encostados, e as "fábricas de diplomas", que abriga os jovens precários. Não há terreno fértil para as ideias aqui. Precisamos de mudar as regras com que se cozem as instituições; as ideias virão depois. Mas, como em tudo, elas crescerão mais nuns sítios do que noutros.

abraço
Hugo